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DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA, UM TEMA REVISITADO

Documentar não é uma prática nova no cenário educacional, sendo possível afirmar que remonta ao início do Século XX, quando o educador Celestin Freinet (1896-1966) por meio da imprensa escolar e do texto livre, propunha uma pedagogia que registrava, valorizava e divulgava as produções individuais e coletivas dos alunos.

De acordo com Marques (2010), a proposta pedagógica do referido educador estava baseada em quatro eixos: a cooperação (para construir o conhecimento comunitariamente), a comunicação (para formalizá-lo, transmiti-lo e divulgá-lo), a afetividade (como vínculo entre as pessoas e delas com o conhecimento) e a

documentação (para registro diário dos fatos históricos). E como forma de efetivação desses eixos, Freinet utilizou instrumentos como jornal do grupo, ficheiros escolares e da biblioteca de trabalho, o livro da vida, jornais de parede, planos de trabalho e agenda diária, que demonstravam a intenção de documentar as formas de expressão dos alunos e de produzir memórias.

No contexto contemporâneo, especificamente a partir da década de 1990, muitos pesquisadores têm contribuído para o desenvolvimento do conceito de documentação pedagógica e de atribuição de novos sentidos a essa expressão. Sendo assim, identificar, na história da educação, a existência de elementos que já evidenciavam um fazer pedagógico pautado na documentação e nos registros revela um movimento de construção e reconstrução dos conceitos e fazeres, o que incorpora novas teorias e reflexões a uma prática já existente.

Essa construção de conhecimentos produzidos por meio de uma relação dialética estabelecida entre educadores, pesquisadores e autores, ao longo do tempo, nos remete a Bakhtin (1985), citado por Souza (1994), quando afirma que "tudo o que é dito está situado fora da alma do falante e não pertence somente a ele. Nenhum falante é o primeiro a falar sobre o tópico de seu discurso." (SOUZA, 1994, p. 100).

Dentro desse contexto, em 1996, o Brasil estabeleceu legalmente, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a utilização de registros na Educação Infantil. Em 2009, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil explicitam que os registros e a documentação devem fazer parte das propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil como forma de acompanhamento das crianças e do trabalho desenvolvido.

Art. 10. As instituições de Educação Infantil devem criar procedimentos para acompanhamento do trabalho pedagógico e para avaliação do desenvolvimento das crianças, sem objetivo de seleção, promoção ou classificação, garantindo:

I - a observação crítica e criativa das atividades, das brincadeiras e interações das crianças no cotidiano;

II – utilização de múltiplos registros realizados por adultos e crianças (relatórios, fotografias, desenhos, álbuns etc.);

III - a continuidade dos processos de aprendizagens por meio da criação de estratégias adequadas aos diferentes momentos de transição vividos pela criança (transição casa/instituição de Educação Infantil, transições no interior da instituição, transição creche/pré-escola e transição pré- escola/Ensino Fundamental);

IV – documentação específica que permita às famílias conhecer o trabalho da instituição junto às crianças e os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança na Educação Infantil; [...]. (BRASIL, 2010, p. 28)

Muito embora a realização de registros pelos professores já fosse uma prática corrente anterior à legislação citada, as orientações estabelecidas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) disseminaram e ampliaram ainda mais tais práticas, o que, por si só, não garante sua realização de forma crítico-reflexiva.

Barbosa; Fernandes (2012) afirmam que é comum a utilização pelos professores da Educação Infantil de diversos instrumentos de registro, como as fichas de desempenho das crianças, com um rol de competências a serem desenvolvidas, relatórios de avaliação, pareceres descritivos, organização de portfólios, inventários, dossiês, além de informações registradas na agenda referentes à alimentação, saúde, comportamento, observações e avisos. Entretanto, as autoras observam que nenhuma dessas formas de registro, em si, constitui uma prática de documentação pedagógica tal como é definido na proposta da Educação da cidade de Reggio Emilia, na Itália, e que foi tomada como referência na pesquisa. A disseminação do termo documentação pedagógica, no Brasil, ocorre a partir da década de 1990, quando do reconhecimento internacional da qualidade do trabalho desenvolvido nas pré-escolas de Reggio Emilia e do acesso à literatura traduzida relacionada a essa abordagem pedagógica.

