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Do Elitismo Republicano à Igualdade Meritocrática das Oportunidades

3 PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA:

3.2 O Que há por trás do Pacto? Uma análise sobre a Ideologia da

3.2.2 Do Elitismo Republicano à Igualdade Meritocrática das Oportunidades

A fim de propiciar uma melhor compreensão sobre a relação da igualdade meritocrática com a igualdade de oportunidades e seus desdobramentos nos sistemas escolares (com centralidade no Brasil por meio do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), julgamos importante situar o surgimento da escola republicana e sua transição, desde o acesso elitista ao seu movimento de universalização, permitindo assim, o ingresso das massas nos sistemas formais de ensino e a possibilidade de garantir sua escolarização.

Para François Dubet, a criação na França republicana, no ano de 1881, da escola gratuita, obrigatória e universal, constituiu-se em um importante marco para o acesso da população à educação escolar166. Uma observação relevante a se

166 É importante destacar que a massificação do ensino, desencadeada no Século XX, só se

desenvolveu verdadeiramente após a Segunda Guerra Mundial, com as reformas educacionais impulsionadas pelo Banco Mundial. No ano de 1992, para o conjunto de países da União Europeia, foram contabilizados 34.420.000 alunos matriculados no ensino secundário, o equivalente a 52% da população de indivíduos escolarizados. No mesmo ano, foram contabilizados – desses mesmos países – 11.700.000 jovens que ingressaram no ensino superior, o que corresponde a 14% dos jovens escolarizados na União Europeia naquele período. A diferença brusca no acesso aos diferentes níveis de ensino nos aponta o afunilamento da formação à medida que essa exige dos indivíduos maior dedicação e as condições objetivas de prosseguirem em estudos mais alongados. (Para mais informações ver Números-chave da Educação na União Europeia, 1997). Disponível em: < http://biblioteca.esec.pt/cdi/ebooks/docs/Numeros_chave_99.pdf>.

fazer é que a universalização do ensino não foi uma concessão espontânea da república burguesa, mas uma conquista parcial, uma produção histórica em resposta às reivindicações das massas (inclusive da própria burguesia que naquele período se apresentou, até certo ponto, como uma classe revolucionária, uma vez que seus interesses coincidiam, em determinado momento, com os interesses do povo)167.

Embora as contradições, Dubet aponta uma importante observação no que diz respeito à escola republicana ao afirmar que, desde sua fundação, nem todos frequentam o mesmo tipo de escola e, portanto, não dispõem do mesmo tipo de competição. Sob essa realidade, a igualdade meritocrática (pressuposto da escola republicana e burguesa) não se efetivou e passou a ruir com sua lógica, pois colocava os indivíduos em contextos e percursos substancialmente distintos, logo, com entendimentos e anseios diferenciados. A escola republicana oferecia aos filhos da classe trabalhadora (quando depois de uma exaurida disputa eles conseguiam nela ingressar) uma formação elementar, enquanto aos filhos da burguesia possibilitava um desenvolvimento amplo e mais livre, atividades que os orientavam a estudos mais longos e sofisticados, tais como as ciências, a arte, a literatura e as humanidades em geral. Meninos e meninas separados não apenas por suas virtudes intelectuais, mas conforme suas origens sociais.

Paralelamente, na perspectiva de Dubet e não obstante os seus limites, a atividade educacional republicana ensaiava princípios da igualdade de oportunidades (mesmo sob o critério do mérito), já que, por meio da generalização do acesso à escola, haveria uma relativa interação entre as classes. Mesmo distante do ideal, uma vez que esse modelo favorecia aos mais dotados, os mais trabalhadores e dedicados (incentivo ao mérito individual) – que mobilizados por seus professores primários conseguiam driblar seus destinos e, através dos seus diplomas, dispunham de algumas outras possibilidades de ascender socialmente – o autor considera que o modelo da escola republicana era relativamente justo. Isso porque permitia certa mobilidade social168 ao promover a concessão de bolsas, o

que, para ele, gerava uma ruptura no fluxo da fatalidade das origens sociais, ou seja, promovia relativa justiça educacional em um mundo social fundamentalmente desigual.

167 Para aprofundar a leitura sobre o tema, sugerimos a obra A Produção da Escola Pública

Contemporânea, de Gilberto Luiz Alves.

Todavia, essa hipótese de Dubet se mostra substancialmente frágil diante da distinta natureza da formação a que trabalhadores e burgueses acessam, da indiferença com a qual são tratadas as questões objetivas e estruturais, bem como a insuficiência do propósito formativo que não permite a superação das contradições sociais e do peso que as determinações da sua condição econômica exercem sobre todas as possibilidades de existência. Ao contrário, a igualdade meritocrática, ou mesmo a igualdade das oportunidades, coopera para o aprofundamento das desigualdades, pois, além de naturalizar as contradições, fomentam, pelas exceções, a ideia de que a vontade, a persistência e o esforço individual podem transformar a realidade material dos indivíduos, o que bem sabemos não ser possível.

