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Dobrar agora, esse instante Juntas Duas naves

Números Dois rumos Á procura de um deus. E as mesmas perguntas No sempre No pasmoso instante.98

Esta longa estrada para trás: ela dura uma eterni- dade. E aquela longa estrada para além – é outra eternidade. Eles se contradizem, estes caminhos; chocam-se diretamente, cabeça contra cabeça: e é aqui, neste portal, que se encontram. O nome do portal está escrito acima: ‘Instante’.99

Toda a minha vida, pois, está aqui, neste instante, instante?, não há instante, instantes, o que assim denominais é a vossa própria vida, poliedro de inumeráveis faces transparentes, estas, as faces, são o que instantes nos parecem, um destes con- templai, uma destas faces, e vereis ser impossível ignorar as outras. Sob dúplice óptica vejo o mun- do e falo com boca dupla.100

Ao longo de Avalovara, a personagem Nascida e Nascida fala de sua duplicidade citando os estudos do naturalista Wilhelm Bolsche sobre a divisão da estrela-do-mar em duas partes. Ele questiona, na recomposição da estrela, qual seria o instante em que cada uma das partes torna-se uma nova vida, o limite entre quando ela se “pensa como uma unidade e a partir de que mo- mento adquire a noção, rudimentar, de sua dupla existência”.101

Essa divisão ao meio é semelhante à de que fala Wislawa Szymborska no poema Autotomia. Autotomia é a capacidade que alguns seres possuem de fragmentar-se em situações de perigo, deixando um pedaço de si para trás como defesa. No poema, ela fala de subjetivos abismos que se abrem ou que abrimos em nos- sas vidas devido a necessidade de dividirmos nosso corpo, e pro- põe um não “morrer demais”, um “morrer somente o necessário, regenerar da parte que restou. ”102

Com paradoxos autorreferentes, Jorge Luis Borges em pers- pectivas de “um conjunto que contem a si mesmo, um conjunto que contém e está contido em sua parte”103 cria com a literatura

espaços de continuidade. Borges revela uma fascinação por ideias abstratas como o cálculo do tamanho da Biblioteca de Babel

(conto de 1941), a existência de mais do que um infinito, a ideia de um todo como algo não maior do que as partes ou o Livro de Areia (1975), que, como a areia, não tem princípio nem fim.

As ficções da literatura não são realidades ideais, platônicas, como as que Nietzsche critica na metafisica tradicional por res- saltarem o pensamento niilista. Os duplos de Borges, nada tem a ver com mundos dualistas e transcendência. Os duplos de Bor- ges, a exemplo do personagem Pierre Menard, que tenta escrever o mesmo Dom Quixote ao mergulhar na experiência de vida de Miguel de Cervantes, multiplicam as possibilidades de existência porque nunca podem se fazer totalmente iguais.

Na fotografia como “advento de mim mesmo como outro”104,

para Barthes, olhar-se em papel é também estar diante de um distúrbio de propriedade. A fotografia torna o corpo objeto, por ela falseamos, jogamos com a sensação de inautenticidade. Fotó- grafo, referente, máquina fotográfica, a fotografia é feita de sujei- tos em deslocamento, em crise. A fotografia é cópia. A imagem é desdobramento.

Já nas ficções de Alberto Manguel - um dos leitores contra- tados para ler em voz alta a Borges quando o autor fica cego - o escritor também trata da cópia, mas do eliminação igual. Aos 53 anos de idade, Manguel escreve Os livros e os dias, onde mistu- ra diário com crítica literária, registrando pensamentos sobre os livros clássicos de sua vida que resolve reler um por mês, duran- te um ano. Ele percebe, a certo momento, que a sua biblioteca parece ser um duplo de si. Os livros tanto falam sobre de suas memórias, que começam a lhe parecer redundantes. Em meio às prateleiras, encontra um panfleto que o faz questionar se sua existência seria necessária.

[...] encontra na casa uma cópia idêntica do panfleto que leva em seu bolso: não duas cópias do mesmo panfleto, mas duas vezes a mesma cópia. A dupla realidade suprime a si própria; eis por que o fato de encontrarmos nosso duplo significa que devemos morrer. 105

No duplo de Manguel não há dois, mas a sobreposição do repetido, uma subtração, morte. Para Foucault o duplo é “repeti- ção duplicadora, retorno do mesmo, rompimento, imperceptível diferença, duplicação e fatal dilaceração.”106 Não é como Borges

pensa o reflexo dos espelhos que “multiplicam o número de ho-

mens”107, onde dobrar está num sentido de fazer dois. Não se trata

também de Doppelgänger maniqueísta, onde cria-se dualidades de oposição do bem ao mal.O encontro do panfleto que elimina a si mesmo e a sua realidade é a repetição do mesmo, a anulação onde se sobrepõe o repetido igual.

Deleuze usa a concepção de duplo foucaultiana para buscar a “repetição do diferente”, o duplo não como algo que “desdobra do Um”, mas que “reduplica do Outro”.108 O duplo não projeta para fora o que há dentro, mas é o fora para dentro. Diante das identidades simuladas do mundo moderno, Deleuze procura a diferença em si mesma e a relação do diferente com o diferente.

Nossa vida moderna é tal que, encontrando- -nos diante das repetições mais mecânicas, mais estereotipadas, fora de nós e em nós, não cessamos de extrair delas pequenas diferenças, variantes e modificações. Inversamente, repe- tições secretas, disfarçadas e ocultas, animadas pelo deslocamento perpétuo de uma diferença, restituem em nós e fora de nós repetições nuas, mecânicas e estereotipadas. No simulacro, a repetição já incide sobre repetições que se re- petem e é o diferenciante que se diferencia. A tarefa da vida é fazer com que coexistam todas as repetições num espaço em que se distribui a diferença.109

Mirror Piece (1969)

É diferente

[...] mesmo sendo diferentes Como duas gotas d’água.110

[...] como quando dizemos que duas coisas se assemelham como duas gotas d’água. 111

Assim Wislawa termina o poema Nada duas vezes. Assim Deleuze inicia Diferença e Repetição.

Com a mesma imagem de inimaginável transparência, no início de seu livro, capítulo com título alternado para Repetição e Diferença, numa constante passagem de uma coisa a outra, De- leuze esclarece que repetição não é generalidade.

Wislawa busca o mínimo.

E o mínimo faz múltiplos, e o múltiplo “não é só o que tem muitas partes, mas o que é dobrado de muitas maneiras”. 112

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