• Nenhum resultado encontrado

2. ANTES DOS ACHADOS:

5.4 Os achados ou o que dizem os docentes médicos da UFSM

5.4.4 Percebendo-se (quem sou eu, docente médico?)

5.4.4.6 Docentes médicos e não médicos

Perguntar sobre eventuais diferenças entre docentes médicos e não médicos atuantes no curso de medicina foi uma questão que suscitou reflexões curiosas e respostas por vezes contraditórias. Muito do desconforto sentido pelos sujeitos de pesquisa ao falarem sobre este aspecto talvez se deva à possibilidade de uma possível resposta carregar consigo uma questão potencialmente discriminatória: afirmar que há características que diferenciam um docente médico de um docente não médico pode soar como algo que estabelece um gradiente de características

melhores e piores entre um e outro, o que seria no mínimo politicamente incorreto e, mais provavelmente, simplesmente errado.

De forma quase uniforme os sujeitos tendiam a remeter-se ao seu curso de medicina, onde tiveram professores médicos e não médicos e ao fato de que a graduação de origem destes professores, a princípio, não determinava um melhor ou pior desempenho.

Não. Eu fui bolsista por muitos anos... eu fui monitor da fisiologia da **** que é bióloga. […] e ela foi maravilhosa comigo, ela era uma docente maravilhosa e também com muita atenção da pesquisa. Ela era bióloga. […] Eu acho que os professores médicos tem muito pouco comprometimento com a universidade aqui. (Professor 1)

Olha, tchê... na realidade eu acho assim que essa questão... não sei se me engano mas... na realidade eu vejo bons professores não médicos e vejo maus professores... professores entende? Então acho que não está tanto no fato de ser ou não ser professor... eu acho que o sujeito pode... e lá na universidade tem isso né? (Professor 2)

Eu tive alguns professores que não eram nem médicos. […] Mas eu acho que, essencialmente, médico. (Professor 4)

Eu te diria que sim. Eu até tenho contato com algum pessoal da [outro curso] e tal... mesmo de outros cursos, em outros conselhos, a gente diria que... talvez tenha... eu só não consigo te dizer exatamente qual é essa diferença, mas que é diferente, é diferente... […] eu vou até te dizer: talvez os que são médicos digam isso mais do que os que não são. (Professor 5) Eu não vejo muita diferença não. […] Assim como tem bons professores que eram médicos, eu me lembro de bons professores... (Professor 6)

Tive dentistas, tive bioquímicos... nessa parte, vamos dizer, na aula teórica, por exemplo, eu tive professores que não eram médicos que eram excelentes professores, com boa didática, que davam aulas maravilhosas, e médicos dando aulas terríveis. O contrário também. (Professor 9)

A resposta padrão, portanto, foi algo do tipo “tive bons professores que não eram médicos, maus professores que eram médicos e vice-versa”. Remete-se a questão do “bom ou mau” professor à esfera da individualidade, ao interesse de cada um por tornar-se melhor professor, ao comprometimento com o aprendizado por parte do aluno e, ainda que um tanto veladamente, ao “ter ou não ter jeito para a coisa”, independentemente de o indivíduo ser ou não médico.

Passado este primeiro momento delicado, talvez filtrado pelo politicamente correto, algumas opiniões ou impressões decorrentes de observações mais pessoais afloram. A mais marcante delas, me parece, é novamente a ideia de que o ser

médico impacta profundamente na estruturação da personalidade e na forma de ser e agir do indivíduo.

Como profissional... eu acho que o médico tem algumas características da profissão que vão estar presentes em qualquer atividade que um médico vá fazer. O médico é um sujeito, a princípio, muito auto suficiente. Eu acho. O médico é um sujeito muito auto suficiente porque se comparar com os outros profissionais da área da saúde as questões que ele lida são mais complexas do que as questões que a média que os outros profissionais - me parece que é isso - lida. Então muito auto suficiente. Por outro lado o médico também é muito... o médico genericamente... talvez os médicos da minha geração... muito prepotentes, com um ego muito grande... com a dificuldade de ouvir o outro muito grande. Então essas coisas... eu estou colocando coisas negativas, mas o médico também por outro lado... […] Eu acho que o médico médio, ao menos da geração a que eu pertenço, é decidido... é capaz de tomar decisões, é capaz de tomar decisões rápidas, é capaz de decidir. Que eu acho que, dependendo da situação é algo extremamente positivo. Acho também que o médico é um sujeito que tem, no geral, a capacidade de... ou pela força da profissão ou pela sua formação... de ser ouvido pelos outros. Então tudo isso vem no docente médico. Então a gente enxerga... eu consigo ver essas características todas no docente médico que eu acho que é diferente, aí sim, eu acho que é diferente do docente não médico. (Professor 6)

...eu percebo uma certa pressa, uma certa... vontade de rapidez... porque a própria medicina nos leva a isso. Então eu não sei se isso aí é uma qualidade ou um defeito, aí eu não sei. (Professor 8)

Um desdobramento natural desta ideia é o de que a forma de exercer o ofício docente também sofre influência do fato de o indivíduo ser médico. É onde podmeos perceber o habitus medicus atuando. Daí decorre, por exemplo, o fato de que os docentes médicos serem vistos como sujeitos auto suficientes, que não esperam a opinião dos colegas nem dividem muito com eles as suas preocupações ou ansiedades. Esta forma de agir decorreria da maneira como se exerce a própria medicina, solitariamente, no fundo uma profissão que depende de decisões que só o médico se sente apto – e é até legalmente cobrado por isso – a tomar. Isso pode determinar que ele seja visto como portador de um ego hipertrofiado, muitas vezes descrito como arrogante e prepotente. Ou, sob uma luz mais favorável – dependendo do sujeito de pesquisa ou da motivação por trás da análise – como alguém que é decidido, capaz de tomar decisões e implementá-las.

