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Do consenso à convergência: uma nova compreensão do uso público da razão

Capítulo 5 – A proposta de Razão Pública por meio da convergência

5.2 Do consenso à convergência: uma nova compreensão do uso público da razão

Gerald Gaus é o autor que lidera a construção teórica de um modelo de razão pública fora da base consensual rawlsiana, por isso a investigação se debruça sobre sua construção e de seus seguidores (tal como Kevin Vallier), nesse momento, a assentar suas premissas teóricas na teoria da convergência no intuito de subsidiar a tese de MacCormick no Direito.

A ideia de razão pública – cuja paternidade é atribuída a Rawls, deriva de um percurso histórico muito mais longo, herdeiro da tradição filosófico-liberal ocidental. Ao interpretar essa tradição – principalmente à luz da leitura de Rousseau e Kant –, Rawls desenvolveu toda sua construção de consenso e razão pública como fórmula para solução do fato do pluralismo213.

Uma interpretação diferente pode apontar para outro sentido da tradição filosófica continental a nos auxiliar cada vez mais a perceber o uso público da razão. De fato, a ideia de razão pública é proveniente da teoria do contrato social – como visto em Rawls –; no entanto, não imediatamente idêntica, há diferenças substanciais. A ideia de razão pública – seja em Rawls ou em Gaus– tenta recriar um formato de “contrato social” entre os indivíduos de uma

210 Um esforço de inclusão pode ser feito de diversas maneiras, por exemplo, quando se compreende que o

conteúdo da razão pública deve ser preenchido não com razões que os cidadãos obrigatoriamente vão aceitar, mas sim que poderiam aceitar. SOLUM, Lawrence B. Construction Ideal of Public Reason. San Diego Law

Review, v. 30, p. 736, 1993.

211 GAUS, Gerald. Public Reason Liberalism. In: The Cambridge Companion to Liberalism Edited by Steve

Wall. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.p. 21.

212 Refiro-me a obra já mencionada GAUS, G. The Order of Public Reason: A Theory of Freedom and

Morality in a Diverse and Bounded World. Londres: Cambridge University Press, 2011.

213 GAUS, Gerald.Public Reason Liberalism. In: The Cambridge Companion to Liberalism Edited by Steve

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comunidade política; isso é inegável, não nos parece um equívoco tentar expressar a razão pública dessa forma, como um esforço neocontratualista.

Todavia, enquanto os contratualistas tradicionais focaram-se na ideia de consentimento mútuo entre os indivíduos, a lógica da razão pública busca assentar suas bases na exigência de justificação pública.214. Esse ponto é central. Objetivamente, é possível dizer que a tradição contratualista sempre elegeu o fato do pluralismo como um desafio a ser enfrentado, mas – ao contrário do que menciona Rawls – a necessidade de compartilhamento de valores através de consenso não é a única leitura possível dessa tradição. Nas palavras de Vallier, apresentam-se bem as duas compreensões:

A tradição do contrato social foi dividida entre estes dois métodos de resolver o problema da cooperação social: a cooperação social deve ocorrer com base no raciocínio comum [Rawls] ou indivíduos com doutrinas diferentes podem simplesmente convergir para instituições compartilhadas por suas próprias razões

[Gaus]?215

Essa é a encruzilhada da razão pública liberal. O projeto pode seguir dois caminhos. O primeiro é o modelo consensual¸ no qual as razões devem ter algum conteúdo em comum, tal como ser compartilhada ou objeto de acesso a todos (shared public reason). O segundo formato é modelo convergente, que não acolhe as premissas narradas e exige que os indivíduos convirjam em direção à formação de instituições públicas.216Nesse sentido, cresce a viabilidade de um paralelo – como veremos – com a doutrina neoinstitucionalista, haja vista que o Direito para esse ramo do pensamento é uma instituição. Por ora, voltemos a Gaus; as identificações entre as duas construções irão aparecer naturalmente ao longo da narrativa.

Para Gaus, o desacordo moral é inevitável – Rawls até aqui concorda –, logo reconhece que os cidadãos têm razões distintas; a convergência não busca um equilíbrio consensual, mas sim a “justificação da consciência pública” 217do pluralismo razoável. Exemplificando a ideia basilar.

214VALLIER, Kevin. Must politics be war? In: Defense of Public Reason Liberalism: restoring our trust in free

society. Oxford: Oxford University Press, 2018.p. 10.

