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3.2 PERSPECTIVAS DE GÊNERO E MULHERES

3.2.2 Do contexto histórico, movimentos feministas e os sujeitos

Importante destacar que os diferentes movimentos feministas bem como as/os acadêmicas/acadêmicos que passaram a empregar com frequência o termo gênero e, por consequência, distanciando-se do termo woman9, desde o fim dos anos sessenta e setenta do século passado, quiseram buscar uma pluralidade dos diferentes tipos de sujeitos, além de evidenciar as diferenças sócio/hierárquicas entre mulheres e homens, de forma que as mulheres sejam consideradas efetivamente sujeitos políticos e de representação feminista, tal como postulam em seus textos Judith Butler (2003), Donna Haraway (2009) e Patricia Hill Collins (2016). As autoras destacam que o termo mulher evoca uma unicidade categórica, de maneira que se percebe uma impossibilidade de separação de gêneros como intersecções biológicas, políticas, raciais, sociais e culturais, além de descartar outras categorias de mulheres (negras, indígenas, refugiadas, pobres, religiosas, lesbianas, dentre outras) quando se pensa na unicidade categórica do termo mulher.

Destarte, se percebem que os estudos/movimentos feministas e de gênero, forçaram releituras do conhecimento produzido no seio do marxismo, psicanálise, biologia, fenomenologia, ciência e tecnologia, apenas para citar alguns campos do conhecimento, contemplando os sujeitos periféricos em seus construtos, pautas reivindicatórias e teorias produzidas. Além disso, inicia-se a produção de epistemologias de gênero/feministas próprias: explicitando o sistema patriarcal societário e saberes produzidos desde a sua gênese; promovendo críticas da forma como subcategoriza a questão de gênero dentro de um contexto de estrutura econômica e lutas de classes; descrevendo como se formam cognitivamente as identidades dos sujeitos, padronizando identidades de gênero/sexo ou produzindo identidades individuais e medicalizadas; denunciando a ideologia eminentemente masculina nas invenções, técnicas, metodologias e artefatos científicos e tecnológicos produzidos (HARAWAY, 2009; RAGO, 1998; SCHIEBINGER, 2014; SCOTT, 1995).

É pertinente dizer que as experiências históricas de diferentes grupos culturais e sociais contribuíram para a multiplicidade de olhares e pautas reivindicatórias dos movimentos feministas do século passado, inclusive percebendo-se influências em perspectivas de mulheres adotadas por expoentes teóricas como Beauvoir (1970) em 1949.

9 Os textos de Gayle Rubin (1993), Judith Butler (2003) e Margareth Rago (1998) relatam a terminologia gênero,

sexualidade e estudos de mulher e mulheres sob uma perspectiva histórica e crítica do contexto social, político, moral e econômico estadunidense, sobretudo no caso das duas primeiras autoras, e questões pertinentes ao Brasil, no caso em específico de Rago (1998).

Para ilustrar com um exemplo histórico: o discurso proferido por Sojouner Truth10 (2012) na primeira convenção dos direitos da mulher de Ohio, nos Estados Unidos, em 1851, sobre a condição das mulheres e, especialmente, das mulheres negras no período escravocrata (e pós- escravocrata estadunidense), têm semelhanças com o que Beauvoir explicitaria sobre a opressão vivida pelas mulheres na década de 1960.

Com a palavra inicial, Truth (2012, p. 65. Tradução nossa)11:

Acaso Deus pretendia que os homens tivessem os direitos das mulheres? Não e não! Eu lhes digo que os homens têm todos os direitos. Estais [dirigindo-se aos homens] temerosos que as mulheres retirem os vossos direitos? Elas não os querem. Tenho trabalhado tanto como a maior parte dos homens. Se eu trabalho tanto quanto um homem, por que não me podem pagar como um? Se escrevo e faço contas tão bem quanto um homem, por que não posso ganhar tanto dinheiro quanto ele? Eles [os homens] não fazem mais do que eu. Por que têm [os homens] um pagamento maior? Como as mulheres alemãs, elas fazem tanto trabalho quanto os homens, porém eles ganham um dólar e elas ganham meio. Porque é uma mulher [refere-se à categoria]. Ela, se puder, come tanto quanto um homem. Ninguém deveria julgar quanto come uma mulher, ou quanto juízo tem – são coisas que não podem ser evitadas. Tenho conhecido mulheres que teriam muito mais juízo do que os homens. Tenho falado com elas. Dê a elas uma oportunidade [dirigindo-se à categoria homem]. Isto é o que os homens temem: tem medo de que as mulheres os depreciem. As mulheres deveriam superar os homens durante algum tempo, para que eles voltem a seu lugar.

