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CAPÍTULO 3 – MEDICINA & LITERATURA: O COMBATE À EVASÃO

3.1 Doença e medicina como personagens literárias

Em 1935, o autor conquistou o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, com seu romance Caminhos Cruzados6. Com possíveis influências da narrativa de Aldous Huxley (do qual Verissimo traduzira dois anos antes Contraponto – Point Counterpoint, de 1928), Caminhos Cruzados apresenta um grande painel da população urbana porto-alegrense/brasileira na década de 1930, registrando seus tipos, hábitos, convenções sociais e desajustes entre diversos grupos, através de histórias individuais que se entrecruzam.

Para Luís Bueno, o livro pode ser considerado

definitivo de seu tempo porque dialoga diretamente com a discussão mais forte que se fazia então e, em certo sentido, a supera porque cria uma fórmula nova capaz de constituir uma espécie de cristalização mais perfeita de princípios que haviam sido propostos pela literatura proletária. Mais do que qualquer romance de Jorge Amado, Caminhos Cruzados foi totalmente construído “sem heróis nem enredo”. É claro que, não tendo qualquer intenção de pertencer ao romance proletário, ele é desprovido também daquele elemento tão importante para o autor de Cacau, que é o espírito de revolta.7

O romance proletário era aquele no qual havia um engajamento direto em seu enredo, não apenas retratando dramas coletivos; “é preciso dar um passo além e sugerir, pela ação da massa, a rebeldia imprescindível para construir a revolução.”8

Mesmo que seu livro não possua heróis, que seus personagens sejam gente comum, desempenhando suas tarefas cotidianas nada especiais ou tentando sobreviver, à mercê do mandonismo – que se sustenta ao lado da caridade hipócrita –, o engajamento de Verissimo não era com a revolução. Fosse em seus enredos, suas memórias ou entrevistas, a imagem da revolução geralmente vinha acompanhada da ideia de violência. A ação de seus personagens mais ativos socialmente, comprometidos e preocupados com o futuro se dá através da medicina, da educação, do trabalho solidário – de reformas.

O enredo de Caminhos cruzados abarca um curto intervalo de tempo, de um sábado a uma quarta-feira. Os personagens espalham-se entre as famílias de industriais e novos-ricos, os intelectuais – medíocres ou grandes espíritos sem

6

VERISSIMO, Erico. Caminhos cruzados. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p.51.

7

7

BUENO, op. cit., p. 381.

8

maiores chances de desenvolver suas potencialidades –, aqueles que se dão a conhecer por suas atividades profissionais que parecem não ter fim, cansativas e repetitivas, e os que saem da esfera de uma pobreza que ainda carrega certa dignidade para cair num mundo miserável e doente. Um dos personagens pertencente a esse último mundo é Maximiliano, que tem tuberculose. É introduzido na narrativa por conta das ações hipócritas de uma senhora rica, dada a obras de caridade:– Por que será que a dona Dodó entrou na casa do Maximiliano?

– Oras... fingimentos. O Maximiliano está tísico, a mulher em situação pior que a nossa, os filhos andam atirados... Dona Dodó quer se exibir pros jornais darem o retrato dela amanhã. Entra aí, dá dez mil-réis, fala em Deus e vai embora. De que serve? Eu conheço bem essas caridades!9

Assim, juntamente com dona Dodó os leitores conhecem a casa, a família e as condições do doente; como é recorrente nos textos de Verissimo, os ambientes começam a ser apresentados pelos odores que exalam e pela presença ou não de luz. Na casa de Maximiliano, as tábuas podres do chão rangiam e do corredor “exalava um bafio de porão”10 – quase como se a casa

estivesse também doente. O quarto cheira mal, é sombrio e abafado. Mesmo a luz que entra não é límpida: a única janela que o quarto possui projeta uma faixa de sol, em que “pairam rútilas partículas de poeira”, que dão a impressão de serem “os próprios micróbios da tuberculose que bóiam no ar.”11

A esposa do doente possui uma expressão permanente, uma “cara pétrea que não chora nem sorri”.12

Dona Dodó, a dama de caridade, principia sua visita, pergunta sobre as crianças, deixa dinheiro sobre a mesa, imagina-se fotografada e estampada nos jornais e elogiada pelo Arcebispo. Adentra o quarto de Maximiliano:

O doente está deitado numa cama de ferro, a um canto do quarto. Seu rosto descarnado quase desaparece, de tão pálido contra a fronha branca. Só a barba crescida, os olhos negros e o cabelo basto dão individualidade àquela cabeça. (...)

