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Dizer Deus: Metáfora (Poética)

No documento TEOLOGIA E METÁFORA EM BOAVENTURA (páginas 30-43)

Até aqui, dir-se-ia, nada de novo. A analogia descreve a relação adequada entre Deus e as criaturas96. Num outro passo, todavia,

comparece uma novidade: interrogando-se Boaventura sobre se a metáfora se aplica a Deus, responde integrando-a no esquema da semelhança por analogia. E tal como considera que a semelhança se diz de um modo em Deus e de outro modo em nós, considera

94II Sent., d. 16. a. 1, q. 1 (II 395a). 95II Sent., d. 16. a. 1, q. 1 (II 394b).

96Similitudo, expressio, exemplaritas e repraesentatio são os conceitos bona- venturianos que melhor explicam a relação entre o Criador e as criaturas: Vd.: A. SPEER, Bonaventura. Vom Wissen Christi, Übersetz, Kommentiert und mit Einleitung herausgegeben von Andreas Speer, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1992.

igualmente que a metáfora se aplica duplamente a Deus, isto é: a parte Deie a parte creaturae.

O. Todisco vê no dúplice movimento – da analogia ao símbolo e do símbolo à analogia – motivo para uma releitura da proposta bo- naventuriana97. A ideia de que a metáfora entra na constituição do

pensamento, fundando-se na analogia, permitiu verdadeiramente a São Boaventura vencer o silêncio metafísico e o esquecimento do divino que a manipulação de signos vazios e a construção de lin- guagens formalizantes tendem a fazer proliferar.

O que é, afinal, a metáfora para São Boaventura?

Não existe de Boaventura uma obra expressamente dedicada à doutrina da metáfora. Aparece, de forma directa, na questão IV da distinção XXXIV, artículo único do I Livro das Sentenças, que se interroga nos seguintes termos: Utrum in divinis ponenda sit translatio98. De forma mais indirecta embora logicamente, apa-

rece também na distinção XXII do mesmo Livro, acerca da nome- ação de Deus (“De nominibus divinis”)99, bem como na primeira

parte do Breviloquium, onde o Santo mostra, pela equivalência me- taphora/transsumptio, por que é que as cinco últimas categorias de Aristóteles se não atribuem a Deus senão de modo transpositivo e figurativo (non attribuntur Deo nisi transsumptivo modo et figura- tivo)100.

Uma tal indicação modelar da metáfora surge igualmente em alguns dos Sermões, presumivelmente redigidos na última fase da vida do Santo. A verdade explica-se metaforicamente: “[...] por convenientíssima metáfora explica-se no verbo a obra da criação [...] por metáfora nobilíssima exprime-se a criação do homem quanto ao princípio efectivo, constituindo-se, assim [a criação], 97 Orlando TODISCO, “Dall’analogia al simbolo e dal simbolo all’analogia in San Bonaventura”, in: Doctor Seraphicus, 27 (1980) p. 15.

98I Sent. d. 34, a.un., q. 4 (I 593-594). 99I Sent. d. 22, a. un., qs. 1-4 (I 390-399). 100Brevil. I, 4 (V 212b).

significação metafóricapara o homem”101. “Pela metáfora do arco

íris ou celeste mostrou-se Deus à humanidade [...] o nascimento de Cristo diz-se arco íris ou celeste.”102.

Ou seja: que Boaventura reconhece, valoriza e usa a metáfora, não há dúvida; resta saber porquê e como.

Neste ponto, a questão que se sobreleva é a de saber se São Boaventura faz apenas um uso retórico ou discursivo da metáfora – cingindo-a a mero plano/recurso exterior do pensamento – ou se, pelo contrário, é possível encontrar no seu próprio discurso ele- mentos que autorizam uma doutrina da metáfora, interpretando-a não apenas como poética mas também como modalidade de raci- onalidade e, portanto, como natural ao acto de pensar “como sen- tido”.

É isso que agora iremos ver, pela análise daqueles referidos textos.

São Boaventura reconhece explicitamente a “excelência” da metáfora como modo de atribuição divina103. Interrogando-se, como

acima vimos, sobre se a metáfora se pode aplicar a Deus, responde que a metáfora possui “uma dupla razão ou fim”: 1. louvar Deus (laus Dei); e 2. conduzir o nosso intelecto (manuductio intellectus nostri)104.

