• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 BRANCA DIAS: UM QUIXOTE DE SAIAS

4.2 Dom Quixote: um leitor insano

151 Uma das figuras emblemáticas que foi atraída pela leitura e pelos livros foi o protagonista Dom Quixote22, da obra de Miguel de Cervantes. A narrativa trata das

aventuras e das desventuras daquele fidalgo que é um apaixonado pelos livros e revela, além disso, o entrecruzamento entre os diversos modos de pensar e agir e as transformações da vida e da sociedade de uma época. Marielle de Souza Vianna (2012), em sua tese intitulada Dom Quixote: o elogio da leitura e o sentido da religiosidade, defende que esse cavaleiro é “antes de tudo um grande leitor. Por isso, a compreensão do alcance dos propósitos quixotescos deve considerar, em primeiro lugar, o valor que o próprio Quixote atribui aos livros e o significado que leitura assume ao longo de toda a narrativa” (VIANNA, 2012, p. 15). Por isso, antes de ser um cavaleiro e de sair à luta pelos princípios da cavalaria andante, era, sobretudo, um inveterado leitor. No início da obra, em Cervantes (2002), o narrador faz a seguinte afirmação:

Enfim, tanto ele se engolfou em sua leitura, que lendo passava as noites de claro em claro e os dias de sombra a sombra; e assim, do pouco dormir e muito ler se lhe secaram os miolos, de modo que veio a perder o juízo23

(CERVANTES, 2002, p. 59).

Com base nesse trecho, nota-se não só a importância que a leitura tem na construção do protagonista cervantino, mas também as consequências que a assiduidade desse ato pode proporcionar ao fidalgo, ou seja, a loucura. É isso que se identifica em Cervantes (2002):

Encheu-se-lhe a fantasia de tudo aquilo que lia nos livros, tanto de encantamentos como de contendas, batalhas, desafios, ferimentos, galantarias, amores, borrascas e disparates impossíveis; e se lhe assentou de tal maneira na imaginação que era verdade toda aquela máquina daquelas soadas sonhadas invenções que lia, que para ele não havia no mundo história mais certa”24 (CERVANTES, 2002, p. 59).

22 Para este trabalho, usei a obra bilíngue O engenhoso fidaldo D. Quixote de La Mancha, traduzida por Sérgio Molina, publicada em 2002 pela Editora 34.

23 Texto original: “Em resolución, él se enfrascó tanto em su letura, que se pasaban las nochesleyendo de claro en claro, y los días de turbio em turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el cerebro de manera que vino a perder el juicio”.

24 Texto original: “Lhenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamentos como de pendencias, batallas, desafios, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentósele de tal modo en la imaginación que era verdad toa aquella máquina de aquellas sonadas soñadas invenciones que leía, que para él no havia outra historia más cierta en el mundo”.

152 Há muitas pesquisas defensoras de um Quixote que, embebido pela leitura, vive em um espaço cuja realidade é transferida para a virtualidade do texto literário. Não obstante, esse protagonista cervantino fornece vida às aventuras lidas, propõe uma espécie de recriação do texto literário ao transferi-lo para a realidade e viabilizar uma roupagem nova às aventuras, de forma que tanto a narrativa propriamente dita quanto a linguagem da obra sejam repletas de naturalidade. Ao tratar da relação de Quixote com a leitura, José Manuel Martín Morán (2006) no ensaio O Quixote e a leitura analisa a alucinação produzida pela leitura, especificamente por meio do gênero cavaleiresco:

...sua leitura surtiu tanto efeito que ele (Quixote) não apenas abandonou sua vida passada, esquecendo “casi de todo punto el ejercicio de la caza, y aun la administración de se hacienda” (I, 1), mas chegou inclusive a privar-se de suas posses para dar continuidade ao vício da leitura: “vendió muchas hanegas de tierra de sembradura para comprar libros de caballerías en que leer, y, así, llevó a su casa todos cuantos pudo haber dellos”(I, 1) (MORÁ N, 2006, p. 49).