– Tenha fé em Deus ...

O homem continua a sorrir. Teve fé em Deus, orou, foi à igreja, fez promessas, acendeu velas. Tudo inútil.

– O senhor está sendo purificado pelo sofrimento... 9

VERISSIMO, Caminhos..., op. cit., p. 51.

10 Ibidem, p. 52. 11 Ibidem, p. 54. 12 Ibidem, p. 53.

Purificado? Esta palavra cessou de ter significação para ele. O que lhe importa agora é viver, recobrar as forças, ocupar o lugar antigo que ele tinha na vida, trabalhar e tomar conta da casa.

Dona Dodó considera sua missão terminada.13

Ela promete a remoção do doente ao Hospital de Caridade, o mais breve possível. E parte, satisfeita consigo mesma, sentindo orgulho por ter estado no quarto de um tuberculoso. “Agora, aqui dentro do automóvel ela está de volta ao seu mundo. O perfume Nuit de Noël prevalece sobre a lembrança nauseante da atmosfera empestada”.14 Nos dias que seguem, Maximiliano piora, e espera. “Os

dias são longos. (...) Os raros visitantes ficam à porta. Ele compreende... medo do contágio. Ele sabe, não tem raiva, não se queixa”.15

Sua distração é olhar o sol pela janela. Lembra-se de quando trabalhava, de como vivia relativamente bem com a mulher e os filhos, até que uma dor no peito deu o sinal; já houvera casos de tuberculose na sua família, mas Maximiliano não quis acreditar que aconteceria com ele. Quando procurou o médico, era tarde demais, perdera o emprego, ficava cada vez mais fraco e não se levantou mais. Olhava o sol e lembrava: um dia, ele remou num clube de regatas, chegou mesmo a ganhar um campeonato. Os dias passam, e dona Dodó, atarefada com os preparativos para sua própria festa surpresa de aniversário, esquece-se do doente e da prometida remoção ao hospital; um médico visita Maximiliano, apenas para dizer que o final se aproxima. O tuberculoso definha e morre.

Os leitores acompanham a trajetória de Maximiliano através de sua doença. O tempo é lento, uma vez que ele não pode sair da cama; o ambiente é abafado, já que sua mulher não abre as janelas por acreditar que é por elas que a morte entra. As características do personagem são as deformações que a doença promove – acessos de tosse, respiração estertosa, olhos saltados, brilhantes. E à medida que piora, tem-se a impressão de que a casa entra em franca decadência, por conta dos ratos que aumentam em volume e atividades: “Na sombra os ratos correm e conspiram”.16

A doença orienta o pequeno núcleo de personagens que, de uma forma ou outra, se liga aos outros do romance.

13 Ibidem, p. 54-5. 14 Ibidem, p. 56. 15 Ibidem, p.111. 16 Idem, p. 186.

A respeito dessa ficção de Erico Verissimo, é possível pensar no que François Laplantine denominou o acesso à doença através do texto literário, em seu livro Antropologia da doença. Ou seja, assim como o leitor conhece determinado núcleo de personagens a partir da doença, a própria doença passa a ser conhecida, em seus detalhes, através do texto literário. De acordo com Laplantine, a literatura é “suscetível de nos ensinar, ao mesmo tempo, uma coisa diferente do que nos ensina o clínico e do que normalmente aprendemos a partir de relações etnográficas ou de enquetes sociológicas.”17

Laplantine percebe o registro literário da doença de três formas: o da doença na terceira pessoa, ou seja, o romance médico, de caráter essencialmente humanitário, apresentando o estereótipo do médico abnegado, salvador de vidas. O da doença na segunda

pessoa, em que o doente ocupa o centro da narrativa, mesmo que permaneça

um ser distinto do narrador. E o da doença na primeira pessoa, em que o protagonista ou o escritor (no caso de memórias) estão doentes.18

