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Do título considerado como equívoco ou como indício revelador.

A TOCA DO LOBO

G) Ontem Não te vi em Babilónia

1. Do título considerado como equívoco ou como indício revelador.

(…)E se eu cantar quiser em Babilónia sujeito, a voz, quando a mover, se me congele no peito(…)

Luís de Camões, «Redondilhas de Babel e Sião»

Parece-nos, em bom entender, que, desde logo, o título deste romance, Ontem

Não te vi em Babilónia (2006), concorre em nossa defesa, para o estudo da polifonia e

da clandestina supremacia da univocalidade do narrador. Desde já, o topónimo „Babilónia‟ designa, no imaginário colectivo, um universo caótico, desagregado, de ruptura de entendimento. Recordemos que, enquanto construção mítica, „Babilónia‟ (se o entendermos como evolução do antigo hebraico «לבב» [Babel]) aponta para um sentido de confusão (de línguas/de enunciação) (especificamente, com o episódio bíblico da Torre de Babel)413. Recordemos o episódio:

(…) O mundo inteiro falava a mesma língua, com as mesmas palavras. Ao emigrar do Oriente, os homens encontraram uma planície no país de Senaar e aí se estabeleceram. E disseram uns aos outros: "Vamos fazer tijolos e cozê-los no fogo!" Utilizaram tijolos em vez de pedras, e betume em vez de argamassa. Disseram: "Vamos construir uma cidade e uma torre que chegue até ao céu, para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela superfície da terra.

Então Javé desceu para ver a cidade e a torre que os homens estavam a construir. E Javé disse:" Eles são um único povo e falam uma só língua. Isto é apenas o começo dos seus empreendimentos. Agora, nenhum projecto será irrealizável para eles. Vamos descer e confundir a língua deles, para que um não entenda a língua do outro".

Javé dispersou-os dali para toda a superfície da Terra, e eles cessaram de construir a cidade. Por isso, a cidade recebeu o nome de Babel, pois foi lá que Javé confundiu a língua de todos os habitantes da Terra, e foi dali que Ele os espalhou por toda a superfície da Terra. (…).414

413

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, «Tour de Babel» in Dictionnaire des Symboles, Paris, Seghers, 1973, pp.151-152: «La tour de Babel symbolise la corruption. Le mot même de Babel vient de la racine Bll qui signifie confondre.(…)»

414

Ora, tal universo está em estreita consonância com o posterior desenvolvimento: oito narradores que monologam, cujas vozes, embora aparentadas pela própria digressão narrativa, recaem num profundo solipsismo, tentando exorcizar os seus fantasmas durante a noite, sem nunca chegarem a um pacto de cumplicidade que só o leitor pode organizar com a leitura.415

Se por um lado, a simbologia de Babilónia desnuda ou permite elucidar, ainda que de uma firma embrionária, o conteúdo ficcional, por outro, a própria sentença que formata o título inscreve já o rumo ficcional a desenvolver, gizado numa polifonia que, sub-repticiamente, encerra uma dominância de uma voz soberana (univocalidade) que está quase sempre presente (pelo menos, a nível processual…) – o advérbio “não” aposto em “te vi em Babilónia” circunscreve e gora a dimensão de interacção das personagens, reservando mesmo (e só) a capacidade enunciadora das mesmas.416

Sob este aspecto, refutamos – desde já – a proposta de Eunice Cabral, quando afirma que

(…) A única esperança vem do título, que é uma frase enigmática, aliás, sem a mínima relação com o texto do romance; (…).417.

O título concentra desde já, um tópico que vai ser desenvolvido, ad extensum, no próprio texto: ao negar o aspecto, como já dissemos, presencial e interaccional das hipotéticas personagens, o autor enfoca a dimensão enunciadora e só enunciadora, expressa, até ao limite, na última frase do romance,

(…) porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro(…).418

Mais uma vez, sublinhe-se que a última frase do livro enfatiza o carácter soberano de coexistência da enunciação das várias personagens, sob o primado de uma diegese canónica – inexistente –; ora essa cópia enunciativa é subtilmente induzida pelo

415

Eunice Cabral, «Terrenos Baldios» in Jornal de Letras, nº946, Lisboa, 2006, in

http://ala.nletras.com/livros/ontem_nao_te_vi_em_babilonia. htm: «(…) O que é narrado – não por um único narrador, mas por vários, sem hierarquia entre si – decorre das vísceras das personagens, numa noite assombrava pelas «verdades» nunca confessadas no que têm de mais cru e vil. (…)»

416

Eunice Cabral, Op.cit., s/p: «(...) quem diz “ontem não te vi” é alguém que esperava ter visto outra pessoa; teve a expectativa de avistar outra, num determinado lugar. (…)»

417

Eunice Cabral, Idem, ibidem.

418

lexema „Babilónia‟. Em acréscimo, podemos dizer que a leitura feita “no escuro” atinge um grau de total dependência da (re)citação do que é narrado (reminiscência dos antigos aedos, dos quais a função era a recitação - narração cantada - de epopeias), cuja técnica narrativa – e não é por acaso que, temporalmente, a diegese se situa num plano nocturno, entre o sonho e a vigília419 – tem ecos da técnica narrativa de filmes como Blue, de Derek Jarman420 ou Branca de Neve, de João César Monteiro. Os dois filmes recorrem à total ausência de imagem (um ecrã preenchido por uma imagem totalmente azul e negra, respectivamente) e apenas apresentam a diegese recorrendo ao som (vozes) e sonoplastia.

Desta forma, podemos concluir que a aparente arbitrariedade do título não é, senão, na aparência, mas permite já uma subterrânea elucidação com o fio narrativo a desenvolver.

419

Maria Alzira Seixo, Os Romances de António lobo Antunes: Análise, interpretação, resumos e guiões de leitura, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2002.pp.99-224: «(…) afloram obsessões temáticas, como a da noite (…)» Não querendo, de forma alguma, fazer um comparação primária, parece-nos que um dos juízos que Maria Alzira Seixo faz a A Ordem Natural das Coisas se aplica ao romance em questão: «(…)E é, de facto, um livro de mortos e de noite, (…) ausência e escuridão, (…)» (sublinhados nossos).

420

Brian Hoyle , «Derek Jarman» in Senses of Cinema, http://www.sensesofcinema.com/contents/directors/07/jarman.html : «(...).If the film is visually simple, the soundtrack however, involving music and a sound design by Simon Fisher Turner as well as the poetic voiceovers, is highly complex. This was a necessity, as in Bluethe soundtrack at once has to provide the film's narrative, its pictures and its emotional core. However, the diary entries read by the cast are both visually evocative and, at times, almost unbearably moving. By taking Jarman's own experiences of AIDS as its subject, the film manages to be personal and autobiographical but also taps into the consciousness of the viewer, who could not possibly be untouched by this global epidemic. Furthermore, “each spectator's experience of Blue is wholly unique”. For this reason, Blue “is nothing less than a revolutionary cinematic achievement [which] redefined the notion of what is possible in cinema”, as the intense, flickering blue screen becomes a blank canvas onto which the viewers, prompted by the evocative soundtrack, can impose their own images. (…)» (sublinhados nossos)

2. Considerações sobre a polifonia, organização e subjectivização discursivas na