A metáfora, diz o Santo, é necessária para o louvor de Deus105;

e porque Deus é maximamente louvável, para que esse louvor não 101Serm. Dominica V. Post Epiphaniam, Sermo I (IX 192b): “[...] opus crea- tionis hominis explicat in verbo proposito sub convenientissima metaphora [...] sub metaphora nobilissima exprimitur creatio hominis quantum ad principium effectivumin metaphorica hominis significatione”. (Sublinhado nosso).

102BOAVENTURA, Serm. , In Nativitate Domini, Sermo IV (IX 113a): “Sub metaphoraergo iridis sive caelestis arcus Dei potentia nobis inclinata per huma- nitatem ostenditur [...] Christus natus dicitur arcus caelestis [...]”. (Sublinhado nosso).

103I Sent., d. 22, a. un., q. 3, (I 396b). 104I Sent., d. 34, a.un. q. 4 ( I 594a).

105I Sent., d. 34, a. un. q. 4 (I 594a): “Quoniam igitur finis imponit necessita- tem his quae sunt ad finem, cum translatio sit ad laudem Dei”.

cesse por falta de palavras – dir-se-ia, por penúria/impotência da linguagem – a Sagrada Escritura ensinou a transferir os nomes das criaturas para Deus106. Por isso, é em número indefinido que é

preciso usar metáforas (translationes), a fim de que, tal como todas as criaturas louvam Deus, o Ser divino seja igualmente louvado a partir de todos os nomes das criaturas107. “Louvar Deus” constitui,

assim, um modo denominativo – “descendente” – do Ser divino. “Louvar Deus” significa dizer Deus a partir do próprio Deus.

Embora Boaventura não dedique à linguagem estudo especial, esta “razão ou fim” da metáfora determina, nas suas propriedades semânticas, um certo modelo de discurso e, simultaneamente, é de- terminada por uma indeclinável concepção da linguagem, no seu poder de apreender e de exprimir um mundo invisível, inacessí- vel em termos definitivos. Por outras palavras, o que o Santo já diz é que a linguagem jamais coincide com o objecto dito. Essa “apropriação adequada” virar-se-ia contra ela mesma, pela impos- sibilidade de articulação e de acumulação progressiva de sentido. Importa, pois, preservar uma “distância”108, fonte do próprio dis-

curso, sem o que não é possível falar sentido109. Essa distância

significa, contudo, não um afastamento, mas uma “proximidade fi- lial”, dissolvendo toda e qualquer identidade.

P. Ricoeur foi o porta-voz da viragem hermenêutica, sobretudo através da sua obra La métaphore vive. A justa interpretação do filósofo francês, é no entanto parcial na medida em que, apontando as virtudes da transição da metáfora do campo da “teoria retórica” 106Ibidem: “Propter laudem Dei necessaria est translatio. Quoniam enim Deus multum est laudabilis, ne propter inopiam vocabulorum contingeret cessare a laude, sacra Scriptura docuit, nomina creaturarum ad Deum transferri [. . . ]”.

107Ibidem: “[...] et hoc in numero indefinito, ut, sicut omnis creatura laudat Deum, sic Deus laudetur ex omni nomine creaturae”.

108Vd. J.-L. MARION, L’idole et la distance: cinque études, Paris, Bernard Grasset, 1977, p. 230 sgs.

109Cf. J. C. GONÇALVES, Fazer Filosofia – Como e Onde? – Braga, 1990, p. 29.

para o da “teoria semântica”, negligencia muitas outras suscitadas por essa transição. Pois é bem possível encontrar em São Boaven- tura indícios da transformação da metáfora aí subjacente. Já para Boaventura tudo se resolve no bom uso da linguagem natural, cu- jos contornos, ao contrário dos das linguagens artificiais, jamais são fechados e definitivos110.

Ricoeur distingue entre discurso descritivo e discurso não des- critivo. A “literatura” desenvolve-se em zonas não descritivas do discurso. A metáfora redescreve a realidade, o que supõe a suspen- são da função descritiva, para intensificação de múltiplos modos de pertença ao mundo111.

