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Do drama dos traficantes à agência e reputação do queijo

3 DO CAMPO POLÍTICO À POLÍTICA DO CAMPO: TRILHAS DE

3.2 Do drama dos traficantes à agência e reputação do queijo

“Como em qualquer pesquisa, a observação está ao serviço de uma construção do objeto: ela não seleciona da realidade senão uma porção cujos limites são traçados por uma problemática. (...) ela convida o pesquisador a se considerar elemento desta totalidade e a analisar os efeitos de sua presença antes que tentar a qualquer preço neutralizá-los” (CHAUVIN; JOUNIN, 2015, 124- 125).

Há sete anos (em 2010) fui contratada para atuar como pesquisadora em um projeto vinculado ao Museu da Cultura Cearense (MCC), chamado Comida Ceará. Intencionando realizar uma leitura dos sistemas alimentares do estado, este projeto mobilizou uma série de pesquisas em sessenta e três municípios cearenses – entre os quais, Jaguaribe. A seleção das práticas alimentares abordadas era baseada em dois critérios de busca, basicamente: era preferível que fossem antigas, quero dizer, vivenciadas por gerações; e que desfrutassem de certo reconhecimento por parte de moradores locais – o que acabou por nos conduzir, entre outros tantos alimentos, ao queijo coalho de Jaguaribe, feito com leite cru.

De modo esperado, mas nem por isso menos curioso, a maior parte de nossas consultas (feitas, principalmente, a representantes das prefeituras municipais e aos comedores/consumidores da região), levaram-nos a comidas associadas a ideias de produções artesanais ou caseiras, rurais, vinculadas às noções de tradicional e típico – palavras usadas de modo recorrente, ao longo das entrevistas que conduzi no projeto, para definir e diferenciar algumas comidas, como o queijo analisado. Estes mesmos termos também foram sublinhados, dois anos antes, em minha dissertação de mestrado, quando estudava o surgimento e consolidação das chamadas cozinhas regionais no Ceará, através da análise de restaurantes que se autodenominavam especializados nesse tipo de culinária (LIMA, 2010). Os alimentos processados pelas grandes indústrias, tão comuns na mesa dos cearenses com acesso aos supermercados, não foram referendados como comida do lugar – apesar da existência de produtos quase seculares, oriundos de grandes fábricas cearenses e com alta demanda de consumo local (como algumas bolachas Richester, para citar apenas um exemplo). Refletir sobre os mecanismos sociais que operam esta seleção do que pode ou não instituir vínculo com o território, no campo das práticas

alimentares, mobilizando pertencimentos, foi um dos desafios enfrentados em minha dissertação.

Embora não caiba discutir, no limite destas páginas, os fundamentos e desdobramentos dessas duas pesquisas, convém ressaltar que elas me ajudaram a visualizar e situar o queijo foco desta tese. Ele apareceu nos restaurantes analisados na dissertação como uma referência do que seus proprietários chamavam de cozinha sertaneja – costumeiramente interpretada como uma das divisões da gastronomia cearense, também composta pelas comidas de litoral e serra. Por lá, era servido de vários modos: como complemento no baião-de-dois, assado na brasa para acompanhar carnes, banhado em mel de engenho para compor sobremesa. O Comida Ceará me permitiu reencontrá-lo, desta vez, para contemplar mais propriamente suas formas de produção. Os critérios de busca deste projeto, já mencionados, acabaram por contribuir para que um tipo específico de fabricação se sobressaísse no volume total dos estabelecimentos visitados. Falo das chamadas pequenas queijarias (também conhecidas como familiares ou artesanais), uma terminologia de uso comum entre produtores que não se confunde, embora se aproxime, com a ideia de “agroindústria de pequeno porte” – uma nomenclatura oficial de uso do Ministério da Agricultura e Abastecimento (MAPA).44

O termo pequena queijaria é menos consensual ou estável – o que descobri anos depois, em minha pesquisa de campo para a tese. A despeito das oscilações, costuma ser usado para expressar o contraponto das formas industrializadas de produção, indicando estabelecimentos que funcionam de modo informal e utilizam o leite cru em seus preparos. Refere-se a empresas familiares (cuja contratação de mão de obra assalariada é reduzida ou inexistente) de pequeno porte, com produção diária considerada baixa45; e que ainda conservariam elementos relativos aos modos tradicionais de produção: quero dizer, saberes e tecnologias historicamente desenvolvidos e atualizados, ao longo de gerações, na experiência produtiva prática. Estes modos costumam remeter a uma série de