Uma outra questão que apareceu várias vezes e que foi claramente apontada como diferenciando os docentes médicos dos não médicos foi o aspecto mercadológico.

Acho que isso que eu vou dizer não é bem verdadeiro. Porque como aluno, por exemplo, eu convivi com professores muito envolvidos com a escola. E aí eu acho que depois passa-se por uma fase onde... na minha trajetória, vamos dizer nos meus longos anos... isso nem sempre é muito verdadeiro, né? […] Eu acho que isso vem mudando. Então talvez... mas é um pouco... eu também vejo em outras áreas que... às vezes é um pouco individual. Tem gente que é muito envolvida e tem gente que é pouco envolvida. Independente se eu estou saindo daqui da escola para ir para o meu consultório... então eu estou me envolvendo pouco aqui como docente... ou se eu estou indo para casa. Entendeu? Porque... a escola... então eu vejo isso em outras áreas nas quais eu transito até hoje, em outros cursos da saúde em que eu tenho um trânsito...[...] talvez o médico se envolva pouco aqui na escola porque ele tem muitas oportunidades fora e talvez outras profissões não tenham essas oportunidades fora... mas também não se envolvem porque não é o perfil. Então cai um pouco, talvez, no individual. Quer dizer, não é porque é o médico que se envolve pouco... eu acho que é mais a pessoa que ou ela realmente se envolve ou ela... porque eu acredito, eu percebo... e eu vejo que tem muitos profissionais de outras áreas que às vezes é a opção que sobrou, é ser professor. Porque eu não consegui me colocar como fonoaudiólogo, porque o mercado está restrito, porque eu não consegui me colocar como fisioterapeuta porque o mercado... e não é bem o elã pela escola, pela docência, pelo ensino, pela pesquisa. Então me parece que fica no campo mais individual assim. O médico sempre foi muito cobrado disso né? Porque se envolve pouco e porque vai muito para fora... pelo menos aqui nesse modelo de Santa Maria que funciona desta maneira. […] Porque o médico hoje, realmente, ele não precisa da escola... nós estamos discutindo a dificuldade de conseguir gente para trabalhar... porque ele tem um campo vastíssimo fora, outras profissões não. Talvez porque goste. Realmente quem vem aqui... eu observo em pessoas novas que chegam, em algumas pessoas novas, o gosto por aquilo. Eu fora ganho muito mais mas eu estou aqui porque eu gosto. (Professor 7)

Os sujeitos de pesquisa, de maneira quase uniforme, enxergam os docentes médicos como pessoas que optaram por ser professores na universidade, ainda que fora deste contexto tivessem a oportunidade de obter um ganho financeiro maior. Daí se depreende que os médicos que se tornam docentes gostam da atividade docente a tal ponto que optam por diminuir seus ganhos reais ou potenciais para exercer a atividade. Alguns chegaram a colocar que a universidade, na concepção de diversas pessoas, funcionaria como uma vitrine para o consultório, isto é, o fato de ser docente universitário levaria o indivíduo a ser mais bem visto pelos pacientes – neste contexto talvez melhor descritos como clientes – do que aqueles que não atuavam na instituição. Mas esta não é uma opinião homogênea: alguns sujeitos inclusive dizem que talvez em algum momento isto tenha sido verdade, mas que atualmente não existe esta diferença simplesmente porque há médicos demais na cidade, em todas as especialidades, o que dilui a importância do título de “professor

de medicina”. Então a opção por ter uma atuação na universidade se daria por desejo do próprio docente médico, o que se apresentaria de forma bem diferente para as outras profissões da área da saúde em que o salário de um professor universitário é algo economicamente muito atraente quando comparado com as possibilidades de ganho de um enfermeiro, fonoaudiólogo ou farmacêutico – para ficar em alguns dos citados – fora da universidade. Então, para esses profissionais, “sobra” o ser professor.

Uma última questão ainda foi levantada: embora os sujeitos de pesquisa não afirmem categoricamente que médicos devam ser formados por médicos, há uma tendência a considerar que um profissional de qualquer área, sempre que possível, deva ter sua formação tutorada por profissionais da mesma área. Ou seja, dentro desta lógica, alunos de medicina deveriam ter preferencialmente professores médicos, alunos de enfermagem deveriam ter preferencialmente professores enfermeiros, farmacêuticos na farmácia e assim por diante. A lógica desta situação é aquela que entende que há particularidades na forma como se exerce a atividade das diferentes áreas e que um profissional com experiência em uma determinada área estaria mais apto – a princípio – a trazer exemplos práticos e situar os alunos com relação à futura atuação destes como profissionais. Críticos à esta ideia colocam que o convívio estrito dentro de uma determinada categoria profissional poderia levar a um distanciamento da realidade, formada pelo entrecruzamento de diversas profissões, assim como estimularia o surgimento de um corporativismo exacerbado, com prováveis consequências negativas. Provavelmente a melhor opção situa-se num ponto médio entre os dois extremos, como geralmente acontece.

5.4.5 Daqui em diante: (ou o que se poderia fazer de diferente?)