J.-L. Marion faz igualmente a destrinça entre discurso de predi- cação categórica e discurso do louvor. Construindo interpretações em termos de modelos, o discurso formal nega à linguagem uma alternativa de discurso: o referente é atingido categoricamente ou não o é e então deve parar.112. O discurso poético seria privado de

função referencial, visto ser meramente emocional113.

Boaventura, nos antípodas quer do terminismo, quer do nomi- nalismo114, não poderia aceitar um tal procedimento linguístico.

Diria, certamente, não se alterar o fundo da questão: “Deus não existe mas é”.

Marion vê justamente no “discurso do louvor” a alternativa à predicação categórica da linguagem, que garantiria somente uma idolatria – um referente fantasmático. A linguagem, quando pre- dica artificialmente, produz ela mesma os objectos. Sobre Deus tal predicação é uma impossibilidade radical, porque não é possível 110Cf. J. LADRIERE, “Le discours théologique et le symbole”, Revue des Sciences Religieuses, 49 (1975), p. 131 e 136.

111Vd. P. RICOEUR, “Entre philosophie et théologie II: nommer Dieu, in: Lectures 3. Aux frontières de la philosophie, Paris, Seuil, pp. 286ss.

112J.-L. MARION, Op. cit., p. 231. 113Cf. P. RICOEUR, Op. cit., p. 287.

114Cf. O. TODISCO, Le creature e le parole. Da Agostino a Bonaventura, Roma, Anicia, 1994, p. 111.

atingir o Ser divino como se fora um referente que verificaria ou infirmaria uma proposição bem construída115.

A metáfora interpela radicalmente o discurso descritivo/categórico e interpreta a plasticidade da linguagem, fundindo-se com a capa- cidade de o homem se distanciar, pela razão, vontade e imaginação (as “potências da alma”116) do imediato, para gizar um projecto de

mundo mais rico, integrando sucessivamente as instâncias de onde partiu117. O discurso poético não vive do mundo dos objectos mas

não ignora o mundo. Refere-se às nossas múltiplas formas de per- tencer ao mundo. Se nos tornarmos cegos a essas modalidades de enraizamentoe de pertença, que precedem a relação de um sujeito a objectos, é porque ratificamos de modo não crítico um certo con- ceito de verdade, definido pela adequação a um real de objectos e submisso ao critério da verificação e da falsificação empíricas118.

Ora nada seria mais estranho do que isso ao sentir de Boaventura. Em ligação com a razão ou fim de louvor, a metáfora tem uma outra razão ou fim: “conduzir pela mão” (manu-ductio) o nosso in- telecto: alia ratio vel finis translationis est manuductio intellectus nostri. Como manuductio, a metáfora reflecte igualmente a insufi- ciência de uma noção restrita de ciência, que fixaria o homem nas malhas de um universal elaborado pelo intelecto, e acentua o sen- tido da existência das criaturas como reflexo, impossível de deduzir da sua própria essência. O real não pode reduzir-se aos seus sinais. O homem “habita” Deus119, conduzindo-se pelos signos (medium

115J.-L. MARION, Op. cit., p. 231.

116Para Boaventura, a razão e a vontade, ou o intelecto e o afecto, são diversas potências, mas não diversas essências, isto é, as potências da alma não diferem essencialmente. Por exemplo, há tanta conveniência entre a inteligência e a von- tade, quanta há entre a verdade substancial e a bondade. (Vd. II Sent, d. 24, a. 2, q. 1; II 558-563).

117Cf. J. C. GONÇALVES, Op. cit., p. 28. 118Vd. P. RICOEUR, Op. cit., pp. 287-288. 119Cf. Brevil. I, 5 (V 214a).

manuductionis)120. Deus não se identifica como que sobre ele a

linguagem diz – incluindo o próprio nome Deus. As metáforas possuem uma razão comum: falam de Deus segundo a experiên- cia sensível; por exemplo, o brilho de uma estrela, o rosado de uma manhã, a força de um leão, a doçura de um cordeiro, etc. . Note-se, todavia, que “determinação sensível” não quer dizer “significação sensível”: “o verbo da inteligência, que é insensível, reveste a voz sensível”121.