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De acordo com a Instrução Normativa 16, de 23/06/2015, parágrafo segundo, entende-se por agroindústria de pequeno porte de produtos de origem animal “o estabelecimento de agricultores familiares ou produtor rural, de forma individual ou coletiva, com área construída de até 250m² que dispõe de instalações para: I. Abate ou industrialização de animais produtores de carne; II. Processamento de pescado e seus derivados; III. Processamento de leite e seus derivados; e IV. Processamento de ovos e seus derivados; e V. Processamento de produtos das abelhas e seus derivados”.

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Para mais informações sobre a relação entre o volume de produção e os modos de classificação das queijarias, ver nota 5 deste trabalho.

procedimentos manuais de preparo, assim como a certo improviso dos instrumentos utilizados (a exemplo do uso de caixas d‟água como tanques de leite); por isso as pequenas queijeiras são também frequentemente identificadas como produções artesanais.

A observação dessas queijarias e a escuta das pessoas que lá trabalhavam foram muito marcantes para mim, experiências particularmente envolventes. Lembro de ter sido rapidamente “fisgada” pelo que identifiquei como drama daqueles que se consideravam pequenos produtores. Uma frase motivou essa interpretação, dita por um experiente queijeiro de Jaguaribe: “fazer queijo no Ceará é tirar leite de pedra”. O produtor se referia às muitas dificuldades que enfrentava (e enfrenta) em seu cotidiano de trabalho, relativas não apenas às durezas das condições geográficas do semiárido onde mora, mas também à existência de uma legislação reguladora do processo produtivo, que confronta os antigos manejos de fabricação, associada a uma presença mais permanente e incisiva da fiscalização sanitária na região. Além de obrigar uma série de modificações produtivas, como foi dito, a imposição das normativas sanitárias, na medida em que condenou o queijo de leite cru à ilegalidade, tornando sua venda uma forma de contrabando, também incriminou aqueles que executam tal atividade comercial. Alguns produtores narraram a dura sensação de terem sido transformados em “traficantes”, nesse contexto, enfatizando a imposição da legislação como um injusto ataque à sua dignidade de trabalhadores. Isto porque não identificavam justificativas plausíveis para a retirada dos queijos de leite cru do mercado. A crescente demanda pelo produto reforçava o contrário: ele não constituía ameaça significativa à saúde dos consumidores para merecer um fim. Por que, então, a proibição ganhou tanta força nas últimas décadas? Por que a legislação sanitária brasileira, que remetia à década de 1950, não havia sido ainda repensada diante desse consumo crescente e, até aquele momento (o ano era 2011), não problemático em termos de saúde pública?

Alguns produtores já suspeitavam que, provavelmente, estaria justo nessa gradual valorização do queijo de leite cru, acrescida de certa fetichização que o transformava em comida gourmet, a explicação para perseguição do mesmo. É possível que os grandes laticínios, amarrados à obrigação de pasteurizar, tenham passado a se sentir ameaçados por este produto, que desfrutava das consequências positivas de sua associação ao conceito de artesanal – uma categoria que tem

assumido conotações muito favoráveis no campo das práticas alimentares, paradoxalmente, em contextos sociais de intensa industrialização e urbanização (CONTRERAS, 2011). Diante disso, teriam passado a pressionar o poder público no sentido de intensificar a fiscalização das queijarias não certificadas.

Esta primeira aproximação dos queijeiros de Jaguaribe e de suas narrativas sobre os desafios de “viver do queijo” no Ceará me levaram à leitura daquela realidade a partir do conflito entre duas forças supostamente imiscíveis: o industrial e o artesanal. Este jogo de poderes, aos poucos, foi ganhando outras dimensões, na medida em que eu ia conhecendo outras experiências produtivas de queijo pelo Brasil.