Quixote abandona seu maior bem, a terra, indicando o desapego absoluto a sua identidade, uma vez que está contaminado pelo vírus da leitura e das narrativas cavaleirescas. O protagonista de Cervantes é de tal forma sequestrado não só pelo ato de narrar, mas também pelo prazer proporcionado pela leitura, que se esquece momentaneamente da realidade externa em detrimento do desejo provocado pela alucinação literária.

Torna-se oportuno registrar que a história da leitura determina, segundo Manguel (1996) e Orlandi (1996), em sua obra Discurso e Leitura, o estágio de compreensão e interpretação na elaboração de outros sentidos. O conhecimento de mundo, ou seja, a bagagem cultural contribui, de forma muito significativa, para que haja a intertextualização, promovendo a ideia de que “ler é cumulativo e avança em progressão geométrica: cada leitura nova baseia-se no que o leitor leu antes” (MANGUEL, 1997, p. 33). Ao entrecruzar realidade e ficção, o que o protagonista Quixote faz é uma reelaboração da realidade a fim de fugir do ócio. A leitura é usada pelo personagem como uma forma de escapismo. Morán (2006) advoga que:

(...) a leitura proveitosa, proposta por Cervantes, torna a comunidade coesa, enquanto a leitura escapista confia o indivíduo à anarquia de seus impulsos e o conduz, como Dom Quixote, pelo caminho da aventura e da tentativa de afirmação da própria verdade contra a verdade social. A visão paródica dos

153 feitos do fidalgo tresloucado também é a visão do tipo de leitura que ele representa (MORÁ N, 2006, p. 63).

A leitura escapista funciona, assim, como uma mola propulsora para que Quixote habitasse no palácio da imaginação. Contudo, o desejo de Cervantes está associado à inclusão do livro na dinâmica social a partir de uma leitura diligente, preocupada em educar o leitor por meio de ensinamentos do livro e conceder ao seu espírito a “disciplina necessária para integrar-se a uma hierarquia de valores sociais em relação de homologia com a própria disciplina de leitura” (MORÁ N, 2006, p. 63). Nesse sentido, tanto Quixote quanto o leitor da obra de Cervantes têm o mesmo estímulo: o caráter plurissignificativo da obra que conduz a uma reflexão acerca da leitura e da produção de sentido.

Uma característica marcante no Cavaleiro da Triste Figura é a fome pela leitura. Para saciá-la, Quixote devora uma diversidade de obras cujos gêneros são variados. No entanto, são as novelas de cavalaria que seduzem de forma arrebatadora esse leitor fanático. Por ter uma obsessão por esse tipo de leitura, o fidalgo, em Cervantes (2002) resolveu “...fazer-se cavaleiro andante e sair pelo mundo com suas armas e seu cavalo em busca de aventuras25”(CERVANTES, 2002, p. 60). Nesse momento, percebe-se a força criadora provocada pelas leituras: a imaginação a que é conduzido Quixote é tamanha que se estabelece uma espécie de deleite enlouquecedor, isto é, ficção e realidade se misturam como se fosse um só. Para Aristóteles (1998), em sua Retórica, a força imaginativa, é concebida como faculdade inferior por ser “uma espécie de sensação enfraquecida”. Na esteira do que se encontra em Aristóteles (1998, p. 84-85), evidencia-se Santo Tomás (2005), em sua Suma Teológica, que clama os leitores para perceberem que

se o homem cessa de utilizar o hábito intelectual, aparecerão estranhas imaginações que, às vezes, levam a coisas contrárias, a tal ponto que, se não forem eliminadas ou reprimidas pelo exercício frequente do hábito intelectual, o homem se tornará menos apto a julgar retamente, e às vezes, disposto totalmente ao contrário. E então, pela cessação do ato, o hábito intelectual diminui ou até se destrói (TOMÁ S, 2005, p. 85).

25 Texto original: “...hacerse caballero andante y irse por todo el mundo com sus armas y caballo a buscar las aventuras...” .

154 Essa exortação indica o quanto o leitor pode, por meio do poder imagético provocado pela leitura, confundir o entendimento do que se lê com imagens falsas, que deturpem e impeçam o indivíduo de manter uma conduta social adequada. É bastante interessante analisar que, para Platão, cabe ao filósofo a função de governar a cidade, em virtude de ele conhecer a essência das coisas, enquanto os poetas devem viver longe do espaço citadino, uma vez que lidam com a esfera do falso, da imitação.