Erico Verissimo lançou mão de todas essas perspectivas, com as descrições de suas próprias enfermidades, na infância e na idade adulta, principalmente os infartos e períodos de recuperação, em Solo de Clarineta (suas memórias). Personagens doentes e médicos participam de suas obras de ficção, mesmo as posteriores à década de 1930. Em O tempo e o vento, também utilizou tais recursos, notadamente em O Continente (1949)19. Na segunda parte do livro, iniciada por A teiniaguá, um dos personagens funciona como co-narrador, analisando a cidade de Santa Fé, seus habitantes, hábitos, a relação desses com o restante da província, com o Brasil e a Europa. Trata-se do Dr. Winter, médico alemão estabelecido no povoado e do qual não consegue mais se retirar, segundo ele mesmo, pela acomodação a que se submeteu. Parece sempre estar nos limites entre dois mundos: o do médico e o dos costumes atrasados; o do europeu e o dos brasileiros. Classifica a população que o rodeia por robustez ou fraqueza, doenças, hereditariedade.

Voltando a Caminhos Cruzados, mais do que tratar a doença na segunda pessoa (descrevendo o personagem doente), percebe-se que própria doença é

17

LAPLANTINE, François. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 27.

18

Ibidem, p. 25

19

VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte I: O Continente 2. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

transformada nessa segunda pessoa. Pelo corpo do doente, ela se dá a conhecer; em muitas situações, é como se o doente fosse apenas um portador, sendo que o verdadeiro personagem, ativo, é a doença. O doente molda-se a ela, é determinado por ela, suas características são as que a doença nele imprime. Os odores e as construções que apodrecem parecem acompanhar a evolução mórbida, como se essa pudesse se depositar sobre o meio que circunda o personagem doente (e não o contrário). Seja de que ponto de vista for, todas essas narrativas são, ainda de acordo com Laplantine, “reveladoras de representações que uma determinada sociedade faz da doença”20

e, certamente, dos referenciais mais caros a cada autor. A leitura de Caminhos Cruzados permite pensar sobre outras representações, para além das imagens do médico e do doente. Uma delas é a da doença como signo da miséria e da injustiça social. Os personagens passam de determinado status social (seja ele qual for) à miséria através da doença. É como se ela marcasse dois territórios diferentes – um no qual ainda há oportunidades e possibilidade de escolha, opções de vida, e outro em que essas possibilidades cessam de existir, em que há apenas a doença. Já a saúde é ligada à opulência, mas também a um caráter forte, que têm os que não se entregam, mesmo que mergulhados na pobreza.

O médico que aparece em Caminhos cruzados não é aquele que cura, diferentemente dos médicos que apareceram em livros posteriores. A descrição das últimas horas de Maximiliano e das pessoas que chegam para vê-lo, identificadas pela profissão, é emblemática:

Maximiliano está com uma vela na mão. Alguns vizinhos foram chamados. Dona Veva veio, de avental, enxugando as mãos. O capitão Mota apareceu de chinelos. O sapateiro italiano. O empregado do açougue. Todos agora esperam em silêncio. (O médico olhou, disse que era o fim e foi embora).21

O médico adentra a cena “entre parênteses”, o que revela alguém sem muita importância, um detalhe pequeno numa narrativa maior, ou ainda, o caráter apenas decorativo do profissional que passou para cumprir um ritual burocrático, não sua verdadeira função. Os parênteses também parecem revelar a crítica do autor a determinado tipo de profissional da medicina. Outro médico anônimo aparece em O resto é silêncio. Sete Meis, o menino que vende jornais, adoece.

20

Idem, Caminhos..., op. cit., p.27.

21

Enquanto cuida do menino, a mãe pensa no outro filho, tuberculoso, e nos conselhos que recebera:

Era só o que faltava, se o Sete agora ficasse doente como o outro. Ela penava no dia em que tinha sido chamada no colégio. Seu filho tem que ser retirado, está atacado do pulmão. Depois, aquele doutor de óculos: a senhora dá bastante leite para o menino? Legumes, carne, verduras? Era até engraçado. Com o que o Graciano ganhava, não podia comprar nada daquelas coisas. Tome cuidado para não pegar no outro. Bote em quarto separado. Mas de que jeito? O Tripinha tinha começado a tossir desde a última enchente. Água pela cintura, chuva por cima. Falta de comida e de coberta. Tudo molhado. 22

A medicina, assim como a doença, transforma-se num personagem: representa a portadora da justiça social, que poderia intervir nas cenas que parecem ficar sem solução concreta, que aparecem apontar um amanhã funesto. Se em mãos erradas, é uma atividade que não faz menor diferença no mundo, consequentemente, é injusta, não cumpre o seu verdadeiro papel. Se tiver um estatuto justo, bem definido, quase não haveria como um médico fazer mau uso dela. A doença faz com que se perca a dignidade; e a medicina, não a saúde, aparece como seu contraponto.