No ano de 2010, em um simpósio sobre alimentação, realizado em Sergipe, fui abordada por algumas pessoas vinculadas ao Slow Food Brasil46 que me falaram de seus interesses em organizar um grupo de trabalho (GT) para pesquisar e defender o que chamavam de “queijos artesanais brasileiros”. A ideia era construir uma espécie de mapeamento nacional desses queijos (que estariam associados, principalmente, ao uso do leite cru) e pressionar o poder público por uma legislação específica para estas produções, enquadradas no referido conceito de pequena queijaria ou de agricultura familiar. Procuravam, para tanto, parcerias no Nordeste. A proposta me cativou, pareceu justa e necessária, especialmente depois de tudo que vi e ouvi nas produções cearenses como pesquisadora do Comida Ceará. Decidi me juntar à iniciativa.

No ano seguinte, instituiu-se o Grupo de Trabalho do Slow Food Brasil sobre Queijos Artesanais de Leite Cru, uma articulação nacional formada por profissionais das mais diversas áreas, incluindo chefes de cozinha, nutricionistas, agrônomos, engenheiros de alimento, historiadores, sociólogos, antropólogos e produtores de queijo oriundos, entre outros estados, do Ceará. A participação neste GT me deu uma nova dimensão do drama que eu havia identificado, anteriormente. Na Europa, o tema sobre as produções artesanais de queijo e sua legitimidade sanitária já havia rendido bastante, de tal modo que foi lançado, em 2001, o Manifesto Internacional em Defesa dos Queijos de Leite Cru (SLOW FOOD BRASIL,

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O Slow Food é uma associação internacional sem fins lucrativos, fundada em 1989 e que conta, atualmente, com mais de cem mil colaboradores, espalhados por mais de 150 países. Seu propósito básico, conforme site oficial do movimento no Brasil (http://www.slowfoodbrasil.com/), é a luta pelo “direito ao prazer da alimentação, utilizando produtos artesanais de qualidade especial, produzidos de forma que respeite tanto o meio ambiente quanto as pessoas responsáveis pela produção, os produtores”.

2007), na primeira edição do Cheese – evento promovido pelo Slow Food Internacional com intuito de promover debates sobre os desafios da produção de lácteos no mundo. Brasil a fora, outros tantos pequenos produtores, que faziam queijo com leite cru, também passavam por dificuldades semelhantes a dos produtores cearenses. Minas Gerais era o caso-destaque nacional. Isto porque, apesar de tombado como patrimônio imaterial brasileiro desde 200847, o “queijo minas artesanal”, também feito com leite cru, enfrentava uma proibição legal para sua comercialização fora do estado. A situação do queijo-símbolo da culinária mineira, mas “fora da lei” (BLOG DO JEFFCELOPHANE, 2011), entendido como contravenção pela legislação sanitária, transformou-se em tema recorrente em diversos fóruns.

No final de 2011, resultado de uma intensa movimentação nacional, política e de pesquisa em torno da produção queijeira e seus dilemas, realizou-se em Fortaleza o I Simpósio de Queijos Artesanais do Brasil – Valorização, Origem e Tradição, organizado pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), Ematerce (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará) e Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). Um dia antes, precisamente no dia 22 de novembro, o GT, convidado para compor uma mesa no evento, reuniu seus colaboradores em seminário que ficou conhecido como I Encontro Nacional do Grupo de Trabalho sobre Queijos Artesanais do Slow Food Brasil. Este encontro contou com a participação de 42 profissionais de várias áreas e estados brasileiros, incluindo alguns produtores cearenses de queijo coalho. Além da pauta que conduziria a fala dos representantes do GT no simpósio (que incluía as demandas levadas pelos produtores cearenses), foram também debatidas as bases de formação do que se estruturaria, posteriormente, com o nome de Rede Nacional em Defesa do Queijo Artesanal de Leite Cru, uma organização nacional cujos propósitos incluíam “dar visibilidade ao queijo artesanal; buscar mecanismos e espaços de divulgação desta causa e sua permanente inserção na mídia; criar e fortalecer os mercados informais dos queijos; e, finalmente, enfrentar o problema da legislação” (SLOW FOOD BRASIL, 2012).

Aconteceu ainda um II Simpósio de Queijos Artesanais do Brasil – diversidade, qualidade e identidade, em 2013, na cidade de Porto Alegre, Rio

47Mais precisamente, foi tombado o “saber-fazer” do chamado queijo minas artesanal, como foi dito

Grande do Sul. Tive a oportunidade de participar de todos estes encontros, acompanhando produtores de vários estados e suas insatisfações – incluindo produtores de Jaguaribe. Estas insatisfações foram genericamente materializadas em dois documentos, produzidos pelas organizações dos eventos citados: a Carta de Fortaleza (2011), vinculada ao I Simpósio Nacional de Queijos Artesanais e os Resultados da discussão do Grupo de Trabalho do Slow Food no quadro do primeiro encontro do GT – que, como o título já sugere, incorpora o conjunto das demandas/problemáticas identificadas pelos colaboradores do referido GT nos diálogos travados ao longo dos dois eventos.