Posto isto, vê-se por que a metáfora se aplica às coisas divi- nas tanto quanto a multiformidade dos nomes, por cuja razão se diz que Deus se pode nomear por todos os nomes – e jamais por um só: a ciência humana actual só o alcança metaforicamente, não na sua determinação essencial. Ou seja, metaforizar não significa “inventar” Deus, a metáfora aplicada a Deus não faz de Deus uma “recriação”; as metáforas do divino traduzem a manifestação ex- pressiva da nossa contemplação Deus.

São Boaventura não poderia, pois, dissociar teologia e metá- fora. A teologia, cujo objecto é o credível não enquanto credível mas enquanto inteligível (credibile ut intelligibile), compreende em si a metáfora como modalidade de racionalidade, constituindo- se desse modo como resposta ao desafio simultaneamente da cog- noscibilidade e não-conceptualidade do divino. Deus não pode ser conceptualizado mas pode ser conhecido. Cremos que, deste modo, o Santo antecipa a redescoberta do valor cognitivo, heurís- tico e hermenêutico da metáfora, virando para a linguagem a con- sumação do pensamento122. Deus está sempre para além do seu

próprio conceito.

Se, como laus Dei, a predicação metafórica é de sentido “des- 120Cf. Brevil. V, 9 (V 262b).

121I Sent., d. 22, a. un., q. 1 (I 396b).

122Recorde-se que Boaventura jamais desqualifica a retórica: “Tertia irradiatio est, qua mens illustratur ad persuadendum vel inclinandum animum; hoc fit per rhetoricam”. (Hexaem. IV, 21; V 353a). E diz mais: “Certum est, quod rationalis philosophia in rhetorica consummatur”. (De donis, IV, 12; V 475b).

cendente” (a parte Dei), já como manuductio essa predicação é de sentido “ascendente” (a parte creaturae). Ou seja, temos de o re- conhecer: Boaventura atribui à metáfora um duplo movimento: 1. epifórico (descendente); e 2. diafórico (ascendente). No primeiro, a metáfora manifesta uma função heurística; no segundo, ela as- sume uma função cognitiva. O santo franciscano “entrecruza” duas modalidades predicativas, uma segundo a ordem descendente do ser (laus Dei) e outra segundo a ordem ascendente das significa- ções (manuductio), as quais, por sua vez, correspondem a duas vias para Deus (a parte Dei e a parte creaturae). A predicação metafórica consigna um “equilíbrio” entre ambas, constituindo-se assim como o grande modelo da linguagem humana sobre Deus.

Lembre-se ainda que Boaventura é contra os nomes meramente contemplativos (nominalismo)123.

No Breviloquium importa determinar um modo (modus), uma expressão (expressio) adequada, para dizer Deus: uma expressão católica para traduzir a fé trinitária (De istius fidei expressione catholica). Referindo-se aos “documentos dos santos doutores” e à classificação dos modos (modi) de P. Lombardo, Boaventura diz que tal expressão corresponde à determinação do modo de predi- cação (modus predicandi) que melhor pode dizer Deus124.

Em Deus alguns nomes são metafóricos e outros não125. As coi-

sas que são perfeitas devem dizer-se de Deus “própria e verdadei- ramente”; mas as coisas que são imperfeitas não podem dizer-se, ou se se disserem, devem dizer-se segundo a assunção da natureza humana, ou metaforicamente126. Dizer própria e verdadeiramente

é, pois, dizer de um modo perfeito, predicar propriamente o Ser divino. Tomando o exemplo das dez categorias de Aristóteles, se- gundo Boécio, só as cinco primeiras (substantia, quantitas, rela- 123“Et quid prodest nomen habere sine re?” (Serm., Dominica tertia in qua- dragesima; IX, 229b).

124Brevil. I, 4 (V 212-213). 125I Sent., d. 22, q. 3 (I 396b 126Brevil. I, 4 (V 212a).

tio, qualitas et actio) convêm verdadeiramente a Deus, como suas formas de ser, pelas quais também é conhecido127. As cinco últi-

mas (passio, ubi, quando, situs et habere) só podem convir a Deus “por transposição e de modo figurativo”, visto contemplarem pro- priamente as coisas corpóreas ou mutáveis (quinque ultima proprie spectant ad corporalia seu mutabilia)128.

