• Nenhum resultado encontrado

Os divulgadores da história no Brasil: os casos de Mary Del Priore e Laurentino Gomes

No Brasil, a historiadora Mary Lucy Murray Del Priore (1952- ) preferiu dedicar- se à tarefa de divulgar a história, em que pese sua trajetória acadêmica. Cursou o doutorado em História Social na Universidade de São Paulo (USP), realizou o estágio pós-doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, e lecionou na USP e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), antes de ser professora na Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), em Niterói/RJ. Sua profícua produção de obras voltadas para o grande público denota o sucesso de seu empreendimento, a partir do qual ela exorta outros historiadores. Em um artigo sobre vulgarização da história,116 a autora afirma que o

114 Noção emprestada de Beatriz Sarlo.

115 RODRÍGUEZ, “Los relatos exitosos sobre el pasado y su controversia”, op. cit., p. 134.

116 PRIORE, Mary Del. Vulgarização: outra história para a história. Revista Expedições: Teoria e História da

50

historiador tem a “febre” do escritor, devendo, pois, “saber contar, fazer reviver os personagens, descrever as paisagens. É isto que d| { história seus atrativos” 117.

Muitos dos temas escolhidos pela autora são temas que mexem com o imaginário do leitor contemporâneo: sexo, corpo e episódios da vida privada, em que o destaque é, sobretudo, a mulher. São histórias que divertem, mas que, segundo a autora, também possibilitam a construç~o de uma “consciência histórica”. Priore não aprofunda o desenvolvimento do conceito, como fazem outros historiadores e filósofos. Por isso, cito o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer,118 para quem a consciência histórica é “o

privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opini~o”.119 Precisamente a compreens~o da “múltipla

relatividade de pontos de vista” e a capacidade de nos colocarmos “deliberadamente na perspectiva do outro” implicam ultrapassar nossos preconceitos e “uma tradição fechada em si mesma”. Somente assim podemos pensar “expressamente o horizonte histórico coextensivo { vida que vivemos e seguimos vivendo”.120 No caso de Priore,

veremos em que medida ela ultrapassa ou não certos preconceitos e se consegue, portanto, construir a “consciência histórica” a que ela se propõe. Por outro lado, se evocarmos Jörn Rüsen, podemos problematizar a relação da obra de Priore com a “consciência histórica” proposta pelo historiador, para quem “a carência humana de orientação do agir e do sofrer os efeitos das ações no tempo” é o ponto de partida que surge como “consciência histórica”.121

Por ora, vale destacar que Priore apela ao “amor” pelo ofício de historiador para fazer uma boa história, ao mesmo tempo em que defende a “rigorosa aplicação das regras do ofício” na adaptaç~o dos gêneros da história a diferentes públicos. Assim, ela convida o historiador a sair da torre de marfim, “para prestar contas { sociedade que o sustenta”, identificando, tal qual Ronaldo Vainfas (citado pela autora), o predomínio de “historiadores monotem|ticos” como um dos problemas da “torre de marfim” acadêmica.122

117 Ibid., p. 19.

118 GADAMER, Hans-Georg.O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998. 119 Ibid., p. 17.

120 Ibid., p. 18.

121 RÜSEN, Razão histórica, op. cit., p. 30.

51

Na contramão desse predomínio, a escritora tem procurado expandir seu repertório temático ao publicar livros de temas tão diversos quanto Matar para não

morrer (2009), que trata dos meses que antecederam a morte de Euclides da Cunha em

1909; A história do esporte no Brasil (2010), que fora organizado em parceria com Victor Andrade de Melo, contemplando desde o período imperial até os dias atuais; e Do outro

lado: a história do sobrenatural e do espiritismo (2014), que aborda o desenvolvimento

do espiritismo e de outros fenômenos populares relacionados ao “mundo dos espíritos” no século XIX. As editoras de seus livros são, em geral, editoras comerciais, como Rocco, Objetiva e Planeta do Brasil. Daí que o destaque na capa de seus livros editados pela Planeta em 2015 foi a vendagem alcançada em produções anteriores: a “autora best- seller” contabilizaria mais de 200 mil livros vendidos.