Mas, antes de dar um mergulho, ainda que em águas não muito profundas, sobre documentação pedagógica nessa perspectiva, considero relevante compreender o significado do termo registro, o qual, assim como documentação, também se encontra presente nos documentos legais e circula nas práticas das instituições de Educação Infantil.

Para essa compreensão, recorro a Marques (2010), segundo a qual essas concepções, apesar de possuírem diferenças, não são contraditórias, mas até complementares. Para a referida autora, o registro possibilita ao educador realizar ações importantes para o seu fazer pedagógico: sistematizar suas intenções, referindo-se ao registro do planejamento, o não vivido ainda; organizar as observações realizadas durante o processo; e produzir memória sobre uma prática desenvolvida com as crianças. Ou seja, é possível registrar antes, durante e depois do processo pedagógico, contribuindo para a reflexão e avaliação da prática docente.

Nessa direção, Marques (2010) acrescenta que a concepção inicial de registro é ampliada pelo conceito de documentação pedagógica, entendendo que

essa última expressão envolve para além dos registros, um planejamento definido do que se pretende documentar. Alerta, ainda, que, além de se definir previamente "o quê" e "como" documentar, é preciso ter clareza também do "para quem" se documenta, pois a forma e os objetivos podem ser bastante distintos a depender do interlocutor da documentação, que pode ser a criança, a família ou o próprio professor ou professora.

Compreender a documentação como uma forma de comunicação implica a necessidade de produzir, selecionar e organizar criteriosamente os registros (escritos, fotográficos, vídeos, áudios, relatos, produções das crianças, etc.) que se constituem numa narrativa da experiência desenvolvida, transmitida de maneira inteligível.

De acordo com Oliveira-Formosinho (2008), a abordagem da documentação pedagógica consubstancia-se em duas premissas indissociáveis, a concepção de criança e o conceito de escuta, que fazem toda a diferença na pedagogia da Reggio Emília.

A primeira premissa diz respeito à crença da criança como protagonista, competente, criativa, sujeito de direitos, produtora de cultura, rica em conhecimentos e com múltiplas linguagens, pois aprende utilizando os cinco sentidos e todos os seus falares. A partir dessa premissa – que afiança a capacidade de as crianças participarem de seus processos de aprendizagem de várias e diferentes formas –, surge a segunda premissa, a da escuta. Compreender a importância de descobrir modos que apoiem e garantam às crianças apresentarem e demonstrarem seus pontos de vista e se educar para escutá-las, registrando, discutindo e compartilhando suas vozes, expressas em diferentes linguagens, constituem dialéticos pontos de partida e de chegada para o movimento pedagógico de considerar responsavelmente o escutado.

Como afirma Rinaldi (2012), documentar significa produzir documentos sobre o que se observa, tornando visíveis as experiências realizadas. Requer escutar, observar, selecionar, interpretar e projetar. Sendo assim, não é um ato neutro, pois envolve subjetividades e escolhas, refletindo os sentimentos, os valores e as crenças do observador. Mas, ao mesmo tempo, a ação de documentar pedagogicamente exige do observador uma postura sem prévios julgamentos e análises, sem projetar no outro o que desejamos que ele seja, mas considerando-o como alguém que, ao ser observado, observa também e nos interpela. Dito de outra

forma, documentar é considerar a alteridade das crianças. Larrosa, diz isso de forma precisa:

[...] a alteridade da infância é nada mais, nada menos que sua absoluta heterogeneidade em relação a nós e ao nosso mundo, sua absoluta diferença. [...] a portadora de uma verdade à qual devemos nos colocar à disposição de escutar. (LARROSA, 2006, p. 185-186)

Concordar com Larrosa (2006) é se colocar à disposição para escutar as verdades da infância. Nessa direção, a documentação pedagógica não pode ser interpretada como uma técnica, mas como uma postura que precisa ser assumida pelo professor enquanto investigador do pensamento da criança, seus processos de construção de conhecimento e de suas interpretações e formulações de hipóteses.

