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3.3. Modos de ver e sentir a morte

3.3.1. Do retrato individual à fotografia mortuária

A atividade fotográfica teve seu início marcado pelo emprego do retrato individual. Este tipo de fotografia possuía um alto custo e era uma opção apenas da elite, sendo usado como um meio de distinção social e de sair do anonimato. Assim, o retrato fotográfico colocou-se como uma prova material da existência humana, alimentando a memória individual e coletiva de homens públicos e de grupos sociais. Nessa fase, a fotografia situava- se como um meio de legitimação do poder e da Nação, como um todo80.

Se forem determinados três momentos fundamentais para o aperfeiçoamento dos processos fotográficos [...] que levarão, em 1895, à invenção da primeira câmara portátil, carregável e descarregável em plena luz, são igualmente três as etapas nucleares da complexa relação da fotografia com a sociedade do século XIX. A primeira etapa estende-s e d e 1 8 3 9 a o s a n o s 5 0 , q u a n d o o i n t e r e s s e p e l a f o t o g r a f i a s e r e s t r i n g e a u m p e q u e n o n ú m e r o d e a m a d o r e s , proveniente das classes abastadas, que podem pagar os altos preços cobrados pelos artistas fotógrafos. 81

Contudo, a atividade fotográfica foi, progressivamente, se popularizando e permitindo o acesso às classes menos privilegiadas. O marco dessa mudança foi a invenção, em 1854, de um aparelho que permitia a tomada de até oito clichês simultâneos, iguais ou diferentes, numa única chapa. Esta invenção foi denominada carte de visite ou cartão de visita, um retrato de 9,5 x 6,0 cm, montado num cartão de 10 x 6,5 cm. Assim, o carte de visite possibilitou a entrada de novos protagonistas na empreitada fotográfica82.

O s e g u n d o m o m e n t o c o r r e s p o n d e à d e s c o b e r t a d o c a r t ã o d e v i s i t a f o t o g r á f i c o [ . . . ] p o r D i s d é r i , q u e c o l o c a a o a l c a n c e d e m u i t o s o q u e a t é a q u e l e m o m e n t o f o r a a p a n á g i o d e p o u c o s e c o n f e r e à f o t o g r a f i a u m a verdadeira dimensão industrial, quer pelo barateamento do produto, quer pela vulgarização dos ícones fotográficos em vários sentidos. 83

80

BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

81

FABRIS, Annateresa (org). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp. 1991, p. 17.

82

BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia, op. cit., p. 50.

83

A partir daí, ocorre uma popularização da atividade fotográfica, caracterizada pela abertura de muitos estúdios, pelo surgimento de novos tipos de fotografia e novas possibilidades. Os fotógrafos, nesse momento, anunciavam seus serviços em jornais e almanaques, por exemplo. Através desses anúncios podemos inferir uma série de características, tais como o tipo de trabalho realizado, a clientela, bem como a inserção profissional destes fotógrafos.

Novos tipos de fotografias são desenvolvidos nos estúdios: em grupos ou em famílias, por exemplo. Os estúdios forneciam uma variedade de apetrechos e cenários para a c a r a c t e r i z a ç ã o d e s s a s f o t o g r a f i a s e p a r a a a u t o -representação daqueles que seriam fotografados. Almofadas decoradas, cortinas de veludo, panos de fundo pintados com cenas rurais ou urbanas, roupas de gala, réplicas de tapetes persas e instrumentos musicais são alguns exemplos dos acessórios que estavam disponíveis nos estúdios “aos clientes interessados em atribuir realidade a seus sonhos e desejos”84. Contudo, as fotografias dessa época não conseguiam esconder a origem humilde de seus clientes, seja pelo desconforto e cansaço expressos em seus rostos, seja pelas roupas largas e pele maltratada85.

O t r u q u e , p o r é m , n ã o c o n s e g u e d i s f a r ç a r a s d i f e r e n ç a s s o c i a i s . O p o b r e travestido de rico não se caracteriza apenas por uma pose demasiado rígida. Trai seu acanhamento na timidez com que se localiza num ambiente estranho e nas roupas que não lhe servem, muito justas ou largas. 86

Com relação às fotografias de famílias, o que fica mais evidente é a questão da representação dos papéis sociais. Através dessa representação, era criada a identidade do grupo e a memória era preservada para as gerações futuras. É interessante observar a atribuição de papéis conferida a cada um desses membros. O “chefe da família”, por exemplo, era a figura que mais se destacava perante o grupo, seja pela posição central que ocupava, seja pelo vestuário imponente. A mulher era, geralmente, representada sentada, ao lado de seu marido. Ao redor do casal surgiam outros componentes da família, podendo variar entre filhos, tios, sobrinhos ou avôs. Os filhos do casal situavam-se portando objetos que os identificavam às crianças (brinquedos como o bambolê, por exemplo) ou com o legado que, futuramente, seriam herdeiros (como uma cerca, representando a propriedade fundiária, por exemplo)87. 84 Ibid., p. 51. 85 Ibid., p. 51-52. 86

FABRIS, Annateresa (org), op. cit., p. 21.

