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Tendo estabelecido e distinguido os conceitos de liberdade interna e liberdade externa, bem como o princípio da autonomia, podemos agora adentrar na construção filosófica kantiana do conceito de direito.

Se somos livres, por podermos agir a partir da nossa condição de auto- legislação interna, dizemos que somos seres morais. Mas se podemos, por outro lado, também respeitar uma legislação, cuja função é a garantia da liberdade externa, sobretudo do respeito à liberdade de cada um como fundamento de reciprocidade, consoante a coexistência da liberdade de todos, afirmamo-nos enquanto seres que convivem em uma sociedade civil, na qual a garantia do respeito mutuo está no direito.

Para Kant a necessidade humana de impor leis para si mesmo nasce da própria condição fenomênica do homem.O ser humano, perante sua condição sensível, necessita estabelecer leis para si, fundadas na sua condição inteligível, racional, a fim de garantir seu bem maior que é a liberdade. O direito, então, se apresenta como instrumento complementar da razão que visa preservar a convivência dos seres livres, mesmo quando eles não fazem inteiramente do dever o motivo de sua ação.42

42 Assim, o interesse da razão é preservado mesmo quando os indivíduos agem com outros

interesses que não o dever moral: “O fato de o homem como ente sensível nem sempre seguir a esta lei (lei moral) resulta de que ele freqüentemente põe como fundamento das suas máximas não os interesses da razão, mas os interesses das inclinações. Enquanto estes interesses

O direito tem questões básicas que determinam sua orientação, a saber: a lei externa especifica aos ramos do Direito, a coerção externa como força da prescrição e a própria punição como agente cogente para a garantia do cumprimento das regras, questões sobre as quais iremos nos deter mais adiante. No entanto, existe uma formulação primária que constitui o norte para a sua definição e até mesmo para a distinção entre ações moralmente corretas e ações juridicamente corretas. Esta se expressa justamente pela condição de que para o Direito não importa, ou ainda não se exige, que o agente realize sua ação com base numa orientação interna, ou seja, por dever; mas que a ação, e neste mister, o cumprimento da lei externa, se estabeleça segundo o móbil externo da legislação jurídica.

Segundo Ricardo Terra a legislação externa possui a condição necessária do cumprimento do dever externamente, assim afirma:

No plano jurídico não se fica no âmbito da intenção, apenas a exterioridade das ações é considerada.Os deveres, segundo a legislação jurídica, só podem ser deveres exteriores, pois esta legislação não exige que a idéia deste dever, que é interna, seja por si mesma principio de determinação do arbítrio do agente, e, como ela precisa de móbiles apropriados às leis, apenas pode ligar as leis a móbiles exteriores (TERRA 1995, p. 77).

Não podemos compreender que o Direito, por ser fundado em uma legislação externa, não fosse em qualquer hipótese ter uma orientação moral. Na verdade, as ações possuem os seus móbeis. Consoante com isso, um agente que toma como móbil uma lei interna, ou moral, pode agir conforme o Direito. Neste caso, a ação tanto seria por dever, por atender ao cumprimento do dever

representam a dependência da faculdade de desejar de sensações de objetos, o interesse da razão implica uma independência autodeterminação da vontade pela razão” (ROHDEN, 1981,p. 50).

internamente, quanto seria conforme o dever, por atender ao dever externamente. Para tanto, o Direito tem como essência o objetivo da preservação da liberdade, que nasce inicialmente no sujeito moral, o qual individualmente respeita a lei que cria para si mesmo sem qualquer interesse. Com isso, queremos dizer que se não existisse moral, uma legislação interna, o Direito não teria sentido. Primeiro, porque o direito tem seu fundamento na liberdade de cada um; depois, porque a garantia do dever e da própria razão como fonte de realização da liberdade, não faz sentido sem a prescrição da lei moral. Não há o que se falar então de Direito sem a Moral.43 Isso, porém, não quer dizer que o Direito e suas próprias ações não possam ser conformes a lei e ter móbeis destoantes da prescrição da lei moral. O agente pode ter por móbil algo imoral e não obstante agir conforme o dever jurídico. O que devemos entender é que segundo Kant o Direito e a Moralidade tem um mesmo propósito, que é a garantia da liberdade, e mais que isso, só é possível pensar em uma legislação externa por existir a condição interna de respeito à liberdade, a saber : a possibilidade da moralidade em cada um dos seres racionais.

43Como já salientamos em nota anterior a Moral engloba para Kant o direito e a ética: “A análise da

relação da moral com o direito exige que se precise o sentido desses termos, que têm, às vezes, uma acepção ampla e outra restrita. Ao distinguir as leis da natureza das leis da liberdade, o termo moral, em Kant, adquire sentido amplo; aquelas ultimas são denominadas de leis morais. Kant afirma que essas leis, enquanto dizem respeito “apenas às ações exteriores e sua legalidade (Gesetzmässigkeit), chamam-se jurídicas; mas, se exigem também que essas mesmas (leis) devam ser os princípios de determinação (Bestimmungsgrunde) das ações, elas são éticas, e diz- se: o acordo com as primeiras é a legalidade (Legalität) das ações, o acordo com as segundas, a moralidade (Moralität) das ações” (Rechtsl., VI, 214). Moral em sentido amplo compreende a doutrina dos costumes englobando tanto o direito quanto a ética. Por isso, não se podem tomar como correlatos os pares moral/direito e moralidade/legalidade. Uma leitura que os identificasse levaria a uma separação entre direito e ética sem apontar para os elementos comuns. Quanto à ética (Ethik), Kant assinalou que significava a doutrina dos costumes em geral, e posteriormente passou a designar apenas dessa parte, a doutrina da virtude (Tugendl., VI, 379). Como divisão da doutrina dos costumes (da moral), o direito se opõe à ética (doutrina da virtude), e não à moral, que é mais ampla que esta; o que pode confundir é a denominação de moralidade ao acordo das ações com as leis éticas. Convém notar que nem sempre Kant mantém os sentidos das palavras tal como foram firmados aqui, o que evidentemente não facilita a tarefa do leitor” (TERRA 1995, p. 77).

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