Nesse entendimento, a documentação pedagógica possibilita analisar e problematizar, de forma pública e coletiva, o que foi observado e registrado, dando visibilidade ao que acontece na escola. Além disso, não existe dissociação entre o documentado e o processo de planejamento, de definição de currículo, de escolha das atividades, da participação das crianças e suas famílias, pois tudo faz parte do processo de documentação.

A adoção dessa prática de planejar "com" e "a partir de" se contrapõe ao planejamento a priori, logo no início do ano letivo, antes mesmo de conhecerem as crianças. Os educadores estabelecem o quê e o como ensinar, além de determinarem o tempo para que as aprendizagens ocorram. Ao contrário disso, na prática da documentação pedagógica, os educadores atuam no sentindo de que esses processos ocorram de forma concomitante e relacionada e de que, principalmente, incluam as crianças como protagonistas, tal como Rinaldi (1999) esclarece:

Em nosso trabalho, falamos sobre planejamento, entendido no sentido de preparação e organização do espaço, dos materiais, dos pensamentos, das situações e das ocasiões para a aprendizagem. Isso permite o intercâmbio e a comunicação entre os três protagonistas e parceiros interativos da escola: crianças, educadores e famílias. A instituição educacional é, na verdade, um sistema de comunicação e interação entre os três protagonistas, integrados no sistema social mais amplo. (RINALDI, 1999, p. 115)

Rinaldi (1999, p. 116) acrescenta, ainda, que o conhecimento emerge no processo de construção social e de si mesmo, sendo os relacionamentos, as

comunicações e as interações elementos estruturadores do currículo emergente, defendido na abordagem educacional de Reggio Emilia.

Sobre currículo emergente, Edwards et al. (1999) esclarecem que o planejamento é entendido como método de trabalho com o qual os educadores definem objetivos educacionais gerais, mas não formulam os objetivos específicos de antemão, e sim hipóteses do que poderia ocorrer, tendo como base os conhecimentos e experiências anteriores. Definem também objetivos flexíveis e adaptados às necessidades e interesses das crianças.

Portanto, o trabalho, na perspectiva de currículo emergente, não é espontaneísta, mas exige uma postura investigativa e atenta dos educadores para a construção de um currículo com identidade própria, considerando os sujeitos envolvidos. Ele indica a "centralidade do processo de documentação, registro e reflexão em uma relação dialética com o planejamento." (MARQUES, 2010, p. 86).

Assim como a documentação pedagógica estabelece uma relação dialógica com o planejamento, o mesmo ocorre em relação à avaliação. Pois somente sustentada na documentação pedagógica, que descreve um percurso de aprendizagem, é que a avaliação se efetiva como processual (HOYUELOS, 2006; RINALDI,1999).

Quanto às funções da documentação pedagógica Edwards et al. (1999) destacam três aspectos primordiais: 1. Comunicar informações a outros sujeitos – família e comunidade; 2. Proporcionar às crianças uma memória das experiências vivenciadas, possibilitando a tomada de consciência das conquistas alcançadas, servindo de estímulo e de curiosidade; 3. Proporcionar ao educador uma perspectiva sobre o processo de aprendizagem das crianças e sobre a sua prática, refletindo suas concepções de criança e de educação, podendo se constituir em um significativo instrumento de formação docente.

Portanto, a partir dessas funções , é possível concordar com Barbosa (2012), ao afirmar que documentar é uma prática pedagógica realizada de forma refletida, intencional e compartilhada, possibilitando a realização de um processo de formação e de transformação envolvendo professores, crianças e familiares, sujeitos implicados no ato educativo.