François Dubet, dentro de sua análise, considera que a uma escola justa só pode ocorrer em um contexto onde haja uma verdadeira igualdade de oportunidades, ou seja, substituindo o elitismo republicano pelo acesso de fato universalizado, que se dá por meios de competições equitativas, onde o desempenho individual seja, de fato, o único critério de julgamento. A transição a esse cenário, para ele o ideal, iniciou-se com o movimento de universalização da educação, ampliando a quantidade de vagas e garantindo o acesso gratuito (além de bolsas) ao ensino secundário169. O autor deixa claro que nem a meritocracia nem a igualdade de oportunidades almejam a constituição de uma igualdade como a que é pensada para uma sociedade comunista, mas sim, a construção de uma sociedade onde as desigualdades ocorram mediadas pelo o âmbito das aptidões pessoais e do mérito de cada um dos indivíduos.

O autor da escola das oportunidades também destaca que, na França, a ideia de legitimidade da recompensa pelo saber acadêmico já é muito mais forte do que aquelas que resultam de atividades econômicas, ou seja, há mais virtude em se ter ascensão social pelos estudos do que pelo comércio ou indústria170. Nesse momento, é importante retomar a observação de que o sociólogo, ao pautar sua discussão no âmbito das ações particulares dos indivíduos e ao se isentar da problematização das questões materiais da humanidade, mostra-se ingênuo em sua

169Na França, o ensino secundário corresponde o período escolar que inicia no 7º ano do Ensino

Fundamental e vai até o 3º ano do Ensino Médio no Brasil. Para maiores informações, ver http://www.ciep.fr/.

análise. Ao considerar possível a constituição de uma igualdade baseada na equidade, ou seja, sobre a premissa da amenização das deficiências sociais (ainda que parcialmente), Dubet admite que, ao se promover condições igualitárias dentro da escola, os indivíduos podem construir suas histórias e traçar caminhos para ascenderem socialmente, como se isso dependesse só da vontade do indivíduo e como se não houvesse barreiras externas que dificultam bons resultados nos estudos e, por conseguinte, uma progressão social.

Uma nota relevante a se fazer é que o Plano Langevin-Wallon171 foi um importante instrumento para a consolidação da perspectiva da igualdade das oportunidades no sistema escolar da França e, por conseguinte, da política educacional dos demais países da Europa e do restante do mundo por ela colonizado. Para os teóricos, Paul Langevin e Henry Wallon, as desigualdades econômicas dos indivíduos poderiam ser anuladas desde que o ensino fosse universalizado de maneira tal que o mérito e o talento individual se tornassem as únicas causas da desigualdade na escola. Por se localizar em um tempo histórico onde as práticas educacionais estavam ainda presas ao funil do elitismo republicano, acentuadamente excludente, os princípios de universalidade, de reconhecimento da individualidade e de difusão igualitária da cultura pareceram progressivos diante do contexto da época172.

Como manifestação de um duplo aspecto da transição do elitismo republicano, como se refere Dubet, à concepção da igualdade das oportunidades, houve uma transformação substancial na escola: alunos de diversas origens, por meio da universalização, ingressaram na “mesma competição”. Todavia, o processo de seleção se deslocou de fora da escola para dentro dela e durante a vida escolar dos estudantes. Passou-se a considerar produtiva e necessária a heterogeneidade, uma vez que, conforme François Dubet, ela permite o desenvolvimento de competências múltiplas, favorece a diversidade de talentos e impulsiona a obstinação por resultados individuais cada vez melhores. Assim, a desigualdade de

171O Plano Langevin-Wallon corresponde a um projeto de reforma educacional da França, ocorrido

em novembro de 1944. A convite do ministro francês, Jean Zay, Henry Wallon aceitou participar de sua elaboração junto a Paul Langevin. Entre outros aspectos, estabeleceu princípios como a universalização do ensino, além da redução do número de alunos por sala e a reestruturação dos níveis de ensino. GRATIOT-ALFANDÉRY, Hélène. Henri Wallon. Tradução e organização: Patrícia Junqueira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4686.pdf.

acesso é substituída pela desigualdade de sucesso, que para o autor, é uma troca significativamente útil à sociedade173. Isso quer dizer que, ao invés das barreiras de acesso que impediam o ingresso formal das massas no processo de escolarização, os filhos da classe trabalhadora precisavam agora enfrentar os desafios do insucesso escolar, reflexo das privações objetivas, das lacunas de apropriação dos conteúdos historicamente construídos e das condições escassas e limitadas de acessar aos produtos da cultura em geral.