Assim, o que interdita a predicação própria de algumas catego- rias a Deus é a corporeidade (“paixão” e “haver”, por exemplo) e a mutabilidade (“lugar”, “tempo” e “situação”). “Corporeidade” e “mutabilidade” convêm, em sentido próprio, somente ao ser finito: “somente por metáfora” (nisi forte transsumptiva) podem atribuir- se ao Ser infinito. Propriamente falando, o nome Deus não tem plural, não é nome apelativo, porque não significa uma forma mul- tiplicável. O nome Deus é próprio da natureza divina. Deus não pode ser limitado, nem coarctado, nem composto: Deus está fora de todo o género129. Deus é incircunscritível, invisível e imutá-

vel130.

Note-se que, à semelhança do Pseudo-Dionísio, o Doutor Se- ráfico preserva a noção de que um só nome não pode significar Deus. O Ser divino, por definição, transcende todos os nomes. Ou seja, os nomes divinos são os nomes das criaturas transferidos para Deus: metaforicamente (metaphorice), Deus é nomeável por to- dos os nomes das criaturas (Deus est omninominabilis) – excepto os das que importam deformidade, como diabo, sapo, raposa (ut diabulus, bufo, vulpes), que mais transfeririam vitupério do que louvor131. A metáfora, nota Boaventura, serve “para a nossa ins-

trução”; é por essa razão que a semelhança sensível pode ser “via de conhecimento”132. Só os nomes que importam “deiformidade”

127I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 398a). 128Brevil. I, 4 (V 212a-b) . 129Brevil. I, 8 (V, 217b). 130Brevil., I, 5 (V, 214a ). 131I Sent. d. 34, a. un., q. 4 (I 594b). 132Ibidem.

podem predicar-se metaforicamente do Ser divino. A “diferença” que separa ambos os pólos da relação é tão essencial à transferência significativa como a sua “conferência” naquilo em que se aproxi- mam (analogia). À predicação metafórica é essencial a analogia (similitudo alterius).

Para nós (pro nobis) a metáfora é o melhor meio de conhecer Deus em si (in rem). Tal como há dois modos de conhecer, há dois modos de dizer. Ao conhecimento de compreensão perfeita corresponde o que pode ser dito ou nomeado segundo a expres- são perfeita. Aqui deve dizer-se que Deus é inteligível por si só, e assim também por si só pode ser dito e nomeado. Ao conheci- mento imperfeito, por sua vez, corresponde o que pode ser dito ou nomeado num “discurso qualquer” – discurso imperfeito133.

O Doutor Seráfico distingue, com toda a clareza, os nomes que Deus se impôs a si mesmo e os nomes que nós lhe impusemos. Se falarmos dos nomes que Deus se dá a si mesmo, esses nomes são próprios; se, porém, falarmos dos nomes pelos quais nós o nomeamos, esses nomes são metafóricos134. Contudo, Boaventura

sabe bem que não poderia estender a metáfora indefinidamente. Por isso, sublinha ele: “digo que tudo o que é dito impropriamente não é dito metaforicamente”135; ou seja, “também se nomeia por

negação”136.

Fica, pois, bem evidente que, para o Santo, a metáfora possui “propriedades de excelência” na nomeação de Deus e também por que, diversamente, recusa erigi-la como norma de toda a teologia. O melhor dos caminhos também comporta perigos, o maior dos quais seria a reificação de Ser divino. Boaventura não só, pois, teo- riza, como define o respectivo uso da metáfora, isto é, a sua esfera de pertença; propõe, pode dizer-se, uma doutrina sobre o bom uso

133I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 391a). 134I Sent., d. 22, a. un., q. 3 (I 395a). 135I Sent. d. 22, a. un., q. 3 (I 396b). 136Ibidem.

da metáfora. O Santo intui aqui a hodierna questão dos limites da linguagem: não podemos sair da linguagem para vermos fora dela. Mas a linguagem não pode fazer transitar em linguagem aquilo que diz. Eu não sou aquilo que penso. Dir-se-ia que linguagem não é concebível sem um espelho, o qual supõe a separação – e relação – entre o dito e o referente, pela intensificação das imagens.

