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Autonomia e relações

1.3. Século XX: inflexões e conversões criativas

1.3.2. Do regresso à História

Terminado o século que viu emergir a autonomia epistemológica das ciências culturais e o nascimento de uma disciplina de orientação científica, capaz de descrever as leis gerais do funcionamento do fenómeno literário; num momento em que se satura a exploração dialéctica das instâncias envolvidas neste mesmo processo (autor, leitor, texto); em que a consciência histórica e social das manifestações artístico-culturais é geralmente aceite e considerada como factor a não descurar na apreciação da obra; em

que parecem esgotar-se as inovações formais, genológicas, e a contaminação de textos surge como o caminho mais fértil, acompanhando a permeabilidade exterior de identidades entre nações, raças, línguas, culturas; em que a imagem e o som dominam os espaços e fazem ligações, despedindo quase a necessidade de tradução – neste mesmo tempo se ancoram empiricamente os autores para que nos voltamos, bem como a sua produção literária.

Apresentando deste modo, sumário, a nossa contextualização actual, marcada pela debilidade da possibilidade de leitura da sociedade através de um conceito singularizado de paradigma, propomo-nos interrogar quais os caminhos transitáveis – transitivos – para a literatura contemporânea, nos sistemas artísticos, sociais e culturais de que nasce e a que se vincula; quais os que nos poderão ser ainda relevantemente apontados e construídos pelo universo livresco. O que tem a obra literária a oferecer ao leitor de hoje, num panorama de perda de referências e de desrealização do mundo, excessos de tempos e de espaços que a custo se actualizam funcionalmente como coordenadas úteis? Que questões poderá ainda formular esta escrita, sabendo que a não podemos conceber desligada de uma dimensão retórica que aproxima o autor do leitor, visando uma produção de efeitos, a modificação de um estado prévio à leitura, instigando sempre alguma forma de perturbação? Estas são algumas das interrogações norteadoras da leitura que faremos das obras nomeadas, às quais acrescentamos o porquê da sua escolha de personagens referenciais, o porquê de artistas, o porquê da ingerência em outras artes, o porquê da ficção e que relação mantêm todas estas questões com a inspiração, na época da Modernidade estética.

Na pauta cultural que, no campo dos estudos literários, habitualmente designamos como pós-moderna, o recurso à História no domínio da ficção dirige-se, frequentemente, a uma legitimação e a uma garantia de verdade que a própria História parece não conhecer. Mau-grado, na obra que é o berço da nossa teoria literária – a

Poética, de Aristóteles –, a poesia ser preferida à História, pela sua referência ao

universal, o carácter reconhecidamente mimético e segundo do literário torna-o, por si, insuficiente, numa contemporaneidade de premente necessidade de referências e definível ancoragem no (num) real.

A presentificação de figuras do passado e a construção narrativa de contextos datáveis e reconhecíveis procurará, por conseguinte, aliviar a experiência da fragmentação, da identidade fugaz, através de uma forma de fixação, de retorno à segurança de uma densidade – o passado, que, transformado em objecto nostálgico de revisitação e de espectáculo, é o único cuja integridade parece resistir à dúvida e à perda que vincam desfiguradamente o presente. No entanto, nota Fredric Jameson, em

El Posmodernismo o la Lógica del Capitalismo Avanzado (1991), o historicismo recente

dissimula, na verdade, uma liquidação da historicidade, descrita como a perda da nossa capacidade vital de experimentar a História de modo activo e de modelar representações da própria experiência actual. O final da ideia de Progresso e dos grandes relatos que pretendiam dar conta da evolução da Humanidade projecta a dúvida sobre a História como portadora de sentido. Aquele que para ela se volta é agora um olhar órfão que, no seu desamparo fundamental, não deixa de procurar o reconhecimento de um mundo familiar, em que se possa situar. A busca da História é, pois, a busca de um lugar, no sentido antropológico que Marc Augé, em Los ‘No Lugares’ Espacios del Anonimato (1995), concede ao termo: o lugar de identidade, relacional e histórico.

Neste contexto, a proliferação do romance histórico, género híbrido, de combinação ambígua entre ficcionalidade e verdade (Marinho, 1999: 12), servirá o propósito de mitigar a solidão, através de uma função que se supõe trans-temporal. A vertente didáctica que o género assumia no século XIX deixou de existir como preocupação do escritor ou busca do leitor. Em vez disso, a tomada de consciência da História como texto entre textos funda a exploração romanesca de que é hoje alvo, bem como o questionamento das noções estremes de ficção e de verdade. Multiplicam-se, agora, notoriamente, as visões que trabalham sobre limbos ontológicos e temporais que, paradoxalmente, dilatam a perda do sujeito contemporâneo, arremessando-o para labirintos de textos e confundindo-lhe as referências. Se o romance histórico poderá assomar, num primeiro momento, como resposta a uma necessidade de orientação individualmente sentida, depressa, através dos processos de ironia e de anacronia, se distancia dessa motivação, ao conhecê-la, procurando preencher uma perda através da sua exemplificação e intensificação. O presente literário é, pois, marcado com recorrência pela sátira e pela paródia sobre utopias plurais, vividas com brevidade e depressa esgotadas.

Emprestando à literatura o seu domínio factual, pela procura, que faz a mão escrevente, de um cunho legitimador, a História submete-se já àquela, ajudando a criar versões permutáveis do passado, que se negam a uma hierarquização em função de critérios precários de verdade e mesmo de cronologia. Actualmente, a distinção entre literatura e texto historiográfico depende, no extremo, como escreve Luís Adão da Fonseca8, das referências paratextuais – são estas que vão definindo um primeiro protocolo de leitura que o leitor deverá confirmar ao nível do texto. No entanto, e desde casos célebres como, no século XVIII, o de Jacques, le Fataliste, de Diderot, e, no século XX, o d‟ O Assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, o autor e o narrador são as primeiras fontes de suspeita do leitor, desmerecendo a sua confiança, até que se provem eximidos do desejo de fraude. Por este motivo, a própria classificação genológica impressa na obra pode mais não ser do que uma falsa pista, destinada à continuação desse labirinto em que o leitor contemporâneo deve continuamente errar, sob o peso esmagador do ponto de vista.

Logrando a elevação do estatuto de outrora, o tempo vai, pois, cedendo o seu lugar ao espaço, instância agora dominante, intra e extra-textualmente, congregando, no primeiro caso, construções diegéticas paratácticas, tendentes ao “ucronismo”. A sobreposição e a distensão espacial de tempos da História (ou da história) vêm, em paralelo, reflectir a quase simultaneidade dos movimentos revivalistas e revisionistas que se sucederam no século XX, questionador de toda a tradição literária, artística e cultural. Chegados a um momento de síntese e de inauguração de novos meios e novas linguagens da arte, novas formas de reprodutibilidade, o espaço assume-se como a categoria tanto fecunda como inevitável de experimentação e de manifestação da ordem do presente.

8 FONSECA, Luís Adão (2004), “As relações entre História e literatura no contexto da actual crise

da dimensão social da narrativa historiográfica”, in MARINHO, Maria de Fátima (org.), Literatura e

História – Actas do colóquio internacional, vol. I, Porto, Departamento de Estudos Portugueses e