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2. POLÍTICAS PÚBLICAS E EDUCAÇÃO BRASILEIRA: representações sociais

2.2. Docência na educação infantil

Compreender a docência no contexto atual requer ampliar as perspectivas de sua atuação na educação infantil, a partir das especificidades da criança que pensa, age, cria e recria suas hipóteses na interação com o outro, construindo conhecimentos diante das diversas linguagens que lhe são oportunizadas no espaço educativo, social e cultural.

Dessa forma, a docência constitui o trabalho pedagógico que precisa ser organizado, implementado e avaliado mediante as necessidades das crianças nas suas especificidades, propiciando a articulação entre o educar, o cuidar e o brincar. Implica planejamento, organização do espaço, gestão de sala de aula, com vistas ao desenvolvimento cognitivo, afetivo e sociocultural da criança.

Oliveira (2007a, p. 72) enfatiza:

[...] a docência não se restringe ao domínio do conteúdo a ser transmitido pelo professor em sala de aula, expande-se, portanto, ao processo de organização do trabalho pedagógico nos espaços da instituição, nos quais a sala de aula se constitui um deles. De tal modo, o planejamento a coordenação, o acompanhamento e a avaliação dos processos formativos realizados se constituem dimensões da gestão educacional e, portanto, do exercício da docência.

Nesta perspectiva, a docência na educação infantil se configura pela necessidade de compreender a criança como sujeito histórico, social, cultural e

capaz de se desenvolver nas interações que estabelecem com o outro e com o meio em que está inserido. Por isso, não se limita apenas à sala de aula, mas se caracteriza pela capacidade de gerir o espaço educativo nas suas dimensões pedagógicas, políticas e socioculturais.

Como dimensão pedagógica, a docência assume o papel de planejar, organizar o espaço educativo baseado na realidade e na transformação desta, com vistas ao desenvolvimento da criança nos aspectos cognitivos, afetivos, linguísticos, estéticos, éticos, culturais e sociais. Está relacionada à dimensão política e à dimensão sociocultural, pois implica a formação da criança para compreender sua realidade e transformá-la, além de se perceber parte da sociedade e de um contexto em que crenças, costumes contam sua história, mas que também faz história.

Nesse aspecto, Tardif (2007) argumenta a relação entre a docência e a gestão educacional, ampliando as possibilidades de participação do profissional em educação na organização física e social da instituição. O docente não mais está atrelado apenas à sala de aula, mas também pode contribuir para as discussões sobre a gestão da política que se faz no espaço educativo.

A docência, segundo Oliveira (2007a, p. 73) revela, nesse cenário, como um “[...] exercício construído concomitantemente nos espaços de formação e atuação profissional, um instrumento político-pedagógico capaz de mudar a lógica de trabalho das instituições que separa teoria e prática”.

Defendemos, então, que a docência para a educação infantil aparece, nesse novo cenário, com a perspectiva de inserir o profissional na dinâmica das relações interdisciplinares, desafiando o próprio docente a construir suas experiências baseadas em pressupostos consubstanciados no compromisso ético de proporcionar às crianças vivências lúdicas e educativas capazes de compreenderem sua atuação no mundo dos adultos, mas como crianças que brincam, aprendem e testam suas próprias hipóteses.

Numa abordagem histórico-social, a teoria de Vygotsky (2007), tem, como premissa básica, o reconhecimento da capacidade da criança desde recém-nascida, cuja possibilidade de apropriação de conhecimentos acontece mediante as interações sociais. Para isso, torna-se relevante propiciar, às crianças, interações das mais diferentes naturezas, levando em consideração a diversidade e a heterogeneidade como elementos enriquecedores ao universo infantil.

Segundo Vygotsky (2007), a criança nasce dotada das funções psicológicas elementares (reflexões involuntárias) que são transformadas em funções psicológicas superiores (consciência, planejamento e deliberação) adquiridas a partir do aprendizado cultural, sendo a linguagem extremamente importante para o próprio desenvolvimento psicológico.

Para explicar esse processo, elaborou o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal que consiste na distância entre o Desenvolvimento Real e o Desenvolvimento Potencial.

O Desenvolvimento Real é determinado pelo que a criança é capaz de realizar sozinha porque já possui um conhecimento consolidado. O Desenvolvimento Potencial é determinado pelo que a criança ainda não domina, mas é capaz de realizar com auxílio de alguém mais experiente. Nesse sentido, é preciso a atuação do mediador, o qual ajudará a criança concretizar ações que ela não atinge sozinha.