215 VALLIER, Kevin. Convergence and Consensus in Public Reason. Public Affairs Quarterly, v. 25, n. 4, p.

261, 2011.

216 Na distinção de Kevin Vallier, “Uma concepção de convergência de razões exige apenas que os indivíduos

aceitem leis e propostas políticas por suas razões individuais; enquanto o consenso requer que as leis e propostas políticas sejam aceitas por razões que têm alguma propriedade epistêmica comum como a compartilhabilidade”, VALLIER, Kevin. Convergence and Consensus in Public Reason. Public Affairs Quarterly, v. 25, n. 4, p. 263, 2011.

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Em um restaurante, trabalham três chefes de cozinha de diferentes nacionalidades e formação distintas. Se o prato a ser servido for um peixe cozido, diversos serão os argumentos para a utilização de ingredientes dos mais variados. O chefe francês vai argumentar pelo uso de certos ingredientes típicos da sua formação, assim como o marroquino irá sugerir os temperos que está mais acostumado a usar, e o chefe inglês também usará sua experiência.

Talvez se cada um fosse fazer o prato sozinho,o resultado seria diferente, mas a proposta não é essa, o intuito é cozinhar um prato feito pelos três em conjunto. Se formos buscar um consenso a ser justificado à luz do que cada chefe tem para argumentar em defesa da sua experiência culinária, a dificuldade em se chegar ao resultado seria grande. O chefe inglês terá de ser convencido do uso de um tempero muito forte proposto pelo marroquino, talvez não se convença nunca, ou caso demonstre anuência pode ser apenas por gentileza, sem mudar realmente de opinião. Mas, se um deles justificar aos outros a necessidade deformarem um projeto coletivo e todos buscarem o resultado da entrega do prato, simplesmente confiarem e convergirem para esse resultado, será atingida a meta de forma mais simples e estável.

Assim, a convergência, por não exigir a aceitação recíproca e o compartilhamento de razões, avança para, de forma iterativa, recordar à comunidade política a natureza indissociável do pluralismo nas concepções de bem. O chef inglês não precisa ser convencido de que a pimenta marroquina é o melhor ingrediente para o peixe, pois exige-se apenas que os cozinheiros devam convergir no resultado final do prato. Em um modelo de democracia deliberativa cujo o centro de sua preocupação é a justificação pública, a lembrança da diversidade aos cidadãos pode trazer maior sinceridade nas interações políticas a promover, portanto, uma maior estabilidade social, promessa feita pelos adeptos da compreensão consensual, mas não atingida.218

Registre-se que a exigência do modelo consensual ao uso de razões permitidas – já muito criticado principalmente no tocante a razões religiosas – gera uma estigmatização de indivíduos em detrimento das concepções de bens de outros indivíduos igualmente racionais que, uma vez secundarizados, não são reconhecidos como razoáveis, a ferir a igualdade fundamental entre os homens. A convergência rejeita essa premissa, a incluir todos na jornada

218Ibdem. Com relação à estabilidade, há um experimento científico que mostra a autenticidade desta

compreensão. Foram feitos testes científicos experimentais reproduzindo situações controladas em computadores de maneira a demonstrar cientificamente, ao menos se trata de uma evidência, que a estabilidade do consenso (Rawls) é a menor do que a estabilidade do modelo convergente (Gaus). Cf. The Fragility of Consensus: Public Reason, Diversity and Stability. In: European Journal of Philosophy, v. 23, Issue 4, p. 936, Dec. 2015.

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de construção da cidadania. Em outras palavras, o modelo consensual comprime o fato do pluralismo; a convergência, não.

A convergência reconhece nos indivíduos um amplo desenho social de atuação, a fomentar uma vida de acordo com seus próprios julgamentos (moral individual), ou seja, se afina com o direito fundamental de liberdade, tão perquirido pela tradição liberal. Objetivamente, é possível constatar o ataque do modelo consensual à liberdade quando alguns indivíduos são restringidos de atuar de forma legítima no espaço de uso público da razão para impedir a produção de leis coercitivas. É o exemplo, mais uma vez, de uma pessoa religiosa, cuja identidade torna-se dividida entre o público e o privado, a ponto de ser culpada por sustentar no espaço público sua crença219.

Após a apreensão das ideias básicas da teoria da convergência, enfrentemos o mais importante para a investigação. As características, peculiaridades e nuances da teoria.

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