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3 DAS MINHAS-ALHEIAS-PALAVRAS: SUBSÍDIOS TEÓRICOS DO CÍRCULO DE

3.2 NOTAS SOBRE RELAÇÕES DIALÓGICAS

3.2.1 Do discurso de outrem

Uma das formas de relações dialógicas é a apropriação do discurso de outrem. Isso porque, sob qualquer nível de análise, nossas palavras comportam uma certa direção ideológica, visto que elas não provêm do dicionário, mas, conforme Bakhtin (1990), dos lábios dos outros. Nas circunstâncias da vida, estamos – a todo momento – manipulando a

palavra alheia, embora a ideia de “manipulação” não tenha caráter negativo, tal qual se atribui comumente a esse signo (PONZIO, 2009).

A palavra tem, portanto, duas direções. Refere-se ao próprio objeto temático e, simultaneamente, expressa um ponto de vista em relação a ele. Por esse motivo, podemos afirmar que essa “manipulação” não se faz, de modo algum, mecanicamente nem o faz a partir de um material morto. Pelo contrário, tal procedimento se realiza, antes de tudo,

como palavra viva, que renova a própria manipulação, e com a qual tem que estar relacionada, prevendo e prevenindo suas possibilidades de retroação, de resistência, de recusa ou de eliminação de novos sentidos que lhe são atribuídos e que a instrumentalizam (PONZIO, 2009, p. 103).

Sempre que manipulamos o dizer de outrem, imprimimos determinada carga

emotiva, valorativa, uma apreciação axiológica. Nessa tomada de posição – tendo em vista

que isso ocorre no processo de revozeamento –, construímos, ao mesmo tempo, um projeto

maneira, uma perspectiva volitivo-axiológica, e, a partir dela, identificamos polemizações, concordâncias, dissonâncias, refutações, entrecruzamentos de dizeres.

Na voz de Bakhtin (2008, p. 223),

O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestimos terceiras de nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas.

Nossos dizeres são povoados por discursos alheios materializados em distintos matizes. Os enunciados trazem apreciações de outrem: são sobrecarregados de história, de vida, de sentido. Nesse caminho teórico, são acontecimentos únicos que (des)velam um acento de valor.

Tais considerações são possíveis porque, segundo Bakhtin/Volochinov (2006), todos os recursos sintáticos que utilizamos não devem ser, de modo algum, “divorciados” das questões ideológicas. As ideologias integram o enunciado e não a oração gramatical. Por isso, análises que contemplem essas dimensões precisam situar sempre o enunciado no contexto real, dotando de autonomia os sujeitos falantes.

O discurso de outrem não pode ser considerado, em nenhuma hipótese, mera reprodução ou remissão a outro sujeito e, consequentemente, a outro tempo, espaço e a outra vontade discursiva. Concebido como uma unidade integral cujas visões de mundo ficam explícitas, o discurso de outrem, quando revestido de nova entonação, afasta-se da ideia de cópia, transcrição, simples alusão. Em tal relação, o sujeito-enunciador demonstra uma posição ativa diante de um mundo valorado. O sujeito elabora, dessa maneira, formas de

apreensão da palavra alheia, conservando – embora parcialmente – a autonomia do discurso

de outrem.

Consiste, na verdade, em um movimento ativo de enunciação, uma vez que a

escolha por um modo – dentre tantos – de assimilar o enunciado de outrem concretiza a

posição valorativa do enunciador, seja no plano sintático, seja no temático. Temos, destarte, o “fenômeno da reação da palavra à palavra” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006, p. 151).

Nesse caminho, tudo o que se diz tem uma importância muito grande porque revela o que é ideologicamente significativo. Antes, vale a ressalva, “aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio

de palavras anteriores” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006, p. 154). Esse posicionamento ratifica a nossa discussão: ainda que seja constituído de dizeres anteriores, o sujeito retoma discursos outros com alguma finalidade que não é, mesmo na dita “reprodução literal”, isenta de qualquer valor apreciativo. As estratégias de que se utiliza o sujeito-enunciador representam a orientação ativa do falante, sua compreensão responsiva.

O dialogismo se assenta, portanto, no fato de que a palavra se dirige a alguém e

busca sempre – pois é sua condição de existência – uma resposta. Vale, ainda, fazer um

esclarecimento: a resposta não deve ser compreendida, sob esse enfoque teórico, como uma reação mecânica.

Na elaboração do discurso, o destinatário aparece, inevitavelmente, porque é um contemporâneo do contexto do enunciador, um parceiro da interação sem o qual não há razão em enunciar. Ele marca subjetivamente o discurso, além de integrá-lo. Qualquer enunciado

mostra-se, pois, um objeto tenso de discursos de outrem; afinal, o “discurso nasce no diálogo

como sua réplica viva, forma-se na mútua orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto” (BAKHTIN, 1990, p. 86).

Tudo isso parece ter ainda mais importância quando refletimos sobre nossa própria constituição enquanto sujeitos falantes, seres de linguagem. Não podemos negar a relação alteritária constitutiva de qualquer ser humano:

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe, etc.), com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p. 374).

As considerações acerca das relações dialógicas nos permitem entrever o quanto nossa vida é constituída pelo olhar, pela palavra, pelos julgamentos dos outros. O enunciado, esteja servindo às representações literárias, esteja a serviço das múltiplas práticas de linguagem da vida corrente, deriva de uma luta de consciências ideologicamente constituídas.

Não se pode ignorar a importância dos dizeres – formadores de estágios da

interação verbal infinda – que circulam na sociedade, pois muitos deles, em algumas ocasiões,