Para Vygotsky (2007), as dimensões: desenvolvimento, aprendizagem e ensino são processos distintos que interagem dialeticamente, cuja aprendizagem promove o desenvolvimento em função do conhecimento pela mediação do “outro”.

Nessa perspectiva, a função educativa nas instituições de educação infantil assume um caráter de premeditação, cujo planejamento, acompanhamento e avaliação busca uma concepção de conhecimento como uma totalidade, devendo incluir temas relativos ao conhecimento de si, do outro e das questões presentes na sociedade contemporânea.

Surge, assim, a preocupação com a formação do profissional de educação infantil, na qual evidencie capacidades inter e intrapessoais num processo de inserção dos conhecimentos a partir da ação/reflexão/ação, considerando que todas as atividades, brincadeiras ou ações que se realizam com as crianças e para as crianças tenham um valor educativo: cuidar e educar.

A educação infantil, na perspectiva histórico-cultural, define a criança em construção e reconstrução do conhecimento, mediante a interação permanente com possibilidades educativas, emotivas e cognitivas num processo dinâmico, real, ativo e reflexivo.

Para compreender como ocorre a aprendizagem da criança, a prática do diálogo e a busca de uma transformação social são fatores inerentes à docência, pressupondo a formação do professor/pesquisador. Para isso, é preciso a prática de

leituras mais plenas e releituras críticas dos fatos vivenciados no cotidiano da sala de aula, cuja dinamicidade e criatividade propiciadas pela leitura equalizarão numa visão ampla e global do mundo e da própria vida.

A intencionalidade da ação interdisciplinar em seu caráter antropológico evolui na investigação do homem como ser reflexivo, mediante o ato de perguntar em função da compreensão total do conhecimento, cujo método surge do envolvimento e da complexidade na participação em planejar, elaborar e efetivar propostas pedagógicas, buscando contextualizar o saber educacional.

Para repensar sobre a docência, torna-se imprescindível o autoconhecimento na análise das práticas individuais, cuja natureza é sempre social, ou seja, ao perceber-se em suas próprias experiências, o docente amplia as possibilidades de leitura de sua prática e a de outros colegas.

Para Oliveira (2007a, p. 78), o contexto da docência na educação infantil sinaliza:

[...] a valorização das histórias de vida das pessoas que convivem na instituição, a parceria família e comunidade, o reconhecimento da linguagem como instrumento cultural e de apropriação do conhecimento de mundo, o currículo construído com e pelas diferentes formas de relacionamentos mediante as experiências de aprendizagem vivenciadas dentro e fora da instituição, o papel social dos profissionais que ali trabalham, a construção do tempo de vida como tempo pedagógico, a organização dos espaços como ambientes educativos, uma dinâmica social de construção de valores éticos.

Como sujeito da ação educativa, o docente reconhece a importância de sua história de vida inserida na história das crianças, construindo o ambiente que favorece a apropriação das diferentes linguagens com vistas à compreensão do mundo em que vive e à construção de valores éticos, sociais e culturais que contribuem para a formação da criança.

Segundo Fazenda (2001, p. 76), “[...] a prática de cada um está marcada por sua história de vida pessoal, acadêmica e profissional”. Buscar indicações teóricas que possam refletir sobre a prática, tendo em vista a construção de uma nova didática, em função da necessidade de compreensão da complexidade dos condicionantes históricos que determinaram as práticas atuais dos professores, pressupõe uma relação dialética com a própria prática, impelida pelo diálogo consigo

mesmo, com os pares e com os teóricos, assumindo atitudes de humildade e reflexão diante da limitação do próprio saber.

O reconhecimento da educação infantil como um espaço que propicia o processo de construção da relação ensino e aprendizagem e de acesso ao conhecimento, culturalmente acumulado pela humanidade, contribui para efetivar um trabalho pedagógico mais comprometido com uma intencionalidade educativa, o que não significa escolarizar a criança, mas articular o cuidar, o educar e o brincar, com vistas à ampliação de experiências que lhe favoreçam o seu desenvolvimento integral.

Por exemplo, quando o professor planeja uma atividade lúdica (jogo da memória) sobre as obras de Portinari, dentre as quais abordam temas sociais que retratam a história e a realidade de nosso país, desafia as crianças a pensarem sobre essa realidade, bem como transformá-la. Isso requer uma concepção de criança cidadã que participa ativamente da sociedade e está inserida num processo de compreensão dos fatores envolvidos da sua própria realidade.