Em Clarissa (1933), o leitor conhece o cenário e os personagens da narrativa – uma pensão em Porto Alegre e seus habitantes – através das impressões de uma menina de catorze anos, sobrinha da dona da pensão. Ela veio do interior, onde seu pai é fazendeiro, representante de uma linhagem de homens ligados a terra – justamente a família à qual Verissimo se referiu nas suas anotações à margem de Fantoches e que também aparece em Música ao

longe (1935), Um lugar ao sol (1936) e Saga (1940). Clarissa reflete sobre os

habitantes da pensão, sobre o que vê pela rua, o que lê, com quem se relaciona. Na casa vizinha à pensão, moram uma viúva e seu filho. Em sua cadeira de rodas, o menino finge que é soldado e sonha viajar no avião cujo voo admira diariamente. Ele adoece e morre. Como em Caminhos cruzados, a casa onde o menino viveu e morreu também revela a sua doença e a própria insalubridade das regiões urbanas do país: “E na casa triste, aquele cheiro de hospital, ratos furtivos correndo rente às paredes, sumindo-se em buracos invisíveis.”23

Morador da pensão da tia de Clarissa, o reprimido Amaro é um pianista talentoso, mas

22

VERÍSSIMO, O resto..., p. 135. (grifos do autor)

23

que não pode viver de sua música. Seus dias melancólicos se arrastam entre o trabalho num banco e um mundo imaginário no qual mergulha quando compõe. Pouco antes da morte do menino da casa vizinha, Amaro pensa sobre sua própria inércia. Sua arte não tem lugar no mundo e ele não conhece outra forma de nele intervir:

Na casa vizinha um menino se debate em agonia. E ele aqui, fechado no quarto, braços caídos, inerte. Nem a sua arte nem os seus músicos nem os seus poetas podem salvar a vida de Tonico. Se ao menos ele fosse médico... Iria para a cabeceira do doente, lutaria contra a morte... No entanto, debruçado à janela, como mero espectador, olha apenas para a casa onde a tragédia silenciosa acontece. Tonico vai morrer: Amaro não pode fazer nada por ele. Nem uma palavra de consolo nem um gesto de afago.24

Nessa história, o médico também não faltou. Ele aparece apenas na cena do velório e do enterro do menino, mas não anonimamente. É apresentado pelos comentários de vizinhas que reparam a riqueza dos ornamentos fúnebres; uma delas explica que foram pagos pelo Dr. Maia, que “chegou há pouco do Rio, onde estava estudando. Foi ele que atendeu o menino. Fez o que pôde. Mas ninguém vence o destino. O Tonico morreu e o doutor ficou com pena desta miséria... É rico, resolveu pagar todas as despesas”.25

Em seguida, surge o médico, de forma teatral:

– O doutor chegou...

Todas as cabeças se voltam para a porta. Um homem alto entra. Está vestido de escuro. Tem uma voz metálica.

– Senhores, vamos abrir as janelas – diz – vamos abrir as janelas, este ambiente está irrespirável!

Como ninguém se mexe, ele mesmo vai às janelas e abre-as de par em par. O sol da manhã invade o compartimento num jorro fresco e dourado.26

A luz e o ar entram no ambiente graças ao médico; para além do efeito estético da cena (e da claustrofobia do autor), o fato também faz eco às campanhas sanitaristas do início do século 20 relativas à tuberculose. Em cartilhas, panfletos, dispensários, publicidade e outros era frisada a importância de se arejar os ambientes. Em alguns textos médicos, o ato deveria ser incorporado ao cotidiano escolar quase como uma das disciplinas do currículo e realizado de forma metódica. Não bastava que se abrissem as janelas, era