Embora não tenha sido uma acadêmica, e dificilmente poderia ser em sua época em razão de ser mulher e negra, Truth (2012) habilmente descreveu a condição ontológica negativa do que seria uma mulher, especialmente a mulher negra, na sociedade estadunidense. Interessante notar que aproximadamente 109 anos depois deste discurso proferido em 1851, no fim da década de 1940 do século passado, Beauvoir (1970) traz questionamentos

10 Escravizada e com pouca instrução, Sojouner Truth se tornou uma das primeiras ativistas feministas e negras

estadunidenses, sendo uma excelente oradora. Tem-se conhecimento de seus discursos graças a transcrições posteriores. Seus discursos sobre a causa negra e, em particular, sobre as mulheres negras nos Estados Unidos, serviram de influência para que teóricas como Beauvoir (1970) encampassem não somente os direitos negligenciados das mulheres na primeira e segunda metade do século XX, mas fornecesse substrato para que surgissem os women studies e, mais tarde, os estudos de gênero a partir de 1960/70, abarcando a pluralidade e multiplicidade dos sujeitos (GELEDÉS, 2009; TRUTH, 2012, p. 59-70). Para saber mais, link do Instituto da Mulher Negra Geledés: <http://www.geledes.org.br/sojourner-truth/#gs.Rt=2Xnc>.

11 Texto original: ¿Acaso Dios pretendía que los hombres tuvieran los derechos de las mujeres? ¡No y no! Yo os

digo que los hombres tienen todos los derechos. ¿Estáis temerosos de que las mujeres os quiten vuestros derechos? Ellas no los quieren. Yo he trabajado tanto como la mayor parte de los hombres. Si yo trabajo tanto como un hombre, ¿por qué no me pueden pagar como a él? Si yo escribo y hago cuentas tan bien como un hombre, ¿por qué no puedo ganhar tanto dinero como él? Ellos no hacen más que yo ¿Por qué tienen que tener una paga mayor? Como las mujeres alemanas, ellas hacen tanto trabajo como los hombres, pero él gana un dólar y ella gana medio. Porque es una mujer. Ella, si puede, come tanto como un hombre. Nadie debería juzgar cuánto come una mujer, o cuánto juicio tiene ―son cosas que no se pueden evitar. Yo he conocido a mujeres que tenían mucho más juicio que los hombres. He hablado con ellas. Dadles una oportunidad. Esto es lo que los hombres temen ―tienen miedo de que las mujeres los degraden. Las mujeres deberían superar a los hombres durante algún tiempo para que ellos vuelvan a su sitio.

semelhantes aos proferidos por Truth (2012) sobre a condição ontológica negativa imputada à categoria mulher e como esta condição se expressa em diferentes campos da sociedade: econômico, biológico, psicossocial, tecnológico e científico. Por esta razão os questionamentos de Beauvoir (1970) no ano de lançamento da obra O Segundo Sexo, em 1949, sobre a condição da mulher na sociedade ocidental, notadamente a estadunidense e europeia, influenciaram decisivamente o contexto feminista dos anos de 1960 e 1970, inclusive no Brasil. É possível, portanto, estabelecer conexões entre o discurso de Truth (2012) e Beauvoir (1970), apesar da temporalidade e das pautas do feminismo negro terem sido difundidas/reivindicadas apenas a partir da década de 1980/1990.

Segue o argumento comparativo de Beauvoir (1970, p. 14-15):

Economicamente, homens e mulheres constituem como que duas castas; em igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores possibilidades de êxito que suas concorrentes recém- chegadas. Ocupam na indústria, na política etc, maior número de lugares e os postos mais importantes. Além dos poderes concretos que possuem, revestem-se de um prestígio cuja tradição a educação da criança mantém: o presente envolve o passado e no passado toda a história foi feita pelos homens. No momento em que as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens. Eles bem o sabem, elas mal duvidam.

Assim, é possível identificar perspectivas de gênero e sexo a partir das categorias mulher e homem debatidas por Truth (2012) e Beauvoir (1970), embora o conceito de gênero tenha sido desenvolvido somente depois de 197012. Também é possível sustentar a ideia de que ganhou-se espaço cada vez mais na academia13 e movimentos sociais a pluralidade de

perspectivas de sexo/gênero dos sujeitos, dos seus corpos, inclusive de artefatos produzidos para/por estes. Não obstante, o conceito de gênero encontra-se, então, em disputa pelos diferentes movimentos (acadêmicos e sociais) que o empregam, assim como o termo mulher pode incorrer no questionamento: de que mulher ou mulheres é a fala?

Joan Scott (1995, p. 74) apresenta o indicativo de resposta para esta pergunta. Nas palavras da autora “[...] isso exige uma análise não apenas da relação entre a experiência masculina e a experiência feminina no passado, mas também da conexão entre a história passada e a prática histórica presentes [...]”. Significa dizer que o contexto e práticas

12 Conforme Nicholson (2000), Louro (2003), Scott (1995) e Rubin (1993).

13 Maria Rosa Lombardi (2016), além de Collins (2016), Foucault (1977), Schiebinger (2001), Sardenberg

(2002), Costa (1994), são exemplos de autoras e autores que em seus estudos se notam perspectivas plurais de gênero e sexo dos sujeitos, interseccionando com diversos elementos da atividade humana, inclusive com a presença e participação feminina na ciência e tecnologia, componente de estudo desta dissertação.

históricas, além de promoverem a visibilidade e reconhecimento dos sujeitos periféricos (neste caso as mulheres), promovem a mudança da própria forma de se ler e interpretar um contexto histórico, ressignificando analiticamente.