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2. O TAMBOR DE MINA NO MARANHÃO, UMA RELIGIÃO DE

2.3 DO MITO AO TERREIRO

“Não cantaram em vão O poeta e o sabiá Na fonte do Ribeirão. Lenda e assombração Contam que o rei criança

Viu o reino de França no Maranhão. Das matas fez o salão dos espelhos Em candelabros palmeirais,

Da gente índia a corte real,

De ouro e prata um mundo irreal”70.

Estrada, caminho, extensão líquida são denominações para o mar que conduziu os navegadores para as Américas. Em seus navios, além de sua força de trabalho para desbravar as novas terras, realizar seus sonhos e imprimir sua visão de mundo e modos de agir nelas, vieram também para mostrar aos nativos que havia culturas diferentes da sua em outros lugares.

Durante o descobrimento de novos continentes, homens em busca de aventuras, de ação, de lugares fantásticos e dos mitos que conheciam pelos romances de cavalaria, viajaram pelo mundo em frágeis navios equipados de poucos recursos e expostos ao inesperado. Poderíamos dizer que, esses aventureiros submetidos às dificuldades a partir do momento que se lançavam ao mar, já se deparavam com as aventuras almejadas. Sua visão de um oceano desconhecido era carregada de fantasia e das imagens dos textos bíblicos. Para eles, o Atlântico não era calmo, era antes o do grande dilúvio, destruidor, adverso e perigoso (FONSECA, 1978, p.38) que inundou o mundo e deixou apenas poucos sobreviventes na Arca ou as águas que Moisés dividiu ao meio quando fugiu com seu povo para a terra prometida: “Espaço do incógnito e da aventura, espaço do medo, é também o espaço onde o homem se encontra com ele próprio, na superação do obstáculo, no esforço, na viagem” (1978, p.45).

As referências que embasavam seu conhecimento para imaginar o Atlântico vinham do Oriente. Assim, além da busca pelo paraíso bíblico, o maravilhoso e o monstruoso preenchiam as mentes dos colonizadores para

70 Samba Enredo da escola de samba Salgueiro 1974: “O Rei de França Na Ilha da

quem o novo oceano era muito perigoso, cheio de serpentes gigantes e outras criaturas fantásticas. Ao mesmo tempo, até o século XVIII, lançar-se ao mar significava a tentativa inconsciente de retorno ao ventre, pois o mar assemelhava-se ao útero materno, sendo lugar de origem, para onde o homem deveria voltar (DIEGUES, 1998, p.60).

Marie Bonaparte71, citada por Bachelard, em A água e os sonhos (1998, p.120), explica que não era o mar-realidade que fascinava os homens, e sim, o mar do canto encantatório evocativo da voz de suas mães. A busca de retorno a esse amor filial seria o propulsor para sua saída rumo ao desconhecido.

Este subcapítulo começa descrevendo o mar por ter sido ele o caminho que nos revelou outros mundos e culturas. Pelo mar do peixe-monstro passaram povos que aqui chegaram para mudar nossos destinos: o europeu, com ganas de expandir seu mundo, angariando para si terras e riquezas e; o africano, advindo de várias nações, para ser subjugado e transformado em mero objeto para o trabalho forçado.

Dessas culturas distintas, mitos variados se misturaram e todos eles revelam a maneira como cada povo entendia certas questões fundamentais sobre o ser humano, sua origem e vida na terra. O homem sempre precisou de mitos que contradissessem a realidade, pois buscava um sentido para sua existência e uma explicação para fenômenos, fossem os naturais ou os subjetivos, como a percepção da finitude da existência. Daí que se costuma entender o mito como “uma narrativa de origem”, porque está relacionado a um passado distante e engendra o mundo pela narrativa (SILVA, 2010, p.47). A narrativa do mito funde o real e o sobrenatural para inserir o homem em uma outra dimensão habitada por seres idealizados.

Os orixás africanos, vinculados a lugares da natureza têm esse sentido mitológico explicativo. Suas histórias ressignificam esses espaços e esclarecem também outras questões mais relacionadas ao comportamento do ser humano.

