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6. O Texto Dramático para Crianças

6.1. António Torrado e o teatro para as crianças nos palcos prévios dos

6.1.1. A Donzela Guerreira

Esta obra consta de uma adaptação à linguagem dramática, por assim dizer, de uma versão dramatizada, da recriação homóloga das Histórias Tradicionais Portuguesas Contadas de Novo por António Torrado, da qual faremos uma pequena sinopse.

D. Duardos, nobre senhor, muito respeitado e estimado, mas já frouxo e velho, sem disposição e capacidade para participar em guerras, vive em grandes paços acompanhado da esposa, mimado pelas sete filhas, delicadas donzelas, rodeado da criadagem e do seu fiel escudeiro, Julião. Ao apregoar das guerras entre França e Aragão, transforma-se Guiomar, filha mais velha (na inexistência de filho varão, causa de tanta lamentação) em conde Daros, com o nome de D. João. E de elmo, viseira, escarcela, camisão militar e outros que tais apetrechos guerreiros faz-se cavaleiro da cabeça aos pés e lá parte para a guerra. Durante sete anos batalha vigorosamente lado a lado com D. Marcos, seu capitão, que apaixonado demonstra interesse num conhecimento recíproco das famílias, no final da guerra que já se vislumbra. Facto que vem a acontecer, revelando D. Marcos aos progenitores a sua inquietação por se sentir atraído por seu amigo, o conde Daros, sobre o qual recai a suspeita de ser uma donzela. E, elucidado por seus pais, nobres de grande perspicácia adquirida com a experiência da idade e da vida, engendra situações que colocam D. João numa posição delicada, mas que lhe permitem, a pouco e pouco, desfazer as dúvidas quanto à sua verdadeira identidade. E, com um final feliz, à semelhança dos contos de príncipes e princesas, a história termina com a desmistificação pela metamorfose

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final do donzel D. João na linda donzela Guiomar, graças à paixão nutrida por ambos, a que se segue o casamento numa linda abadia.

Nesta peça composta por cinco cenas, António Torrado faz uma incursão pela poesia, revelando uma atenção particular ao ritmo, pelo recurso frequente ao verso rimado. De realçar que a mancha gráfica característica do texto dramático contempla, também aqui, dois tipos de discurso – o diálogo ou as falas das personagens (texto principal) e as didascálias ou indicações cénicas (texto secundário). Transpondo estes aspectos para o texto concreto, vejamos um ou outro incipit onde se verifica a existência dos dois tipos de texto descritos; e enquanto o primeiro nos fornece indicações preciosas sobre a maneira de ser das personagens, da sua condição humana e social e da sua visão do mundo, o segundo dá-nos uma localização espácio-temporal, uma orientação cénica e um conjunto de reacções e atitudes posturais das personagens que complementam a representação.

Escudeiro - Meu amo, senhor D. Duardos, ouvi. Prestai atenção.

(D. Duardos roda no assento, resmunga e não abre os olhos.)

[…]

Ouvi, senhor D. Duardos, nobre senhor, de brasão mais antigo, mais louvado, memorado e celebrado

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do próprio rei de Aragão.

(D. Duardos acorda, rezingão.)

Escudeiro - Escutai, senhor D.Duardos,

escutai e dai-me razão. Tocam fanfarras, lá fora, no pátio da guarnição.(p.10) […]

(D. Duardos, amolengado, ainda não se levantou do cadeiral.)

D. Duardos - Estou cansado, amodorrado

a fazer a digestão da perna de cerdo assado do guisado de faisão com feijão do encarnado para poder molhar o pão, do empadão com migado de perdiz… (arrota) … perdão! Tudo regado – bem regado –

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com vinho do canjirão e entras tu, descarado, sem respeito, de roldão, pelos cómodos mais privados desta minha habitação, por causa de umas fanfarras que mal oiço donde são.

(Som de fanfarras e sinos sineiros.

(O escudeiro ouvindo e chamando a atenção de D. Duardos, totalmente indiferente.)

D. Duardos - Ide embora, mau escudeiro,

ou levais um bofetão. E deixai-me governar esta doce lassidão, este manso ruminar… até nova refeição. (p.11) […]

D. Duardos - São sete as filhas que tenho,

não tenho filho varão… […]

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mas briosas e serenas já tirámos o ferrão. Se ser donzela condena não quero condenação. Rejeito o meu diadema e serei filho varão. (p.15)

Uma leitura atenta do texto propriamente dito deixa-nos perceber que o tema é a prevalência do parecer sobre o ser, e descortinar, pelas falas das personagens, a personalidade do escudeiro (zeloso pelas suas obrigações, fiel ao seu amo, subalternizado, humilde, subserviente e preocupado) em contraste com a figura e maneira de ser do rei (apreciador de boa comida e grandes quantidades de bebida, de modos grosseiros, reivindicativo da sua privacidade, desrespeitador dos seus súbditos, à boa maneira de “quem pode…manda”, frustrado por não ter filho varão, e que vive despreocupadamente para comer e governar sem sobressaltos, pois nada lhe falta – companhia, mimos e actos de grande reverência). Igualmente nos propicia um conhecimento de Guiomar, figura central neste texto dramático, que deixa antever uma personalidade forte, decidida e empenhada na resolução do problema - amenizar a frustração do pai e cumprir o dever pátrio, disposta a ir para a frente de batalha, dominada pela vontade férrea de ocultação da sua identidade feminina, numa verdadeira luta pela antecipação da mulher, pela igualdade de direitos, e contra a discriminação sexual. Mas, uma luta pacífica, envergonhada e sobretudo silenciosa, votada ao maior

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secretismo. Quanto a D. Marcos revela-nos, a um tempo, um homem guerreiro, competente, forte e destemido, mas de pouca perspicácia, e a outro, um ser perturbado, atraiçoado por sentimentos de admiração e paixão, contidos pela dúvida da condição masculina.

De realçar que ao longo do texto se verifica a ocorrência de contaminação, estratégia que consiste na existência de fragmentos narrativos no texto dramático. Fragmentos esses, identificados em certas falas do escudeiro, que num dado momento assegura a função de narrador em relação a determinados acontecimentos exteriores ao plano em que se situa. Um exemplo ilustrativo e bem clarificador desta personagem-narrador é nos dado neste pequeno excerto:

Escudeiro - Tudo represo, em silêncio

aves, vento, brisa, mar eis que donzel em donzela houvera de se tornar. Alvos ombros, alvos braços e as faces a rosear…(p.36) […]

E depois? Perguntaria quem quisesse averiguar se a maré estava a encher… ou estava na baixa-mar ou se areia era macia

109 ou o sol se estava a toldar…

Fique à vossa fantasia

que eu mais não sei contar. (p.37)

De igual importância nos parece o texto não dito e não lido ou didascálias existente tanto na preparação de cada cena, onde nos remete para a sua representação, a integração textual de apontamentos sobre o espaço cénico, movimentação, luminotecnia ou mesmo mutação de lugares e personagens, como ao longo de todo o texto, dando-nos informações preciosas sobre posturas, movimentos, atitudes, gestos, sonoridades, e outros elementos que não sendo espúrios têm uma significação muito precisa e determinante na criação do “clima” e propósitos essenciais da intriga.

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