• Nenhum resultado encontrado

Do conceito à metáfora

CAPÍTULO 2 – POR OUTRO MÉTODO

2.1 Do conceito à metáfora

A palavra “conceito” vem do latim conceptu que significa “concebido”, refere-se

à representação concebida pelo intelecto de uma ideia ou objeto, de modo que a própria representação concebida se confunda com a ideia ou o objeto representado. Portanto, a concepção sugerida na palavra ocorre no âmbito da linguagem, uma vez que a representação empreendida pelo intelecto de um determinado objeto ou ideia se dá através de palavras.

O conceito, no âmbito da tradição filosófica, pretende captar a essência de uma ideia ou objeto em uma linguagem objetiva que possa ser universalizada. Sendo assim, o conceito será composto por uma determinada interação de palavras que buscam unificar, em um único conceito, um conjunto de sentidos dados a uma mesma ideia ou objeto. Esse processo representativo conforme Nietzsche ocorre através de generalizações e simplificações resultantes da igualação de propriedades e características semelhantes das ideias ou objetos representados. Fazendo com que o

conceito possua uma “tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual

– uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual” 79

. O conceito, no sentido

metafísico, parte da crença de que existe um “mundo verdadeiro” e uma “essência” nas

coisas, que seria acessível através de um “eu que pensa” 80

que tem acesso ao mundo verdadeiro.

79

GC §111.

80

Através de palavras e conceitos nós não chegamos jamais a penetrar a muralha das relações, nem mesmo a algum fabuloso fundamento originário das coisas... nós não ganhamos nada que se assemelhe a uma veritas aeterna. É incondicionalmente impossível, para o sujeito, querer conhecer e ver algo acima de si mesmo; tão impossível que conhecimento e ser são, de todas as esferas, as mais contraditórias.81

A filosofia, segundo Nietzsche, ocupou-se em formar conceitos por acreditar que os mesmos poderiam ser eternos e imutáveis, uma vez que se remeteriam diretamente à essência, ou ao ser, das coisas. Os esforços empreendidos pelos filósofos caracterizam-se em uma tentativa frustrada de mumificar e congelar uma realidade

imersa no devir, em constante mutação. Desse modo, “tudo o que os filósofos

manejaram, por milênios, foram conceitos-múmias; nada realmente vivo saiu de suas

mãos” 82

. O que a linguagem torna presente na nossa consciência não são as coisas em si mesmas, sua essência, mas o modo como nos relacionamos com elas.

As palavras expõem uma imagem não um processo verdadeiro, cada palavra é resultado da experiência de cada um. De modo que cada um tem a sua própria

interpretação sobre uma determinada palavra, logo, “não basta utilizar as mesmas

palavras para compreendermos uns aos outros; é preciso usar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum

com o outro” 83. Só podemos falar daquilo que é comum, apenas as experiências mais

superficiais podem ser comunicadas, já que para tanto se faz necessário que o outro possua uma carga de vivências semelhante as nossas para que a comunicação se efetive. A linguagem, para Nietzsche, é antropomórfica e só exprime traços demasiado humano das coisas. Nós humanizamos o mundo a cada palavra que atribuímos a ele, toda palavra já na sua origem é uma interpretação, é uma transposição entre aquilo que pensamos e a palavra que associamos a esse pensamento. Desse modo, a linguagem designa as relações entre as coisas e o homem. Tal designação se dá através da elaboração de metáforas, esse processo, descrito em Sobre verdade e mentira, se dá através de um estímulo nervoso que é transposto em uma imagem, formando assim uma metáfora, em seguida, essa imagem é transposta em um som, formando uma nova metáfora: logo tudo o que sabemos das coisas são as metáforas que associamos a elas.

81

FETG, § 9

82

CI, A razão na filosofia, §1. 83

Nietzsche pretende mostrar que o conceito é uma generalização, um abandono das diferenças individuais, um amontoado de estímulos agrupados e ordenados em palavras.

O conceito, segundo Nietzsche, não se remete a nenhuma essência, ao contrário, está mais distante da realidade porque despreza todas as singularidades e individualidades que o originaram. Em A gaia ciência, sua intenção é abandonar a lógica que impõe uma suposta dicotomia entre o conceito e a aparência, argumentando que “a reputação, o nome e a aparência, o peso e a medida habituais de uma coisa, o modo como é vista (...) a aparência inicial termina quase sempre por tornar-se essência e

atua como essência” 84

.

A verdade ou essência como definida pela filosofia é incognoscível, tudo que é cognoscível são as aparências, esse é o modo que nos é dado para ter acesso às coisas. Como um médico da cultura, o filósofo deve ser um artista da ciência, um compositor de pensamento reflexivo, recusando os cálculos da ciência e deixando aflorar sua sensibilidade, retendo-se na aparência, como um músico que preza mais pela beleza e pela harmonia do seu som, do que pela métrica que fundamentam suas partituras.