Contudo, a vendagem de sua obra atestaria para o leitor a qualidade do livro que ele tem em mãos? Talvez em termos narrativos, longe do academicismo que permeia a historiografia em geral. Todavia, parece-me que vincular o sucesso editorial de um autor ao lançamento de outro livro de sua autoria funciona como estratégia comercial “subliminar” do mercado livreiro, o qual busca persuadir novos consumidores por meio do fortalecimento da “comunidade imaginada”123 de leitores, o que significa expandi-la.

Trata-se de trabalhar, em certa medida, com a noção de pertencimento – “eu pertenço ao grupo de leitores dos livros de Mary Del Priore” (haja vista o percentual de leitores que escolhem um livro pelo autor), “eu pertenço ao grupo dos leitores de livros de história do Brasil” (haja vista o percentual de leitores que escolhem um livro pelo tema). Pertencer a esse grupo significa dimensionar o papel que a leitura do livro de história desempenha no dia a dia do leitor: seja como “fonte de conhecimento para a vida”, seja como “atividade prazerosa” (para remetermos aos dados do Instituto Pró-Livro), seja como modo de satisfazer suas carências de orientação no tempo (para remetermos a Jörn Rüsen), seja como modo de compreender quem somos hoje. Essa perspectiva é complementada por Laurentino Gomes, o qual observa que “os brasileiros estão olhando o passado em busca de explicações para o país de hoje”, procurando “também se aparelhar mais adequadamente para a construç~o do futuro”..124

123 Noção emprestada de Benedict Anderson. 124 GOMES, 1889, op. cit., p. 27.

52

Sendo Priore um dos poucos nomes dentre os historiadores brasileiros a dedicar- se { tarefa de uma “história popular”, falar de suas obras requer também levar em consideração o papel cada vez mais relevante que os jornalistas têm ocupado nesse espaço. O caso de maior sucesso atualmente no Brasil, em termos editoriais, é o do jornalista já citado, Laurentino Gomes. Ademais, a própria historiadora avaliou positivamente o livro de estreia do autor: “Um livro que se lê com um sorriso nos l|bios”.125 Esse elogio foi extraído de uma resenha escrita por Mary Del Priore para a

revista Veja,126 publicada pela Editora Abril, na época em que Gomes atuava como

diretor-superintendente da referida editora (essa informação consta no próprio texto veiculado pela revista).

Neste momento, ressalto que o tema compartilhado por ambos os autores – a história do Brasil do século XIX (em eventos ou personagens) – me ajudou a selecionar com quais obras da vasta produção de Mary Del Priore (cerca de quarenta livros até o momento, incluindo um romance histórico, Beije-me onde o sol não alcança, publicado em 2015) eu iria trabalhar. Ela é citada aqui tanto nas obras de divulgação com as quais trabalho em minha pesquisa (Condessa de Barral, 2006; O Príncipe Maldito, 2007; A

Carne e o Sangue, 2012; O Castelo de Papel, 2013) quanto em parte de sua produção

acadêmica. Vale ressaltar o quanto a historiadora é polivalente, uma vez que, em parceria com a jornalista e também historiadora Márcia Pinna Raspanti, ela mantém um blog atualizado desde meados de 2013, cuja apresentação é a seguinte: “Um espaço destinado a todos aqueles que se interessam pela História do Brasil. Mais do que datas e nomes, o blog vai apresentar ideias, hábitos e maneiras de se relacionar de personagens pertencentes ao passado, ainda presentes em nossa memória”.127

Do mesmo modo, a disseminação do interesse pela história de nosso país justificaria, a princípio, a candidatura da ex-professora da USP à cadeira 10 da Academia Brasileira de Letras (ABL) também em 2013.

125 Na orelha do segundo livro de Laurentino Gomes, 1822, havia depoimentos de historiadores,

professores e estudantes sobre o primeiro livro do autor, 1808. Além de Mary Del Priore, valem destacar os depoimentos elogiosos dos historiadores Elias Thomé Saliba (“Uma narrativa sensível e abrangente da história brasileira”) e Jean Marcel Carvalho França (“Uma perspectiva ampla do período, sem deboche ou caricatura”).