Além disso, nesse exemplo, o professor oportuniza a criança desenvolver diversas linguagens, dentre elas, a linguagem oral e escrita, pictórica, musical, cinestésico-corporal, espacial, lógico-matemática a partir das obras de Portinari. Apresentamos esse exemplo, nesse trabalho, a título ilustrativo, para defender a docência na educação infantil, não como o professor que vai ensinar conteúdo, mas aquele que instiga as crianças a vivenciarem e descobrirem o mundo ao seu redor, através da sua própria história, de sua própria realidade.

Com o propósito de explicitar parâmetros e critérios que possibilitem compreender as intenções nas tomadas de decisão no cotidiano escolar, é crucial a lucidez dos princípios que norteiam a metodologia dos cursos de formação inicial, permitindo o diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento com vistas à compreensão do real, considerando as especificidades do desenvolvimento das crianças numa relação dialética, cujas contradições presentes sejam palco de discussão política, e não de alienação às condições de vida tanto docente quanto discente.

Nesse sentido, o professor reafirma a importância de seu papel, à medida que oportuniza, na educação infantil, a construção da visão de mundo das crianças, tendo em vista a formação do cidadão planetário, capaz de enfrentar os desafios

impostos pela sociedade contemporânea: dentre eles: o consumismo, o individualismo, a indiferença à vida humana e do planeta.

A docência, nesse contexto, consiste em produzir conhecimentos a partir de vários saberes que se caracterizam por um esforço de totalização e integração de diferentes perspectivas, privilegiando a essência das ações que nortearam ou norteiam a formação docente, fazendo uma releitura da concepção de educação, mediante questões éticas e reflexivas das teorias e práticas educacionais. Formosinho (2002, p. 184) afirma

A docência é, ao mesmo tempo, uma atividade intelectual e uma atividade técnica; uma atividade moral e uma atividade relacional. Sendo a docência também uma profissão de ajuda, ela é simultaneamente uma ação de ensino e uma ação de cuidados, devendo os professores ser conceptualizados como agentes do desenvolvimento humano.

Enfrentar o desafio de desvelar uma ética própria que determinou o modo próprio de ser que o personaliza como ser único, habitante e construtor de uma forma própria de educar, exige que o docente possa conhecer a si próprio, rompendo com estereótipos adquiridos no passado, compreendendo seu papel no mundo e interagindo com os outros e com seu ambiente, num movimento circular .

Nesse processo de construção do sujeito histórico e social, a profissão docente como prática social se transforma, adquirindo novas características para responder a novas demandas da sociedade, evidenciando um caráter dinâmico e formativo que colabore para os processos emancipatórios do indivíduo.

Assim, estabelecer relações entre a teoria e a prática proporciona, à atividade docente, o alicerce para definir sua identidade profissional a partir de sua história de vida, seus saberes, suas angústias, sua dimensão simbólica, mediante a interação com outros professores, outras escolas, outros saberes.

Reelaborar os saberes iniciais, em confronto com as práticas vivenciadas nos contextos escolares, mediante um processo coletivo de reciprocidade, propicia, à formação do professor autonomia para tomada de decisões exequíveis à solução dos problemas educacionais.

Valorizar o trabalho do docente como sujeito das transformações da realidade da educação em nosso país requer consideração indissociável entre formação, condições de trabalho, salário, jornada, gestão e currículo, compreendendo um

projeto humano emancipatório capaz de ratificar a prática do discurso da liberdade e da democracia.

Diante desses pressupostos, defendemos a docência como a produção de saberes científicos e didático-pedagógicos, em que ensinar e aprender são interdependentes e implicam a ação e reflexão de educadores capazes de criar e recriar o conhecimento visto como inacabado, exigindo posturas críticas, curiosas, questionadoras, humildes e suscetíveis a mudanças constantes, no ato de pensar e atuar na educação de nossas crianças.

Assim, a docência na perspectiva histórico-cultural considera o desenvolvimento infantil como um processo dinâmico; articula as diversas linguagens no processo de ensino e aprendizagem; ressignifica a concepção de criança; e considera os aspectos sociais e culturais que envolvem tanto as crianças quanto as professoras e professores.

Portanto, a docência como profissão implica formação específica, contextualizada, fundamentada em pressupostos que reflitam sobre a prática educativa, estabelecendo relações entre as dimensões de ensino e aprendizagem, num processo de construção inacabada de ação/reflexão/ação do trabalho pedagógico.