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Do desrespeito da jurisprudência as garantias penais Necessidade de um giro

CAPÍTULO 3 DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DO GARANTISMO PENAL

4.1 Garantias processuais e sua importância para o sistema SG

4.1.2 Do desrespeito da jurisprudência as garantias penais Necessidade de um giro

Para que seja aplicado em um ordenamento o sistema SG, é necessária não só a positivação das garantias penais e processuais, como já ocorre em nosso Estado, ou a sua observância em toda a atividade legiferante, tema já abordado aqui ao sugerir a extinção de alguns tipos penais e a extinção de alguns requisitos fundantes da decretação da prisão preventiva, mas também uma real aplicação dessas garantias por parte dos magistrados no seio da atividade jurisdicional.

O grande desafio para que haja um sistema garantista é justamente como irão decidir os juízes quando utilizarem o poder de disposição, uma vez que o poder judicial, à medida que é também um poder de disposição, baseia-se, nos sistemas constitucionalmente positivos, nos princípios da estrita legalidade e da estrita jurisdicionariedade.

O fato de existirem decisões penais pautadas no poder de disposição não impede a sua justificação. Nesses casos, apenas não haverá uma justificação baseada em afirmações cognitivas, passíveis de verificação e refutação, mas sim sua realização a partir de juízos de valor não vinculados a previsões taxativas. Tais juízos são, para Ferrajoli, suscetíveis de argumentação e de controle conforme critérios pragmáticos de aceitação. Esses critérios são os princípios gerais presentes no ordenamento, que estão normalmente expressos em enunciados da Constituição e das leis, ou implícitos e extraíveis mediante elaboração doutrinária.

Naturalmente, ainda que dotados de valor normativo, os princípios gerais utilizados como critérios para argumentar o exercício do poder de disposição não têm mais do que uma capacidade extremamente debilitada de vinculação das decisões. Na realidade, operam não (como critérios de decisão) sobre a

verdade ou sobre a equidade, isto é, sobre a correspondência empírica, ainda que só aproximativa, entre as motivações aceitas e os fatos e as leis, senão diretamente como (critérios de decisão sobre) valores de justiça substancial, não definíveis em abstrato e, em certas ocasiões, incompatíveis entre si. Exigem, portanto, escolhas e valorações irredutivelmente discricionárias, que remetem à responsabilidade política e moral dos juízes. Precisamente, esta responsabilidade, ligada imediatamente aos valores de justiça substancial, expressos pelos princípios gerais é precisamente, com efeito, a de orientar politicamente as decisões e permitir sua valoração e seu controle cada vez que a verdade processual seja em todo ou em parte indeterminada. Pode-se, inclusive, dizer que um sistema penal será tanto mais próximo ao modelo garantista do direito penal mínimo quanto mais esteja em condições de expressar princípios gerais idôneos para servirem como critérios pragmáticos de aceitação ou de repulsa das decisões nas quais se expressa o poder judicial, em particular o de disposição. (FERRAJOLI, 2002, p. 139).

Assim, ao passo que os princípios gerais são criações doutrinárias elaboradas sobre normas ou sobre um conjunto de normas, a riqueza de princípios estará intrinsecamente ligada não apenas aos valores de justiça material incorporados no ordenamento, mas também à criação científica e jurisprudencial realizada pelos juristas do Estado.

Explicita o jusfilósofo italiano que por mais que o sistema penal adira ao modelo cognitivista e garantista, jamais será de fato um sistema completamente fechado, exigindo sempre, para o seu real funcionamento, heterointegrações baseadas na autonomia e discricionariedade do intérprete.

Assim, a utilização dos princípios gerais de direito, para embasar os espaços discricionários criados pelo poder de disposição, em um Estado Democrático de Direito e em um Estado garantista, é uma forma de observância do princípio da estrita legalidade e do princípio da estrita jurisdicionariedade.

Ademais, visando diminuir possíveis efeitos lesivos aos mais fracos, que, no processo penal, são os acusados – os quais podem estar sendo injustamente acusados, ou seja, serem inocentes - a atividade discricionária do juiz, o seu poder de disposição, tem, em nosso ordenamento jurídico, em nossa Constituição, bem como no sistema SG idealizado por Ferrajoli, um vetor interpretativo, qual seja, o princípio da presunção da inocência.

Acerca do supracitado princípio, leciona Aury Lopes Jr:

Em suma: a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de

tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente),

que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele.

Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – inicialmente – ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição; ainda na dimensão interna, implica severas

restrições ao (ab)uso das prisões cautelares (como prender alguém que não foi definitivamente condenado?)

Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa que que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção da inocência. (LOPES JR, 2016, p. 75-76).

Todavia, infelizmente, não é isso que vem acontecendo em terrae brasilis, onde, na verdade, configura-se o inverso, o que solapa a nossa Constituição, garantista desde o nascimento. O princípio da presunção da inocência vem sendo rotineiramente lesado em nossos tribunais, seja quando se decreta uma prisão preventiva fundamentada na manutenção da ordem pública, ou quando se requer que o acusado prove a sua inocência.

No sentido de desrespeito ao princípio e vetor interpretativo da presunção de inocência, podemos utilizar como exemplo a decisão polêmica e, para muitos, inconstitucional, proferida pelo Supremo Tribunal Federal – STF no Habeas Corpus 126.292, bem como nas ADC 43 e 44 que entendeu ser possível a execução provisória antes do trânsito em julgado:

Ementa: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO

CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.

(HC 126292, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016)

Por mais que os Ministros tenham entendido que não há na execução provisória da pena uma afronta ao princípio constitucional da presunção da inocência, não é isso que é possível de se inferir da leitura do artigo 5º, inciso LVII de nossa Constituição: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, pois o texto constitucional é claro ao expressar que só é possível culpar alguém após o trânsito em

julgado, o que acontece somente após o julgamento em todas as instâncias possíveis, o qual, dependendo da ação penal, poderá ser na 1º, na 2ª ou nas instâncias superiores.

Ademais, o referido princípio também se encontra positivado no ordenamento no Código de Processo Penal, em seu artigo 283, in verbis:

Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Esse artigo corrobora e acrescenta proteção ao princípio da presunção da inocência, que passa a ser positivado constitucional e infra-constitucionalmente.

Nesse sentido, ensina Pacelli:

De todo modo, a nova redação do art. 283, do CPP, parece mesmo fechar as portas para a execução provisória em matéria penal. O que, como regra, está absolutamente correto, em face de nossas determinações constitucionais, das quais podemos até discordar; jamais descumprir. (PACELLI, 2012, p. 493).

A partir de tudo quanto foi exposto, é nítida a necessidade de um giro interpretativo em nossos tribunais, para que a nossa Constituição e, em consequência, os preceitos garantistas idealizados por Ferrajoli, passem a ser efetivamente utilizados, gerando, assim, um processo penal garantista e legitimado para condenar aqueles que forem condenados.

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