126 PRIORE, Mary Del. O ano que definiu o Brasil. Veja, nº 2025, 12 de setembro de 2007, p. 126-128. 127 HISTÓRIA HOJE. Disponível em: www.historiahoje.com Acesso em: 05 ago. 2015.

53

Desde que deixei a USP, venho lutando para que mais e mais brasileiros leiam e gostem de sua história: da história do Brasil. A ABL é uma instituição de peso nacional e internacional que poderá dar maior visibilidade ao nosso passado, lutar por nossa memória, textos e documentos, fazendo-se mediadora entre a literatura e a história, disciplinas que dialogam. Afinal, como o romance, a história conta. E contando, ela explica.128

Decerto, a estratégia utilizada pela escritora para despertar no brasileiro o gosto pela história é focar não apenas em temas específicos, como já apontado aqui, mas também em personagens que possam render uma boa história e, portanto, tornar-se interessantes para o leitor (daí, por exemplo, a ênfase do blog em personagens do passado – ou, no caso dos livros analisados, nos grandes personagens do passado). É claro que a seleção e a interpretação dos acontecimentos relacionados à história de vida da princesa Isabel ou de d. Pedro I são uma incumbência da própria historiadora: cabe a ela tornar a biografia de determinados personagens atraente aos olhos do leitor. Como ela mesma afirma, “todas as histórias s~o boas, na condiç~o de serem bem feitas”.129

Discutirei em seguida o que a historiadora possivelmente entende por “uma história bem feita”. Antes, porém, cabe assinalar a entrevista que a autora concedeu {

Revista de História da Biblioteca Nacional (ou simplesmente Revista de História) em

2010, na qual ela afirmava o quanto era importante às editoras que a história fosse

vendável: “(...) o mercado editorial n~o vai dar suporte ao prazer de fazer História. Ele

vai financiar os livros que tiverem algum potencial de venda. (...) fui aprendendo muito rapidamente que certos temas teriam um público mais amplo do que outros”.130 Sim,

trata-se, em certa medida, de uma obviedade, corroborada pela pesquisa do Instituto Pró-Livro, em que 65% dos entrevistados em 2011 afirmaram que o tema é o fator que mais influencia na escolha do livro. Entretanto, a resposta da autora remete a duas questões menos óbvias e inter-relacionadas: (i) a relativa falta de liberdade do historiador não apenas na escolha do tema, mas no próprio modo de conceber e

128 CORREIO DO POVO. Onze autores começam a corrida pela cadeira 10 da ABL. Porto Alegre, publicado

em 13/02/2013. Disponível em: http://correiodopovo.com.br/ArteAgenda/?Noticia=488574 Acesso em: 15 mai. 2015.

129 PRIORE, “Vulgarizaç~o: outra história para a história”, op. cit., p. 18.

130 Idem. “Continuamos elegendo bandidos contumazes. O nosso Congresso é um esgoto...”. Entrevista

concedida a Rodrigo Elias e Fabiano Vilaça, publicada na Revista de História em 04/04/2010. Disponível em: www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/mary-del-priori Acesso em: 06 ago. 2015.

54

escrever a história, que ultrapassa a mera questão da forma/estilo; (ii) a influência do público sobre a obra do historiador.

Em relação ao primeiro ponto, vale trabalhar com as próprias palavras de Priore na Revista de História. Quando a escritora voltou a morar no Rio de Janeiro, ela se deparou com o “riquíssimo arquivo” do IHGB. Ali ela vislumbrou “a possibilidade de fazer livros de divulgaç~o”, enfocando o gênero biogr|fico. Segundo a historiadora, o “detalhe” na biografia possibilita ao leitor “ver aquilo que você est| contando”. Entretanto, para trabalhar com o “detalhe”, Priore propõe um método que desliza precisamente no ponto nevrálgico do trabalho do historiador (ou seja, nas regras do ofício que ela diz aplicar): “O escritor deve estar menos interessado em interpretar ou justificar determinados fatos e mais preocupado em recuperar a atmosfera de um período e descrever certos acontecimentos”.131 É pertinente notar que ela lança mão do

termo “escritor”, com o qual me refiro { autora em outros momentos desta tese, para descrever também o papel dela, enquanto historiadora, na escrita biográfica. Seria esta concepç~o de “história bem feita” que ela, por acaso, tem em mente? Notemos que, a partir do século XIX, com a institucionalização e a profissionalização das disciplinas, temos uma história que renuncia “{s lições e {s previsões”, que n~o aconselha nem julga, mas que simplesmente procura “conhecer e compreender”, segundo François Hartog.132

Ainda assim, podemos dizer que as quatro tarefas do historiador, elencadas por Allan Megill, ultrapassam as tarefas que Priore designa para o escritor de história.