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Outros tipos de fotografias seriam as de crianças e de pessoas falecidas. Conforme já vimos nas fotografias de famílias, também nas imagens das crianças a preocupação que surge é com a representação da infância como um momento de valorização do lúdico e da distração. Por isso, as crianças eram, freqüentemente, representadas com brinquedos88.

Já com relação às fotografias mortuárias, o que podemos perceber é a utilização desse tipo de fotografia como um meio de se preservar a última imagem, le dernier portrait 89. Hábito muito comum e difundido na França, a fotografia de pessoas falecidas conquistou adeptos também entre os fotógrafos que trabalhavam no território brasileiro. É comum visualizarmos nos anúncios destes fotógrafos a fotografia de falecidos em meio às diferentes especialidades destes90.

Ao retratar um ente querido que acaba de morrer, a imagem fotográfica faz reviver, em l i n g u a g e m e e s t é t i c a s e c u l a r e s , “ a l g o q u e s e a s s e m e l h a a o e s t a t u t o p r i m i t i v o d a s i m a g e n s : a m a g i a ” . N e s s e s c a s o s , a f o t o g r a f i a f u n c i o n a c o m o u m “ s u b s t i t u t o d a p o s s e d e u m a c o i s a o u p e s s o a q u e r i d a , p o s s e q u e l h e c o n f e r e a l g u m a s d a s c a r a c t e r í s t i c a s d o s o b j e t o s ú n i c o s ” . Sempre que vista, a imagem estimulará lembranças e, quem sabe, aplicará a dor da perda. 91

Embora situando-se como um meio estritamente individual de memória, visando a rememoração de um indivíduo especificamente, as fotografias de pessoas falecidas vão além desse nível, na medida em que impõem a memória desse mesmo indivíduo a um amplo grupo de pessoas, nas mais diversas épocas. Como no caso das fotografias presentes nos acervos dos museus históricos, que extrapolam a época em que foram produzidas, atestando a várias gerações o rosto que se desejou guardar. Nesse sentido, as fotografias mortuárias situam-se como verdadeiros objetos de memória.

Com o fenômeno de massificação da fotografia, surge o pictorialismo, um recurso criado com o objetivo de diferenciar as imagens das fotografias comuns e também como um meio da aproximação com a pintura. Os fotógrafos, que geralmente também eram pintores, retocavam as fotografias com lápis, carmim, grafite e esfuminho, de coloração com óleo,

88

Ibid., p 56.

89

“Le dernier portrait” foi o nome de uma exposição ocorrida no Museu d’Orsay, em 2002. Estavam expostas não apenas fotografias, mas também máscaras, pinturas e desenhos mortuários. Cf.: HERAN, Emmanuelle et al. Le dernier portrait. Paris: Editions de la Reunion des Musees Nationaux, 2002.

90

BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia, op. cit., p. 56-57.

91

aquarela e anilina. Assim, essa técnica acabou criando uma elitização com relação aos seus usuários, pois os preços cobrados eram bem maiores que as fotografias sem retoques92.

Por volta de 1880, tem início a terceira etapa: é momento da massificação, quando a fotografia se torna um fenômeno prevalentemente comercial, sem deixar de lado sua pretensão a ser considerada arte. Para diferenciar-s e d a f o t o g r a f i a c o r r i q u e i r a , a f o t o g r a f i a a r t í s t i c a n ã o h e s i t a e m r e n e g a r a s e s p e c i f i c i d a d e s d o m e i o , l a n ç a n d o m ã o d e u m a s é r i e d e t é c n i c a s c o m o a goma bicromatada e o bromóleo, que garantem resultados semelhantes ao pastel e à água-forte. 93

Enfim, foram muitas as técnicas, usos e funções atribuídos à fotografia no século XIX. Citamos aqui apenas um pequeno número, caberá ao leitor interessado aprofundar melhor nesses aspectos. Passaremos, a seguir, ao trabalho dos fotógrafos na cidade de Juiz de Fora, mais especificamente àqueles que possuíam a fotografia mortuária como uma de suas especialidades.

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