Os mitos e a oralidade andam de mãos dadas e, pelo narrador que é a voz ancestral representativa do imaginário de um povo, eles se materializam. Podemos compreender uma determinada sociedade mais profundamente

71 BONAPARTE, Marie, Edgar Poe. In: BACHELARD, G. A água e os sonhos. Martins Fontes,

através de seus mitos fundadores. Através dos mitos da tradição oral, compreendemos posteriormente as nações africanas que a diáspora nos trouxe e sua religião, fundamentada nos orixás, foi significativa para esse nosso conhecimento.

O mito, como discurso fundador, é a voz ancestral, imemorial, representada por um narrador autorizado pelo grupo ao qual faz parte (BORGES, 2003, p.4). No terreiro, os mitos que fazem parte de sua cosmogonia religiosa são passados oralmente pelos mais velhos72. Sua voz

tem poder validado pelos deuses e, portanto, é confiável. Outro ponto importante é que o ouvinte crê piamente no arquivo da memória do narrador. Se a história remonta a tempos imemoriais, não há como saber qual foi a voz inaugural, a primeira a narrar os mitos, e só resta ao ouvinte confiar na que o atualiza. O mito contado é tido como verdadeiro, pois acredita-se que esta voz do narrador atual o faz como o fez a voz ancestral (2003, p.6).

Nas religiões de matriz africana, levam-se a sério os mitos passados pela boca dos mais velhos. Sua memória individual integra uma memória coletiva trazida da África pelos primeiros negros que aqui viveram e que foi reestruturada a partir da diáspora. Segundo Roger Bastide, a perda de sentido sofrida pelo negro em sua religião e forma de entender o mundo (BASTIDE apud ORTIZ, 1980, p.99)73 motiva dita reestruturação da memória coletiva bruscamente rompida pelo esfacelamento das relações que a mantinham. Abrem-se espaços nela que necessitam ser preenchidos por algo semelhante para dar um novo sentido ao que foi esquecido. Daí, o sincretismo, a exemplo da associação entre santos católicos e orixás, entendida aqui como a partilha dos dois de características semelhantes: “O sincretismo se realiza pois quando duas tradições são colocadas em contacto, no qual a tradição dominante fornece o sistema de significação, escolhe e reordena os elementos da tradição subdominante” (ORTIZ,1980, p.103). Neste caso, entenda-se aqui que a religião africana é a dominante, um “sistema-partida” (1980, p.105) que dá espaço para assimilar novos mitos da outra cultura, no caso da religião

72“Mais velhos” tem o sentido aqui de mais tempo de iniciados na religião.

73BASTIDE, Roger. Mémoire collective et sociologie du bricolage. In: ORTIZ, Renato. A consciência fragmentada. Ensaios de cultura popular e religião. Coleção Pensamento Crítico.

católica, conferindo assim uma nova significação ao seu sistema sem prejudicá-lo.

Dito isso, podemos pensar agora sobre o ingresso das nações africanas e sua cultura que, modificadas no Brasil pela cultura europeia, ressignificaram seus ritos: no Candomblé baiano, no Xangô pernambucano e no Tambor de Mina maranhense, todas estas tradições não passaram incólumes no contato com o outro e carregam em si algo dessa alteridade. No Tambor de Mina, o sincretismo, as misturas, as junções convergem a partir de mitos relacionados aos romances de cavalaria e, na Encantaria, eles se concretizaram definitivamente, deixando marcas profundas no imaginário religioso maranhense.

No Terreiro da Turquia, a transmissão dos mitos e dos segredos da religião da mina não fugiu à regra de outras casas de religiões africanas, uma vez que os filhos de santo assimilavam presencialmente as tradições na convivência com os mais velhos. Mesmo imerso na oralidade, o terreiro não se afastou da cultura extramuros, onde predomina a escrita. Consequentemente, a influência das formas literárias medievais e religiosas do catolicismo dominante é inevitável (GOODY, 2012, p.45).Através das entidades encantadas como Ferrabrás e Floripes, o livro sobre Carlos Magno se insere oralmente no terreiro. Mas o livro que contem tais personagens-entidades (denominação nossa) não consegue se impor como objeto visível ou palpável, pois está guardado a sete chaves, longe dos olhares de todos. A força da tradição oral no egbé é mais forte e seu movimento é inverso ao das sociedades ágrafas, nas quais a lacuna da escrita torna a oralidade importante. A narrativa sai do livro para a voz dos mais velhos e é repassada, de boca em boca, para manter os costumes antigos.

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