Descrever algum aspecto da realidade histórica – contar o que foi o caso – é a primeira tarefa. Uma obra em que esse objetivo domina será inevitavelmente ordenada em uma forma narrativa, como definida aqui – isto é, as ações históricas, os acontecimentos, os personagens e os lugares desempenharão (mas em proporções variadas) um papel proeminente no texto. Seguindo a descrição está a explicação de algum aspecto da realidade histórica. Se a explicação torna-se a principal preocupação do historiador, a obra, em seu foco em conectar explanans e explanandum, pode bem divergir de uma forma predominantemente narrativa (ainda que a narrativa acomode explicações). [Na] terceira [tarefa], o historiador afirma que suas descrições e explicações são verdadeiras: caso contrário, nós convencionalmente o consideraríamos como qualquer outra coisa que não um historiador (...). Portanto, o relato histórico tem um terceiro aspecto, que é o do argumento ou da

131 Ibid.

55

justificativa. (...) Finalmente, um historiador necessariamente interpreta o passado, porquanto [ele] o vislumbra de uma perspectiva particular do presente e remete sua obra às pessoas no presente e no futuro.133

Nesse sentido, o escritor de história – mesmo que não seja um historiador – não tem como prescindir da interpretaç~o dos “fatos” do passado, uma vez que a “perspectiva particular do presente” permeia sua escrita. Além disso, a própria Mary Del Priore, tendo em conta a operação historiográfica de modo geral, afirma que “quando olhamos o passado, procuramos de alguma maneira construir um sentido, uma verdade. É claro que essa é apenas a verdade possível em cima de determinada combinação de documentos”.134 Logo, se os historiadores (sendo biógrafos ou n~o) procuram “construir

um sentido” para o passado, eles n~o est~o mais circunscritos { mera “recuperaç~o da atmosfera de uma época” ou { “descriç~o de determinados acontecimentos” a que se referia a autora anteriormente. Os documentos “falam” a partir das indagações que o historiador lhe dirige, e essas informações são selecionadas e interpretadas pelo historiador que interroga suas fontes, independentemente de sua pretensão à escrita de uma história “popular”.

Desse modo, não são apenas as fontes que embasarão a pesquisa do historiador, seja ela voltada para o grande público, seja ela destinada ao público acadêmico. De acordo com Rüsen, inspirado em Johann Gustav Droysen, a pesquisa histórica consiste em três operações processuais: a heurística, a crítica e a interpretação. A heurística precede o trabalho de pesquisa das fontes ao lançar “as hipóteses de sentido (teoricamente explicáveis) do pensamento histórico” sobre os “testemunhos empíricos do passado”, cujo critério é o “princípio metódico da plausibilidade explicativa”.135 Já a

133 Grifos do autor. “Describing some aspect of historical reality – telling what was the case – is the first

task. A work in which this aim dominates will inevitably be ordered in narrative form, as defined here – that is, historical actions, happenings, characters, and settings will play (but in varying proportions) a prominent role in the text. Following on description is the explaining of some aspect of historical reality. If explanation becomes the historian’s main concern, the work, in its focus on connecting explanans and

explanandum, may well diverge from a primarily narrative form (although narrative does accommodate

explanations). Third, the historian claims that his descriptions and explanations are true: otherwise, we would conventionally regard him as something other than a historian (…). Thus the historical account has a third aspect, that of argument or justification. (…)Finally, the historian necessarily interprets the past, for she both views it from a particular present perspective and addresses her work to people in the present or future.” MEGILL, Historical Knowledge, Historical Error, op. cit., p. 97.