Deus tem forma, não forma acessível ao nosso intelecto, ao modo da forma que é imagem dos nosso sentidos, mas forma por- que ele mesmo é a própria razão de conhecer. Deus dá-se-nos a conhecer na forma criada – as criaturas. É porque lhe impomos nomes a partir da forma criada que o conhecemos e vemos137.

E porque nas criaturas diferem maximamente “o que é” conhe- cido e “aquilo pelo qual” se conhece, o nome nas criaturas implica maximamente a diversidade das substâncias e das qualidades. No Ser divino, porém, não há essa distinção, pois o conhecido e a razão de conhecer são o mesmo; por isso o nome divino significa essas duas coisas por indiferença real138. E assim Deus não é apenas

conhecido pela diversidade das coisas, mas também por todas as suas formas de ser. Os nomes ditos de Deus, alguns dizem-se pelo modo da substância, como quando se diz “Deus”, outros dizem-se pelo nome da quantidade, como quando se diz “grande”, e outros pelo modo da qualidade, como quando se diz “bom”, e o mesmo se aplica a todos os outros nomes139, como imenso (immensus), sim-

ples (simplex) e infinito (infinitus) – nomes estes que coexistem no Ser divino140.

Deus manifesta-se e oculta-se simultaneamente: manifesta-se para o pensamento, mas oculta-se para a compreensão. E se se perguntar como é que Deus se conhece, se algo de seu está mais de

137I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 391b). 138Ibidem.

139I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 398a). 140III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 301a).

um lado ou do outro, deve dizer-se que Deus está “integralmente” de ambos os lados, e só assim se dá a conhecer141.

Santo Agostinho distinguiu, de modo calro, attingere de com- prehendere142. Uma coisa é ver, outra coisa é ver e compreender.

O que se apreende (aspicio) não é totalmente apreendido. São Boaventura recolhe essa distinção, que Anselmo igualmente as- sumira, separando pensamento (intelligere) e compreensão (com- prehendere): Deus mostra-se integralmente, mas não é compreen- dido por nenhuma criatura, quer unida quer separada143. Deus é

incompreensível, visto que o Ser divino jamais se pode fazer igua- lar/fechar nos termos que o conhecem144: conhecemos por seme-

lhança e não por essência145. Ou seja, há um certo modo “positivo”

e um certo modo “privativo” no nosso conhecimento de Deus; posi- tivo, no que respeita à capacidade da nossa inteligência, e privativo no que respeita à mais íntima constituição do próprio Ser divino146.

Sublinhe-se: pode conhecer-se Deus totus sed non totaliter147,

isto é, a impossibilidade de conhecermos Deus “totalmente” não obsta que não o possamos conhecer sicuti est. A incompreensibili- dade, portanto, não se reflecte no conhecimento, uma vez que não torna Deus estranho ao pensamento.

Recorde-se agora a concepção bonaventuriana de pensar: “Pen- sar nada mais é do que conhecer o que se diz”. Como acima vi- mos, o Doutor Seráfico associa intimamente os conceitos de pen- samento, linguagem e conhecimento – sem os considerar, contudo, numa exacta equivalência. Propriamente falando, não se diz o que se não pensa, não se pensa o que se não conhece. “Nada é possí-

141III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 303a).

142AGOSTINHO, Sermo 117, c. 3, n. 5 (PL, 38, 663). 143III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 301a).

144III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 303b). 145I Sent. d. 17, a. un., q. 4 (I 300a). 146Ibidem.

vel nomear sem o conhecimento da coisa nomeada”148. Ou seja, o

conhecimento pertence à própria essência do pensamento, do qual a linguagem é manifestação.

Mas, como vimos também, o nosso Santo atribui à metáfora funções próprias na nomeação do Ser divino. Chega mesmo a re- petir que a metáfora possui uma dupla razão: uma é a semelhança expressa, a outra é a nossa instrução149. Os modos simbólicos não

são artifícios a que a razão poderia recorrer por defeito de verdade.

No documento TEOLOGIA E METÁFORA EM BOAVENTURA (páginas 30-43)

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