Para expressar a ideia de movimento, de um devir heraclitiano, Nietzsche irá contrapor o conceito à metáfora. Para ele, todos os sistemas filosóficos dependem dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema racional, portanto em dissolver uma imagem em um conceito. Enquanto a metáfora intuitiva é única e individual, o conceito é regular e rígido e parte da tentativa de se definir uma universalidade que só existe na palavra, não nas coisas.

O termo metáfora deriva da palavra grega metaphorá composta pela junção de

dois elementos: meta - μετα - que significa, sobre, além - como em meta-física - e

pherein - φέρω - que significa transporte, transposição. Neste sentido, a metáfora surge como um recurso que possibilita um transporte, uma transposição ou transferência de um sentido próprio, comumente identificável, em um sentido figurado, sujeito a diversos sentidos e consequentemente à diversas interpretações.

Para Nietzsche, “fomos capazes de criar formas muito antes de saber criar

conceitos” 85, por isso ele irá valorizar, em seu pensamento, a imagem em detrimento da

84

GC § 58

85

ideia, o que necessariamente acarretará na utilização da metáfora em detrimento do conceito como recurso filosófico.

Nietzsche empreende em A gaia ciência uma tentativa de conceber um pensamento livre das amarras do conceito, de seu caráter estático, racionalista e universal, adotando um estilo metafórico para expor seus postulados. Ao valorizar as metáforas o filósofo pretende enfraquecer a concepção do conceito fechado em si mesmo, dando a ele através das metáforas a possibilidade de abertura. Nesse sentido, a metáfora não é somente um recurso utilizado pela retórica, um mero ornamento poético e estilístico como advertia Aristóteles em A Poética, é um recurso que possui valor filosófico. Como afirma Eric Blondel.

Insistiu-se, até o momento, em considerar a escrita ‘poética’ e metafórica de Nietzsche, ora como a simples ornamentação da prosa filosófica – não raro insípida – por parte de um poeta genial, ora como uma decoração que os ‘literários” tanto privilegiam e que os filósofos se esforçam desesperadamente para pôr de lado. Seria, no entanto, muitíssimo sensato, ou, então, assaz filosófico indagar se o ‘estilo’ de Nietzsche não encarnaria, por sua deliberada escolha pela polissemia metafórica em oposição à neutralidade conceitual, a exigência mesma de uma preferência filosófica determinada, análoga, até mesmo em sua escrita, àquela dos Pré- socráticos. Já que, para Nietzsche, “a metáfora não constitui, para o verdadeiro poeta, uma figura de retórica, mas, antes, uma imagem substitutiva que, no lugar de uma ideia, paira realmente diante de seus olhos” (GT/NT S8). Fomos capazes de criar formas muito antes de saber criar conceitos (XI, 25[463]). (...) Dá-se muito pouca atenção porque, sob o pretexto de rigor filosófico ou “cientificidade”, tais metáforas não parecem jamais terem sido consideradas nelas mesmas, a não ser enquanto vestimenta retórica a ser arrancada a fim de que se alcance, pois, conceitos falsamente vaporosos por si próprios. 86

Em A gaia ciência Nietzsche expõe muitas das teses centrais de sua filosofia através de uma linguagem metafórica, descrevendo-as por analogias em detrimento de conceitos. Assim se dá, entre outras, com a descrição metafórica da morte de Deus e do eterno retorno que certamente não possuiriam o efeito que possuem se fossem descritas de outra forma.

O estilo aforismático, permeado por metáforas, permite uma abordagem singular. Por intermédio dele Nietzsche aborda temáticas semelhantes através de textos singulares. Cada aforismo de A gaia ciência possui vida própria, seu conjunto nos

86

possibilita transposições semelhantes às ocorridas entre a palavra e o conceito, por

assimilação, pela “igualação do não igual” abstraímos imagens, metáforas, e a partir daí

podemos ter uma interpretação única, própria, fruto de nossa subjetividade. Ao adotar esse estilo metafórico, Nietzsche dissocia sua filosofia do método científico e do discurso comumente tido por filosófico, ao adotar elementos que, de acordo com a tradição, seriam alheios à filosofia e pertencentes exclusivamente à arte. Devido a isso

até hoje “sob o pretexto de rigor filosófico ou ‘cientificidade’, tais metáforas não

parecem jamais terem sido consideradas nelas mesmas, a não ser enquanto vestimenta

retórica” 87

, mero jogo estilístico, pois acredita-se que não representem “conceitos

falsamente vaporosos por si próprios”88.

O valor filosófico da metáfora reside em proporcionar um conhecimento mais imagético, mais próximo à poesia e a arte, mais humano e menos calculador, um saber

mais preocupado em criar do que em “descobrir” supostas essências nas coisas. A

singularidade de A gaia ciência é a utilização da metáfora como um recurso filosófico válido, enaltecendo assim o caráter criativo daquele que interpreta, do leitor interessado. O poder criativo desse estilo consiste na possibilidade de construção de diversos sentidos em uma mesma sentença. Criar é transvalorar, é mudar, é fluir, é construir o novo. O poder criador será trazido por Nietzsche na convocação da metáfora, com ela, o filósofo pretende instigar no leitor a capacidade de pensar por si mesmo.

Documentos relacionados