Sobre a possibilidade de integração entre ficção e realidade, dialética marcante na obra Dom Quixote, é salutar perceber que desde o Prólogo até o desfecho do romance, há o entrecruzamento desses dois elementos. Ronaldes de Melo e Souza (2000) – em Introdução à Poética da Ironia – defende que “o romance cervantino revoluciona a estrutura tradicional da ficção narrativa, invencionando um protagonista e um narrador que se comportam como atores dramáticos, que se revestem e se desvestem de várias máscaras”. Esse mascaramento é evidenciado pela presença do protagonista Dom Quixote e Sancho, visto que eles promovem a tensão estrutural entre a realidade e a imaginação, o prosaico e o poético, a proximidade e a distância. Além disso, curioso é notar que, ao longo das leituras realizadas pelo protagonista, há a metáfora de sua morte, a morte da realidade, a fim de que prevaleça a ficção. Em via consonante, Robson André da Silva (2001), no ensaio intitulado O jogo de ficção e realidade em ‘Dom Quixote de La Mancha’ ressalta:

A loucura de Dom Quixote, na primeira parte, consistia em sublimar o cotidiano petrificado, a realidade vil e baixa. Ele transformava os moinhos de vento, os rebanhos, as vendas, a bacia do barbeiro em, respectivamente, gigantes, exércitos, castelos, o elmo de Mambrino. Mas, tinha como opositores ou destruidores primeiramente Sancho, depois o cura, o barbeiro, o cônego, etc. Como a aventura virava desventura, e para não reconhecer o real como é (moinho, venda, etc), apelava para os encantadores que, assim, eram responsabilizados por transformar o nobre e elevado (ficção) em vulgar e baixo (real). Dessa maneira, o jogo continuava, ou melhor, continuava no jogo (SILVA, 2001, p. 41).

Segundo o romance de Cervantes (2002), os livros de cavalaria cumpriam a função de saciar a fome do fidalgo Dom Quixote, sendo assim, o Cavaleiro da Triste Figura imitava tais ações: “Com estes ia engranzando outros disparates, todos à maneira

155 daqueles que seus livros lhe haviam ensinado, imitando a sua linguagem o quanto podia”26 (CERVANTES, 2002, p. 68).

Nota-se que as leituras realizadas por Dom Quixote promovem tanto a literatura quanto a existência, porque não fazem a distinção entre a razão e a loucura, entre a alma e entre o ser e o não-ser. Para promover as atitudes associadas ao bom comportamento, Cervantes usa como pretexto as novelas de cavalaria que possuem personagens cujas atitudes e condutas são exemplares. No entanto, a Igreja condena esse tipo de gênero, pois propaga ideias subversivas estimulando os desejos mais íntimos do indivíduo. A esse respeito, Silva (2001) ressalta:

O cônego vê ou lê o mundo estabelecendo a oposição metafísica da ficção e da realidade, da razão e da loucura e, por isso, condena os livros de cavalarias. Reconhece que sente algum contentamento quando os lê (plano da imaginação), mas quando percebe que “são todos fictícios e superficiais” (plano da realidade) atira à parede o melhor deles e até o jogaria no fogo, se houvesse algum por perto, afinal, continua o cônego, são “falsos e embusteiros” (SILVA, 2001, p. 42).

É bastante intrigante analisar que, mesmo diante da forte presença dos aspectos ficcionais, os livros de cavalaria são condenados, sobretudo, por serem, segundo o cônego cervantino, detalhado em Cervantes (2002):

...falsos e embusteiros e desviados do trato que pede a comum natureza, e como inventores de novas seitas e novos modos de vida”, e como quem dá ocasião para que o vulgo ignorante venha a crer e a ter por verdadeiras tantas necessidades como as que eles contêm27 (CERVANTES, 2002, p. 698-699).