Grosso modo, três acusações tomam o centro das discussões nos documentos, relativas à legislação sanitária vigente: favorecimento da grande indústria, na medida em que os proprietários das pequenas queijarias não disporiam das mesmas condições econômicas para a compra de maquinários e completa adequação do processo produtivo; desconfiança acerca da efetividade dos procedimentos para a criação de alimentos livres de perigo, uma vez que a pasteurização, como uma forma de “esterilização excessiva”, destruiria a saúde bacteriológica dos laticínios; e ataque à valorização gastronômica e cultural dos queijos artesanais (incluindo o queijo Coalho), que tenderia a prejuízos significativos em virtude não apenas das modificações de sabor e textura, resultantes das alterações técnicas, mas também da falta de reconhecimento e apoio ao pequeno queijeiro, que representaria o elemento mais “tradicional” e “original” dessa esfera produtiva.

Imersa nesse contexto de debates e significações, escrevi um projeto de pesquisa em 2014 para concorrer à seleção de doutorado em Sociologia, propondo um estudo sobre esses dilemas que eu vinha identificando na produção queijeira cearense – também imaginados, a partir da teoria sociológica, como parte de uma luta social pelo poder de classificar o que é um “alimento seguro”. Concentrada inicialmente na questão sanitária (por entendê-la como o foco do problema identificado), interessava-me compreender como pequenos produtores de queijo Coalho artesanal construíam a segurança alimentar de seus produtos, considerado o referido contexto de sanitarização dos manejos produtivos e o conflito entre indústria e pequenas queijeiras. Por ser Jaguaribe o cenário inspirador das questões

levantadas, dadas as minhas vivências aqui descritas com o queijo de lá oriundo e seus produtores48, apresentei-o como campo de estudo.

Os movimentos exploratórios de pesquisa, combinados às leituras realizadas e os debates em sala de aula sobre metodologia, apontaram de imediato algumas dificuldades. O termo artesanal tornou-se problemático como critério de seleção dos queijos analisados e de suas produções. Penso que minha trajetória, aqui pontualmente relatada, de envolvimento com a questão queijeira e seu reportório discursivo comum me levaram a crer, num primeiro momento, que eu encontraria produções artesanais de queijo muito bem definidas em Jaguaribe; que seria fácil identificar os produtores deste tipo. Mas não tem sido bem assim. Embora o termo tenha presença evidente e destacada no contexto estudado, seus usos e significações destoam do modo como eu, inicialmente, imaginava-os. Artesanal e industrial, como polos valorativos de um jogo comercial/publicitário, não são categorias coladas à identidade presumida de grupos sociais supostamente distintos e antagônicos. Tais grupos, podemos mesmo afirmar, são construções abstratas, um recurso teórico: não existem, sem “contaminações” ou desvios, no cotidiano observado. Como denominações informais (até o fechamento desta tese, no mês de maio de 2015, não foi identificada uma oficialidade destas formas de classificação no Ceará)49, as categorias artesanal e industrial aparecem no discurso dos produtores em termos manipuláveis, relacionais. Inclusive porque a própria configuração (física) das queijarias abordadas permite esse jogo: em um movimento de adequação às normativas sanitárias, que vem modificando também esteticamente o espaço produtivo, transformando tais queijarias em “pequenas agroindústrias”, as quais acabam por combinar elementos que remetem ao imaginário instituído dos dois modos de produção – por exemplo, agregando maquinário industrial e improvisos na infraestrutura do prédio, conjugado ao lugar de moradia, em zona rural.

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Através do Projeto Comida Ceará conheci outras regiões produtoras de queijo coalho no estado, tais como os municípios de Quixadá e Quixeramobim, no Sertão Central, e Tauá, no Sertão dos Inhamuns. A curiosidade particular sobre o Jaguaribe, contudo, sustenta-se nas memórias de infância anteriormente apresentadas, quando o queijo de lá oriundo tornou-se uma comida admirada e requisitada em minha família. Além disso, considerei interessante realizar a pesquisa em um município que tem se apropriado, oficialmente, do queijo coalho como patrimônio cultural, sendo parte da maior região produtora de queijo coalho do Ceará na atualidade: o Vale do Jaguaribe.