24 Ibidem, p. 137. 25 Ibidem, p. 139. 26 Ibidem, p. 141.

necessário “provocar correntes para a renovação do ar das classes, abrindo uma porta e janela opostas e resguardando os alunos num canto da sala”; enquanto isso, as crianças poderiam “executar alguns números de ginástica fisiológica, enquanto aguardam a renovação.”27

As expressões abrir as janelas e arejar acabaram se transformando em metáforas. No texto de Veríssimo, é o Dr. Maia quem areja o ambiente que, além do cadáver, está repleto de mulheres que rezam, homens que fumam, velas que ardem e tecidos roxos. O médico é um dos que carregam o caixão do menino e depois segue até o cemitério num Cadillac azul. “O enterro segue devagarinho. Clarissa ainda vê a cabeça do Dr. Maia, rútila no meio de outras cabeças escuras e foscas. O Cadillac rola mansamente sobre os paralelepípedos sem ruído. O Ford do seu Patrício vai numa marcha estertorosa, convulsiva, aos sacolejos, roncando penosamente.”28 O contraste entre a figura do médico e as demais pessoas no enterro não é apenas física, mas aponta o profissional que participa ativamente, tratando sem receber pagamento e depois confortando e ajudando financeiramente a família da criança morta; não se envolve nos rituais tradicionais sobre a morte, preocupa-se com a saúde atual das pessoas – e a futura. Talvez o jovem médico seja a origem do Dr. Seixas.

A narrativa de Verissimo certamente contém pistas sobre suas leituras, imagens que viu e seus próprios referenciais. Mas também é necessário ter em mente, de acordo com Antonio Candido, que o artista recorre ao “arsenal comum da civilização para os temas e formas da obra, e na medida em que ambos se moldam sempre ao público, atual ou prefigurado (...) é impossível deixar de incluir na sua explicação todos os elementos do processo comunicativo, que é integrador e bitransitivo por excelência.”29

Pierre Bourdieu entende que a individualidade do artista/escritor e as contingências sociais e a da criação artística se fundem, muitas vezes, uma a ocultar outras, pois são criadoras de uma realidade e determinadas por ela num mesmo momento. E a literatura expressa esse processo não apenas na escolha de temas e palavras, mas também na estrutura que o escritor constrói para um

27

Revista Medica do Paraná. Anno II, n. 5 - Abr./Maio 1933. p. 102. Apud RODRIGUES, op. cit., p. 97.

28

Ibidem, p. 143.

29

texto – os pontos de vista a serem privilegiados, os lugares de onde parte a narração, a construção dos ambientes, a inserção de diálogos etc. Cada um destes elementos carrega a individualidade criativa assim como determinada lógica social e seus sistemas simbólicos. Assim, a análise que visa “o princípio gerador [da obra], a razão de ser, fornece à experiência artística... sua melhor justificação.”30

Para Bourdieu, é preciso uma análise que encontre as estruturas profundas da obra, inacessíveis apenas à leitura corriqueira. “Através desse trabalho sobre a forma se projetam na obra essas estruturas que o escritor, como todo agente social, traz em si no estado prático, sem lhes possuir o domínio, e se realiza a anamnese de tudo que permanece ordinariamente enterrado, no estado implícito ou inconsciente, sob os automatismos da linguagem inoperante.”31

Nos textos de Erico Verissimo, é imenso e recorrente o arsenal de fenômenos físicos, putrefação do meio, informações nosológicas, detalhes anatômicos, assim como a descrição dos “gordos e corados”,”bem fornidos”, “musculosos e elásticos”. Da mesma forma, também se percebem elementos do ideário sanitarista e higienista, a buscar focos insalubres e apontar diagnósticos. Tudo isso diluído num contexto literário que, para além de seus engajamentos sociais e aspectos estilísticos, procurou explorar o corpo social doente – caminho que abrira o naturalismo do século 19. E num contexto político e social que, desde o início da República, buscava redefinir a nacionalidade e reorientar sua busca; educação e saneamento também foram pilares constitutivos do nacionalismo, alimentados pela certeza de que a ciência poderia dar conta das moléstias sociais/nacionais e preparar um futuro desejável. Mesmo que as leituras sobre a ciência e suas aplicações tenham sido diversas, sua presença, em diferentes pólos do debate pela reforma social, foi constante. De acordo com Pierre Bourdieu, é necessário “lembrar a dimensão social das estratégias científicas”.32