Um dos gêneros que causam o transtorno na vida do protagonista é justamente o que mata a sua fome: as novelas de cavalaria cuja finalidade era revelar as façanhas de um herói, o cavaleiro, que, além disso, tinha como missão proteger os inocentes e amar incondicionalmente uma dama a quem ofereceria suas vitórias. No entanto, para adquirir tal título, o indivíduo deveria, segundo Pedrero-Sánchez (2000), em Histórias

26 Texto original: “Con estos ibaensartando otros disparates, todos al modo de los que sus libros Le habían enseñado, imitando en cuanto podia su lenguaje”.

27 Texto original: “...falsos y embusteros y fuera del trato que pide la común naturaleza, y como a inventores de nuevas sectas y de nuevo modo de vida, y como a quien do ocasión que el vulgo ignorante venga a creer y a tener por verdaderas tantas necedades como contienen”.

156 da Idade Média: textos e testemunhas, possuir três atributos: “esforço, honra e poderio” (PEDRERO-SÁ NCHEZ, 2000, p. 99-100). Ademais, seria necessário que ele pertencesse a uma boa linhagem, tivesse à disposição um fiel escudeiro e defendesse o rei e a conduta prevista pela lei, ou seja, para ser um cavaleiro, era imprescindível ter uma índole impecável. Eis as primeiras características assumidas por Dom Quixote: em sua imaginação, ele era um legítimo cavaleiro e estava pronto para servir ao rei e a toda a sociedade.

Consoante Mikhail Bakhtin (1990), os romances de cavalaria estão envoltos em noções por onde circundam o inesperado, o maravilhoso, posto que o “de repente” é inevitável:

O mundo inteiro se torna maravilhoso e o próprio maravilhoso se torna habitual (sem deixar de ser maravilhoso). O próprio eterno "imprevisto" deixa de ser algo imprevisto. O inesperado é esperado e só se espera o inesperado. O mundo inteiro limita-se à categoria do "de repente", à categoria do acaso maravilhoso e inesperado [...] O herói do romance de cavalaria lança-se às aventuras como se estivesse em seu elemento natural, para ele o mundo existe apenas sob o signo do maravilhoso "de repente", essa é a condição normal do mundo. Ele é aventureiro, mas um aventureiro desinteressado (aventureiro, naturalmente, não no sentido do uso tardio do termo, ou seja, no sentido do indivíduo que persegue sensatamente os objetivos almejados, pelos caminhos anormais da vida). Por sua própria natureza, ele só pode viver nesse mundo de coincidências maravilhosas e nelas conservar sua identidade. E o próprio "código", pelo qual se mede a sua identidade, é concebido justamente para esse mundo de coincidências maravilhosas (BAKHTIN, 1990, p. 269).

Esse universo do “de repente”, presente no romance de cavalaria, contribui para a efetivação do elemento inusitado, tão presente nesse gênero, portanto, magos, encantadores, monstros e outros elementos deste mundo são corriqueiros nesses textos. Contudo, isso não significa um distanciamento da realidade, mesmo porque há a presença de traços realistas evidentes na descrição detalhada de pessoas, objetos e ações, por exemplo. Para melhor compreender essa questão, Luciana das Graças Campos (2014), que afirma, em sua dissertação intitulada O jogo quixotesco e a construção de realidades ficcionais: o “eu” e os “outros” em “Dom Quixote”, que os cavaleiros viviam

lutando contra essas desventuras e criaturas, procurando salvar os que necessitam, os cavaleiros ganham glória e fama. Na maior parte das histórias de cavalaria, lutam por suas amadas e a elas oferecem as vitórias. Mas os cavaleiros, apesar de amarem incondicionalmente uma dama, permitem-se desfrutar de outras mulheres como amantes (CAMPOS, 2014, p. 45).

157 O fato de instigar o desejo pela aventura, pelo amor cortês, pela invencibilidade humana, sem desprezar o ato de o cavaleiro ser humano, fomenta no leitor desses gêneros, assim como feito com a imaginação do personagem Dom Quixote, práticas semelhantes. Assim, ao ler a novela Amadis de Gaula, citada inúmeras vezes na obra de Cervantes, o Cavaleiro da Triste Figura sente-se impulsionado a agir tal como Amadis.