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Talvez seja importante relembrar, nesse sentido, que está sendo discutido na Assembleia Legislativa do Ceará um projeto de lei (PL 87/2019), de autoria do deputado Leonardo Araújo, para regulamentar a produção e comercialização de “queijos e manteigas artesanais”. No inciso 1 do artigo primeiro da proposta, define-se como queijo artesanal “o queijo produzido com leite integral, fresco e cru respeitados os métodos tradicionais, culturais e regionais”.

Assim, os produtores de queijo parecem negociar, constantemente, com os sentidos e valores objetivados em seu cotidiano de interações, reivindicando aspectos considerados estratégicos das duas formas produtivas no esforço de sobrevivência nesse campo. É, sobretudo, nas situações de autodefesa, para legitimar a condição de alimento seguro de queijos não aprovados pela lei, no caso das queijarias sem registro formal, que a vinculação à prática artesanal é reforçada. Articulado às ideias de tradicional, típico (ou regional) e original (primeiro e verdadeiro), o recurso ao artesanal ajuda a compor uma imagem positiva e emocional do queijo comercializado, reforçando a confiança do produto na divulgação de uma credibilidade que seria historicamente atestada. Mas se, nesse sentido, a indústria (e tudo o que ela representa) é desvalorizada, noutras situações, contudo, parece estratégico aos produtores, no geral, a filiação a certos valores e práticas que ela consagrou. Refiro-me, por exemplo, à valorização de certas máquinas (pela praticidade e relativo conforto que agregam à produção) e ao nítido gosto pela estética e assepsia industrial (expresso no orgulho demonstrado pelos produtores abordados na apresentação das queijarias reformadas, com a presença marcante de objetos de metal e plástico, de paredes azulejadas em branco).

As idealizações e limitações do que seria artesanal e industrial, construídas a partir dos engajamentos políticos que travei (incluindo meu envolvimento com o movimento de consumidores Slow Food e seus princípios), chocaram-se com as compreensões encontradas em campo e foram por estas invalidadas como dados, conduzindo a uma desnaturalização destas mesmas categorias (artesanal e industrial). No caso estudado, antes de se mostrarem como noções “técnicas” e “imparciais” de distinção entre modos de produção, como inicialmente eu as imaginava, elas constituem formas discursivas, situacionais e politicamente manipuláveis.

Neste caminho, pensar como e por que tais referências são requisitadas nesse jogo de legitimação cultural/comercial tornou-se um desafio. Discutir, historicamente, os caminhos por meio dos quais a “comida industrializada” perde o vigor de sua atratividade, elevando, por outra via, os desejos pela “comida artesanal”, é algo que demanda esforço de pesquisa e detalhamento da exposição: quero dizer, o entendimento dos processos de objetivação das noções de artesanal e industrial como categorias do pensamento, dialogando com Bourdieu (2005) – um exercício que tentei realizar ao longo deste texto.

Diante disso, tentei uma primeira remodelação no objeto de pesquisa, colocando em segundo plano a noção de artesanal. Os contatos com o campo permitiram identificar diferentes níveis de adaptação às normativas nas pequenas queijarias visitadas que ainda não possuíam certificações sanitárias estaduais e federais. O que aproxima essas experiências produtivas singulares, até então, é a ausência de pasteurização do leite. Por isso mesmo, a manutenção do chamado “leite cru” no fabrico dos queijos transformou-se em meu novo guia de imersão em campo e, assim, também uma fronteira outra de delimitação do objeto.

Gradualmente, o foco da pesquisa foi sendo deslocado das queijarias para o queijo, propriamente – sem, é claro, destacá-lo de seu contexto produtivo. Esse redirecionamento me permitiu uma ampliação da perspectiva, na medida em que passei a incluir outros tipos de produtores no conjunto dos interesses da investigação. Foi deste modo que passei a considerar também laticínios de grande porte, tomando por base uma pista deixada por proprietários de pequenas queijarias: em tom de denúncia, dois deles me comunicaram que indústrias da região estariam fazendo e comercializando queijo de leite cru. A informação foi confirmada. Embora