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3 AS FRONTEIRAS ENTRE ANTROPOLOGIA E LITERATURA

3.2 A FRONTEIRA EM PORTUNHOL

3.2.2 Do portunhol das ruas à arte

FIGURA 24 – Pixação nos muros da cidade de Rivera. Fonte: Acervo da Autora, 2016. Tradução: Vim Deixar claro que sou escuro, tesouro raro num jogo duro (Émicida).

FIGURA 25 – Pixação nos muros da cidade de Rivera. Fonte: Acervo da Autora, 2016. Tradução: Outra vez a esperança na mochila eu ponho (Émicida).

FIGURA 26 – Arte nos muros da fronteira. Fonte: Acervo da autora, 2015.

A literatura entra aqui como contestadora de territórios, de normas, de obrigações. Contesta o limite, a oficialidade do espanhol e do português, a institucionalização do ensino padrão nacional, de identidades rígidas e estáticas, o silêncio destinado às margens. Expõe vergonhas, sujeiras, dejetos fétidos, pobreza, fome, seca, sangue. Para uma língua que surgiu na guerra, onde seus poetas falam da dor e do sangue escorrendo, o portunhol é uma língua que luta contra o genocídio, faz sobreviver códigos culturais esmagados pelos Estados Nacionais.

O portunhol, por si, é o idioma falado e compartilhado em várias regiões de fronteira entre o Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. No início do século começaram alguns movimentos literários regionais para a criação de um idioma compartilhado por toda a América Latina, com o objetivo de ultrapassar barreiras linguísticas e territoriais, seria esse o portunhol, mas não os portunhóis específicos de algumas fronteiras, mas sim uma criação artística. Uma das criações foi o Xul Solar aplicando variação do espanhol ao português, com toques de grego, latim e guarani. Diferente do portunhol que escreve sobre um sentir específico, uma terra determinada e um ser a fronteira, o Xul Solar tenta extrapolar qualquer limite,

tornando-se intraduzível e incompreensível, afinal, é de todos e de ninguém, para todos, mas ninguém entende.

O portunhol que se escuta nas ruas, nas casas e até mesmo nas escolas é diferente de um bairro para outro, de uma cidade para outra. Do mesmo modo, o portunhol falado é diferente do que se encontra em pichações pelas paredes da cidade, cartazes de armazéns, cadernos de estudantes e de poetas. Igualmente distinto ao portunhol institucionalizado que passa por um processo de endurecimento e se torna estático, imutável, perdendo seu caráter nômade, fluído e vivido. As tentativas de institucionalizar o portunhol deixa todas as versões que não se encaixam no oficial do lado de fora, como se fossem a versão submarginal de uma língua marginal. Mas, por outro lado a institucionalização pode reconhecer o prestígio do idioma.

O Estado brasileiro e o uruguaio já criaram inúmeras políticas de contenção para barrar o portunhol, entre as últimas estão a institucionalização do espanhol (português no Uruguai) nas escolas de ensino fundamental. Justificando que os estudantes devem superar o portunhol e aprender os dois idiomas por separado o português como língua materna e o espanhol como segundo idioma (o oposto no Uruguai).

No lado brasileiro, falar em espanhol é bom, mesmo que esse considerado espanhol pela comunidade seja na realidade um portunhol. Em Santana do Livramento, por exemplo, falar em PGF (português gaúcho da fronteira) é valorizado e relacionado ao tradicionalismo, algo memorial, tradicionalista. Os CTG e seu movimento ganham protagonismo na região rememorando o folclorista Paixão Cortês57. O ato de positivar o portunhol para os brasileiros da fronteira deve-se ao fato deles também terem tornado positivo o gaúcho e, portanto, tudo que ele envolve, o campo, o trabalho, as vestimentas, as músicas e o idioma. Os gaúchos se tornam em mãos de folcloristas como Paixão Cortês em personagens e heróis do pampa. Quando sujeitos na atualidade querem fazer referência a esses heróis e contar causos usam o portunhol, porque era assim que os gaúchos falavam.

Por outro lado, e do outro lado da fronteira, no Uruguai ser gaucho não é tão positivo e nem falar o portunhol. Se proíbe o portunhol por afirmarem ele ser

57

Folclorista, músico e radialista, conhecido por ser um dos formuladores do movimento

tradicionalista gaúcho. É oriundo de Santana do Livramento e ao entrar na cidade pela BR 158 é possível ver um monumento feito em sua homenagem, além de cartazes falando “esta é a terra de Paixão Cortês”.

negativo na formação de uma imagem nacional do país. São contrários à institucionalização do portunhol por acreditarem que se aceito o portunhol em ambientes como escolas, os sujeitos de fronteira jamais aprenderiam os idiomas oficiais, ficariam apenas no desvio e fadados à fronteira para sempre, já que estariam incomunicáveis com o resto da nação. Existe “diferenças funcionais e de prestígio entre as línguas” (MOZILLO, 2018), esse fenômeno de hierarquização das línguas é denominado de diglossia (idem).

A literatura de fronteira não é discutida nas escolas como se discute literatura brasileira, paulista, americana, inglesa. Não se lê Dom Segundo Sombra, Dois Irmãos, Linha Divisória, Us Piá, como se lê Memórias Póstumas de Brás Cuba, O Corvo, Dom Casmurro, ou no Uruguai Martin Fierro, Juana de Ibarbourou. Essas obras são colocadas como segundo plano, não merecedoras de um espaço na intelectualidade, nas universidades, nas escolas, fadadas à rua, são classificadas como sem prestígio e sem valor cultural. O portuñol é uma língua contrabandeada, assim como os fronteiriços, é leva pra lá, traz pra cá. Ilegal, suja, errada!

A partir do momento que o portunhol passa a ser escrito ele se torna ameaçador e real, é nessa situação que os Estados intervêm e criam estratégias para lidar com essa subversão, como é o ato da criação de aulas de português nas escolas uruguaias da fronteira e de escolas chamadas binacionais. O Estado acredita ser o responsável de mediar as relações e a integração na fronteira, mas na prática ele só institucionaliza relações e integrações já existentes.

Os poetas assumem o portunhol como a forma de se comunicar melhor com seus sentimentos, lembranças e conectar-se com sua terra. O que os leva a escolher o portunhol é por acreditarem ser assim que se conectam com seu eu sensível. Apostam em escolhas em espanhol ou português quando o propósito é provocar um público externo à fronteira. Afirmam escreverem muito bem nos idiomas oficiais, mas que quando escrevem o que sentem, as palavras simplesmente aparecem em portunhol. Comentei que eu gostava de escrever, mas que não conseguia fazê-lo em portunhol, que acreditava ser pelo modo como aprendi os idiomas oficiais. Afirmam que eles também não tiveram uma alfabetização suave e respeitosa, que seus anos escolares foram cheios de basta de portunhol, mas que isso também provocava essas escritas em portunhol, “cosa de sinverguenza”. Pergunto quando começaram a escrever em portunhol e o que provocou isso, respostas como: “desde sempre”, “desde o momento que aprendi a escrever”, “ya

del útero”. Demonstrando que a escrita em portunhol faz parte de quem eles são. Apesar de em alguns momentos (ainda hoje isso ocorre) essa escrita ser considerada errada, a partir do momento que eles se tornaram artistas assumiram esse “erro” como parte da sua arte. Um movimento de empoderamento linguístico e cultural.

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