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DO ENLAÇAMENTO PELA FANTASIA AO LAÇO SINTHOMÁTICO

Gostaríamos de começar este capítulo salientando, com a ajuda das precisões de leitura do texto lacaniano feitas por Erik Porge (1998), Moustapha Safouan (2007) e por Roberto Harari (2003) que o acréscimo do quarto anel implica uma alteração importante na proposta do nó borromeano de Lacan. No nó borromeano de três consistências, todas se mostram equivalentes, o que não vai ocorrer em seu nó de quatro consistências.

Tomemos inicialmente a consideração de Harari sobre as diferenças entre os nós borromeanos de três e de quatro aros. Tal autor considera que o nó borromeano de três é excessivamente equilibrado, incorrendo na dialética geral-particular, não deixando lugar para a singularidade. Considera que tendo Lacan sido, no meio psicanalítico, o autor menos afeito a propor qualquer direção de tratamento que levasse a uma normativização, não poderia fazer supor, a partir de sua teoria, que uma psicanálise pudesse levar ao surgimento de sujeitos aplicados a uma condição padronizada. Para Harari, a introdução do nó borromeano de quatro desbarata o sólido equilíbrio entre os três registros porque quebra a pertinência do sistema que, com três aros, fazia-se desenhado de forma harmônica. Lacan teria conseguido, com a amarração borromeana de quatro aros, a partir do sinthome,

ressaltar que o tratamento psicanalítico tem uma direção que aponta para o respeito e a defesa do singular. Este é também o entendimento de Safouan:

O sinthome será a resposta de um sujeito confrontado com a obrigação de assumir a sua singularidade. (SAFOUAN, 2007, p. 244)

Observação no mesmo sentido é feita por Porge:

É efetivamente a partir de quatro consistências somente que as três outras podem ser diferenciadas. É a partir do quarto elo que não há mais equivalência estrita entre os elos, como é o caso para três. (PORGE, 1998, p. 159)

Em outro trabalho, Porge destaca:

O quarto elo borromeano significaria que há, no complexo de Édipo, um dizer de Freud que semidiz a verdade, excede e suplementa os conteúdos, criticáveis, desse complexo. (PORGE, 2006, p. 173)

Porge entende, portanto, que Lacan passa a reconhecer a necessidade do nó de quatro consistências, ainda que critique o artifício freudiano para fazê-lo.

Todos esses comentadores a que nos referimos destacam que o quarto elo, para Lacan, introduz uma assincronia no nó. Como isso fica demonstrado? É que esse elo, com um dos outros, qualquer que seja, possui a particularidade de cruzar-se quatro vezes. No nó borromeano de três consistências, cada corda cruza o elo de outro registro em duas posições.

Observemos as diferenças entre o nós borromeanos de três e de quatro consistências:

Nó borromeano de três consistências Nó borromeano de quatro consistências

Por que insistimos na apresentação desta passagem do nó borromeano nodulado a três para o nodulado a quatro? É que há, quanto a isso, uma discussão entre os psicanalistas que acompanham o ensino lacaniano. Muitos entendem que a adoção do quarto anel, por Lacan, teve como objetivo demonstrar a possibilidade de que, em uma estrutura em que houve completa falha do pai em sua função metaforizante, em virtude da ausência do significante do Nome-do-Pai no simbólico − o que implicaria o advento de uma psicose −, uma suplência poderia ser realizada. Para quem faz essa leitura, o objetivo do seminário sobre Joyce, ao qual Lacan deu o título Le sinthome, seria o de demonstrar a possibilidade de que mesmo alguém que tenha experimentado em sua estruturação uma foraclusão do significante do Nome-do-Pai pode operar na vida fora das manifestações da psicose. Ocorre que a falha do pai não é um privilégio da psicose. A operatividade do pai, como metaforizante, é sempre, pelo menos, não-toda. Ocorre que o próprio significante do Nome-do-Pai não está completamente no simbólico. Resta algo desse significante no real e, desse modo, há um limite à metáfora. Este é um entendimento trazido por Didier-Weill (1988), com o qual concordamos. Vejamos como esse autor se expressa:

O fato de que a sede do saber seja o inconsciente, este lugar simbólico descoberto por Freud, leva geralmente a esquecer que o saber pode cair num outro lugar, que Lacan chamou de real. (DIDIER-WEILL, 1988, p.147)

Essa observação de Didier-Weill encontra respaldo no afirmado por Lacan, em seu seminário de 15 de fevereiro de 1977, quando este é explícito ao dizer que “há saber no real.”. Didier-Weill acresce a seu comentário:

Existem numerosos termos pelos quais Freud introduziu, durante suas descobertas, o processo cujo efeito de rejeição do significante está na origem da constituição do real. [...] o significante que, de modo privilegiado, é convocado a tombar no real é o pai simbólico. [...] o significante Nome-do-Pai, antes de ser simbolizado, segue o caminho necessário de uma queda no real. (Ibid., p. 151/152)

Sobre tal questão, também encontramos pontuação semelhante do psicanalista Erik Porge (1998), em seu livro Os nomes do pai em Jacques Lacan. Conforme Porge, há um hiato entre o Nome-do-Pai e o pai simbólico, que já é anunciado por Lacan quando escreve seu texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, em 1959. No texto lacaniano, fica claro que “pai simbólico” nomeia um lugar no qual o significante Nome-do-Pai pode estar ou não presente. Afirma Porge que “o Nome-do-Pai não é idêntico ao pai simbólico no Outro” (1998, p. 43). Estas distinções são importantes, pois permitem pensar outros efeitos da foraclusão do significante paterno que não a psicose, o que é salientado por Didier-Weill:

[...] desde que Lacan foi levado a interpretar a psicose como efeito da

Verwerfung do significante do Nome-do-Pai há entre os analistas uma tendência a fazer equivaler o saber no real e a foraclusão psicótica. É contra essa tendência que devemos nos opor. (DIDIER-WEILL, 1988, p.151)

Essas considerações nos deixam atentos quanto à possibilidade de pensarmos que nem todo significante do Nome-do-Pai está no simbólico e, assim, nem todo gozo pode ser

metaforizado. Considerando o limite da metáfora paterna, poderemos pensar na necessidade de alguma supleção em qualquer estrutura. Assim, voltamos a defender nosso entendimento de que o seminário Le sinthome não visa a abordar a obra de Joyce e seu efeito reparador específico em relação ao que poderia ter sido um caso de psicose, mas tem um objetivo que vai muito além desse. Safouan (2006) também entende que o propósito desse seminário é abrangente, e inclui a possibilidade de pensarmos em uma diversidade de reparações na estrutura, além da referida à psicose:

O campo da foraclusão, até ali limitado à foraclusão do Nome-do-Pai, vai se ampliar. Ela também diz respeito [...] à foraclusão do sentido pela orientação do real – conceito novo, não sendo evidente, que remete a um defeito de nomeação no Outro. Assim, a foraclusão não se limita mais a seus efeitos na psicose, ela também pode dar conta do que se passa durante o término de uma análise. (SAFOUAN, 2007, p. 243)

Lacan fala, ao abordar Joyce e sua obra, em diferentes formas de reparações da falha do pai, nem todas de caráter borromeano. Se observarmos como Lacan define a reparação do que chama “ego” de Joyce, nesse seminário, veremos que a apresenta como uma amarração em que, em um ponto, os aros que conformam o simbólico e o real se cruzam, ou seja, um passa por dentro do furo do outro, o que implica uma amarração não- borromeana. Não discutiremos a questão relativa ao efeito que tal amarração não- borromeana proporcionou a Joyce, quanto à possibilidade de manter uma coesão de sua imagem, pois nosso propósito não é o de discutir, na íntergra, o seminário de Lacan, mas abordar o que nele permite que pensemos na amarração borromeana que caracteriza o

sinthome. É ao nó produzido por tal amarração que Lacan se refere como sendo o “seu nó”. É este nó que Lacan pretende apresentar em seu ensino, como, ao que nos parece, dizendo respeito a um caso geral, relativo a uma possibilidade de pensar a amarração da estrutura num final de análise. Assim, por intermédio do estudo da amarração borromeana, podemos