134 PRIORE, “Continuamos elegendo bandidos contumazes”, op. cit.

135 Grifos do autor. RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Teoria da História II: os princípios da pesquisa

56 crítica das fontes é “o ponto fulcral da objetividade histórica”, por ser a operaç~o que

extrai informações cujo conteúdo é convertido em fatos, sendo dirigida pelo “princípio

metódico da plausibilidade informativa (ou factual)”.136 Quanto à interpretação, ela é uma

operação “que articula, de modo intersubjetivamente controlável, as informações garantidas pela crítica das fontes sobre o passado humano”, obedecendo, portanto, ao “princípio metódico da plausibilidade explicativa”, tal qual a heurística.137

A própria pesquisa histórica, porém, insere-se na “interdependência dos cinco

fatores do pensamento histórico”, cujo resultado é um sistema dinâmico que transita da

vida prática à ciência especializada e vice-versa.138 O primeiro fator tem a ver com o

“interesse cognitivo pelo passado”, decorrente das carências “de orientaç~o da pr|tica humana da vida no tempo”. O segundo fator advém de quando essas carências “s~o transformadas em interesses precisos no conhecimento histórico”, revestindo “o passado do car|ter de ‘história’” justamente pelos “critérios orientadores de sentido” (ideias). J| o terceiro fator repousa nos “métodos da pesquisa empírica”. Rüsen abre, assim, a possibilidade de que aquelas ideias sobre o passado, orientadas por interesses, transformem-se, “mediante pesquisa, em conhecimento empírico”. Por sinal, o conhecimento científico obtido pela pesquisa tem como produto a historiografia. Ou seja, “as formas de apresentação”, como quarto fator, “desempenham um papel t~o importante quanto o dos métodos” para a pesquisa histórica. Por fim, o quinto fator incorre na “função de orientação existencial”, da qual o pensamento histórico se originou. A racionalidade da história como ciência perpassa, assim, as funções de orientação.139

No caso de Priore e de Gomes, as formas de apresentação assumem grande relevância em suas produções. É provável, porém, que os leitores dos livros de história busquem, dentre outras coisas, satisfazer suas carências de orientação no tempo mediante a leitura dessas obras. Logo, mesmo que os livros de Priore e de Gomes sejam, em certa medida, problemáticos do ponto de vista da história como ciência, eles conseguem capturar no leitor o interesse cognitivo pelo passado.

Já o segundo ponto relaciona-se aos debates de história pública nos Estados Unidos. Em artigo publicado na The Public Historian em 2006, os historiadores Katharine

136 Grifos do autor. Ibid., p. 123; p. 126. 137 Grifos do autor. Ibid., p. 127; p. 130.

138 Grifos do autor. RÜSEN, Razão histórica, op. cit., p. 35. 139 Grifos do autor. Ibid., p. 30-35.

57

T. Corbett e Howard S. Miller suscitam questões que tocam no âmago da operação historiográfica fora da academia.140 Quando os autores enfatizam o caráter sempre

situacional da história pública, eles se referem ao aspecto dinâmico desse tipo de história, que deve não apenas se adaptar a diferentes públicos, mas deve também ser trabalhada com eles. Isso significa dizer que os historiadores devem abrir mão de certo controle intelectual para que a autoridade sobre a história e os diferentes usos do passado seja efetivamente partilhada com o público. Mas o que os autores querem dizer com “partilha de autoridade”?

Porque todos nós utilizamos o passado para ajudar a dar sentido ao presente e para encontrar um significado em nossas vidas, as histórias populares estão mais profundamente enraizadas na cultura do que a versão acadêmica proferida em seminários. Os praticantes profissionais não podem ignorar o passado popular, tampouco evitar que ele seja ouvido, mas, com esforço e sorte, podemos nos unir à conversa em andamento do público. Como outros guardiões dos mitos úteis, somos mediadores entre o passado e o presente, entre a verdade que queremos contar e as verdades que as pessoas querem nos contar.141

É verdade que os historiadores tinham em mente algumas práticas específicas da história pública, como os projetos de história oral. É verdade também que, ao pensar no caso estadunidense, sinto-me impelida a questionar em que medida esta “autoridade partilhada” n~o reside, antes, em um pretenso trabalho conjunto entre história e memória. Como constata François Hartog, a memória é “claramente uma alternativa a uma história (...) que fracassou”, qual seja, “a história dos vencedores, e n~o das vítimas,