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Este subitem é composto por um documentário elaborado como parte integrante da dissertação, com 25 minutos de duração, e está disponível para

acesso na plataforma online pelo seguinte endereço:

https://www.youtube.com/watch?v=qD4SF4p5sFM&feature=youtu.be.

5 A Norma Regulamentadora 31 estabelece os preceitos e responsabilidades sobre as questões de saúde e segurança do trabalhador na agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura nos ambientes de trabalho.

5 POMARES: ESPAÇOS DE PODER, HIERARQUIAS E ASSIMETRIAS “Sob a superfície, atrás de portas fechadas, e escondidas dentro da intimidade da vida cotidiana dos trabalhadores se descortina outra imagem” (PATRICK HARRIES, citado por MENEZES, 2002, p. 157).

Os pomares de maçã criam um microcosmo social cujos locais de trabalho, lazer e morada se mesclam numa espécie de “mundo de dentro”. Por mais passageiros que sejam, são quadros de vida que têm peso e influenciam na produção e formação do indivíduo, levando e trazendo consigo elementos de natureza culturalmente diversos (SANTOS, 1997). Refiro-me aqui às relações estabelecidas nos espaços englobados pelo “viver no pomar”, incluindo local de trabalho, alojamentos e refeitórios nos quais se estabelecem as diversas relações sociais dentre elas, as relações de poder. Neste capítulo pretendo, dentro do possível, enquanto analista, “olhar no miúdo”, sem o intuito de apontar o certo ou o errado, mas problematizar como se pode interpretar o funcionamento das relações vividas nestes ambientes do “mundo de dentro” para refletir criticamente sobre dadas situações, pois ao analisar as falas e comportamentos dos sujeitos, se está - redundantemente - interpretando interpretações.

O material de análise para tais reflexões diz respeito às entrevistas, fotografias, anotações das percepções no caderno de campo e participação no trabalho da colheita da maçã. A partir disso busco “estar afetado” pelas relações de poder e formas de resistência exercidas no cotidiano. Esses aspectos, sob a perspectiva foucaultiana do poder, permitirão perceber que, embora sejam teóricos e abstratos, se expressam na realidade concreta de modo que o que transparece não é simplesmente uma hierarquia constituída por determinados poderes, mas esses são colocados por dispositivos disciplinares que se inserem e se internalizam em práticas cotidianas como, por exemplo, as penalidades e as formas competitivas de disputas alimentadas.

Neste sentido, ao constatar que a oferta da mão de obra da região de Vacaria não é capaz de prover a demanda necessária da cadeia produtiva da maçã durante a colheita, alguns autores têm pontuado que a contratação dos trabalhadores migrantes, ou seja, os “de fora”, tem sido também uma forma de resposta de contraposição à organização dos trabalhadores (BAUD, 1992;

BREMAN, 1985 apud MENEZES, 2002). Por não possuírem vínculos com o local de destino, criam-se obstáculos no sentido de dificultar mínimas manifestações de resistências. No entanto, como pontua Foucault, onde há poder há possibilidades de formas de contornar e de resistir, não como um único epicentro ou núcleo isolado de:

[...] um lugar da grande Recusa – alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (FOUCAULT, 1988, p. 91).

O poder se exerce somente sobre sujeitos livres, onde existem espaços de liberdade que permitem aos mesmos um campo de possibilidades de condutas, comportamentos e reações. Ao pensar-se num jogo mais complexo no qual poder e liberdade não se excluem, mas estabelecem um jogo de disputas em que cordas são puxadas tanto de um lado como de outro e a liberdade é condição para a existência de poder. O poder atua, então, sobre aqueles que possuem um campo de possibilidades, caso contrário, se estabelece uma tirania.

Para tratar a questão do poder Foucault sugere que as investigações sobre o tema andem menos no sentido de uma “teoria do poder” e mais na direção de uma “análise do poder”, visto que a explicação teórica do que seria poder levaria a um entendimento fixo e generalizado (FOUCAULT, 1988). Ele não se propõe a definir “O poder”, mas tratar a questão enquanto relações de poder como “[...] formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 2015, p. 10). O que Foucault propõe é conceber um entendimento do poder alternativo àquele que vem apenas de cima para baixo, enquanto leis de um sistema de poder soberano determinado e executado exclusivamente pelo estado, tratando-se da existência de uma rede de micropoderes articulados ao estado e que atravessam toda a estrutura social (DANNER, 2010). Se o estado é um aparato organizacional que exerce poder, ele não é a única forma de manifestação.

O poder disciplinar através das práticas disciplinares “[...] faz indivíduos; é a técnica específica de um poder que considera os indivíduos como objetos e

instrumentos do seu exercício [...]”, atuando com o foco sobre os seus corpos (FOUCAULT, 2004, p. 170). A capacidade de controle acirrado, exaustivo e contínuo sobre os corpos dos trabalhadores é justamente o que distingue o poder disciplinar das demais modalidades de poder, dispondo-se de uma correlação entre o potencial de sua utilidade na formatação da docilidade do indivíduo, tornando-o “[...] mais obediente ao torná-lo mais útil, e vice-versa” (FOUCAULT, 1999). Em termos econômicos se aperfeiçoa o aproveitamento do uso da força física e em termos de representação política os torna obedientes (DANNER, 2010). A disciplina, enquanto técnica basilar do poder, caracteriza-se principalmente pelo controle do tempo, organização do espaço e vigilância (MACHADO, 2015).

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído. Isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. (FOUCAULT, 1999, p. 221).

A aplicação do poder disciplinar no controle do corpo ao modelar a construção do indivíduo cria também formas celulares de individualidade e imprime suas ordenações em determinados espaços que Foucault chama de “a arte das distribuições”. Tensionam-se e produzem-se tais individualidades separando - fisicamente - os espaços, por delimitações seja de paredes, cercas ou muros, encerrando ou diminuindo as atividades coletivas que promovam “vagabundagem”. As distribuições criam, por sua vez, funções específicas de ordem prática representadas pelas hierarquias estabelecidas, cada qual com seu poder de vigilância. No caso dos trabalhadores, são nomeados para determinado cargo ou função como: colhedor de escada, classificador de frutas, cancheiro, tratorista, monitor. Por fim, a arte das distribuições atribui uma unidade de ordenamento por classe, como o caso de alunos de uma sala de aula dispostos de acordo com suas idades, aproveitamento e comportamento, ou seja, se expõe estes indivíduos de modo que os mesmos se percebam hierarquizados (FOUCAULT, 1999; HOFFMAN, 2018).