Garcí Rodríguez Montalvo escreve, em 1508, a novela de cavalaria intitulada Amadis de Gaula. Essa obra inspirou todas as outras do gênero, uma vez que sua estrutura contribuiria para a construção do ideal cavaleiresco. Ediluce Batista Silveira (2014), registra que

o herói de Amadis de Gaula é fiel à sua amada, ao código da cavalaria, além de ser uma figura importante para o seu povo, devido a sua origem aristocrata. Esse jovem cavaleiro mostra-se um herói que não foge das batalhas e que transita entre o homem medieval e o homem concebido segundo os valores renascentistas. A presença de elementos como a feiticeira Urganda e o mago Arcalaus (caracterizado como “encantador”) faz com que a noção de sacralidade – representada pela figura do herói Amadis – e profanidade estejam presentes na obra (SILVEIRA, 2014, p. 94-95).

O protagonista Dom Quixote era induzido, por meio de suas leituras, a realizar as aventuras que não poderia alcançar, mas que se transformariam em uma extensão da sua realidade. Isso é exemplificado em Cervantes (2002), transcrito a seguir:

Mas, com tudo isso, apreciava em seu autor aquele terminar o livro com a promessa daquela interminável aventura, e muitas vezes foi assaltado pelo desejo de tomar da pena e cumprir ao pé da letra o que ali se oferece; e sem dúvida alguma assim teria feito e conseguido seu propósito se outros maiores e constantes pensamentos o não tivessem estorvado28 (CERVANTES, 2002,

p. 58).

Além das façanhas quixotescas inspiradas em romances de cavalaria, Dom Quixote se apropria da forma de como um valente cavaleiro escolheria seu nome, pois ser chamado apenas de “Quixote” não lhe concederia a autoridade de cavaleiro. Sobre isso, em Cervantes (2002), encontra-se o seguinte esclarecimento:

28 Texto original: “Pero, con todo, alababa en su autor aquel acabar su libro con la promesa de aquella inacabable aventura, y muchas veces le vino deseo de tomar la pluma y dalle fin al pie de la letra como allí se promete; y sin duda alguna lo hiciera, y aun saliera con ello, si otros mauores y contínuos pensamientos no se ló estorbaran”.

158 Mas ele então se lembrou que o valoroso Amadis não se contentara em chamar-se “Amadis”, sem mais, tendo ajuntado o nome do seu reino e pátria, para sua maior fama, chamando-se de “Amadis de Gaula”, e assim quis ele, como bom cavaleiro, ajuntar ao próprio nome o nome da sua e se chamar “D. Quixote de La Mancha”, com o qual a seu parecer declarava bem vivamente a sua linhagem e pátria, e a honrava tomando-a por epíteto29 (CERVANTES,

2002, p. 61).

Embasado nas interferências provocadas pela leitura, Dom Quixote assume-se na condição de produtor de sentido, pois ele (re)cria uma nova realidade. Certamente o efeito do ato de ler é produzir sentido, de acordo com a experiência desse leitor. É por meio do pré-conhecimento adquirido pelo sujeito na qualidade de leitor que surge a possibilidade de estabelecer uma rede de sentidos viáveis ou impossíveis, mas que revelam a capacidade individual de discutir, de questionar, de legitimar poder.

O Cavaleiro da Triste Figura mergulha tão profundamente nas novelas de cavalaria que sua imaginação transita entre a realidade e a ficção contribuindo, assim, para que ele seja orientado, sobretudo, pelo ato de ler. Nesse sentido, suas interpretações, deformadas ou harmoniosas, são o reflexo de um leitor que deseja romper com a realidade, mas é ciente da necessidade de enfrentá-la, sendo assim o que não existe ou pode não existir, ele inventa e constrói, à sua maneira, uma outra realidade. A eficácia da leitura quixotesca está no agrupamento das ideias, uma vez que o leitor incorpora a letra do que leu, conforme defende Chartier (2011).

Dom Quixote não representa apenas um leitor que, fascinado pelas leituras, vive- as intensamente, mas é possuído pelo texto, visto que cada letra, cada palavra torna-se parte de seu “eu”. Por isso, esse fidalgo assume efetivamente a sua condição de leitor, pois está livre e desprendido de qualquer imposição em relação às formas de interpretar uma obra. De leitor, o personagem cervantino passa a compartilhar novas perspectivas de mundo.

Documentos relacionados