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4 DA PROTEÇÃO À DIGNIDADE SEXUAL EM MEIOS DE TRANSPORTES PÚBLICOS COLETIVOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

4.1 DOS CRIMES SEXUAIS SOB UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO

Drezzet (2003) define a violência contra a mulher como uma relação de forças que converge a diferença entre os sexos em desigualdade, onde os homens exercem controle sobre as mulheres ao socializá-las dentro de uma categoria subordinada.

Dos chamados instrumentos de dominação utilizados pelo sistema do patriarcado, o SOS Corpo (2008) expõe a questão da interdição à participação política das mulheres e da organização e manutenção da divisão do trabalho, já anteriormente abordados. Atrelado a estes instrumentos, há ainda a questão referente à expropriação do corpo das mulheres.

Ainda que tais instrumentos não mais sejam encontrados de forma explícita como outrora, continuam presentes na realidade das sociedades contemporâneas, incluindo a brasileira.

Por muito tempo, no Brasil, as relações sexuais dentro do casamento eram consideradas obrigação conjugal, socialmente e mesmo para o Direito, que não admitia a configuração do crime de estupro entre cônjuges. Entretanto, ainda hoje:

Muitas das mulheres não denunciam esse tipo de agressão, pois entendem que o sexo no casamento é obrigação, temendo conseqüências piores, não usando de sua liberdade sexual e seu direito de escolha (VASCONCELOS, PONTES e SILVA, 2015, p.5)

Esta situação caracterizaria o chamado Débito Conjugal, em que o marido teria o direito de exigir a “prestação” do dever sexual e a mulher a obrigação de cumprir, denotando a submissão da mulher frente ao marido, antes naturalizada e amplamente aceita socialmente. Segundo Lobo(apud VASCONCELOS, PONTES E SILVA, 2015, p.6) “alguns autores denominam este dever de coabitação, mas o sentido que nele prevaleceu foi o de relacionamento sexual durante a convivência no lar comum”.

A respeito do tema, Maria Berenice Dias (apud VASCONCELOS, PONTES E SILVA, 2015) esclarece não ser possível depreender do ordenamento jurídico brasileiro referida obrigação de se manter relações sexuais entre cônjuges em razão do vínculo conjugal.

Em detrimento de histórica discussão doutrinária acerca do tema, a jurisprudência se firmou no sentido de admitir a condenação pela prática do crime de estupro, mesmo que dentro da relação conjugal. Neste sentido, encontramos a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR):

APELAÇÃO CRIME- ESTRUPRO PRATICADO PELO MARIDO CONTRA A ESPOSA- CONFIGURAÇÃO- PENA-FIXAÇÃO- RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE. Restando comprovado que o réu, mediante violência real, constrangeu a vítima a conjunção carnal, a condenação é imperativa. (TJ- PR- ACR:459189 PR Apelação Crime- 0045918-9, Relator:Moacir Guimarães. Data de julgamento:21/03/1996. 1ª Câmara Criminal)

Acerca das atuais formas de expropriação do corpo feminino na atualidade, o SOS Corpo (2008) aponta a questão da medicina estética, que atribui padrões ao corpo da mulher e lucra com a busca desta a adequar-se aos padrões impostos, o controle da sexualidade e a mercantilização da imagem da mulher, além de, claro, o extremo da exploração sexual desta.

Neste sentido, Drezzet (2003) define o abuso sexual da mulher como uma forma de violência de gênero que corporifica a sexualidade, sendo exercida como exercício de poder.

Impossível, afinal, dissociar o processo de construção do gênero feminino, subserviente e objeto de domínio do homem, a alta incidência de violações a liberdade sexual ou a integridade física das mulheres no Brasil e no mundo, no ambiente público e no privado.

Quando forçada ao ato sexual por desconhecidos ou quando obrigada a manter relações sexuais com os parceiros dentro de relações amorosas, a manter- se dentro destes relacionamentos, sob constantes ameaças, e considerada propriedade a ponto de ser vítima frequente de ex-parceiros descontentes com o término do relacionamento, não tão raro vemos a autonomia da vontade da mulher subjugada e desconsiderada por completo em detrimento da satisfação do desejo do homem, de familiares a desconhecidos.

Neste sentido, Saffioti (2005) aponta o estupro como exemplo extremo do exercício desigual do poder nas relações homem-mulher, onde o homem mantém relações sexuais, sem que haja consentimento da vítima, provando sua capacidade de submeter à mulher a própria vontade, associando o ato sexual forçoso como forma de inferiorização.

Acerca da banalização social do fenômeno da violência contra as mulheres, em especial quanto à violência sexual, muito se tem debatido no universo acadêmico, e mesmo nos veículos midiáticos, sobre a existência da chamada cultura do estupro.

Ao explicar o porquê de determinada prática social ser possivelmente denominada cultura, Sousa (2017, p.10), atribui à prática:

Uma série de fatores que exprimem que essa conduta caracteriza-se, entre outras coisas, por ser algo feito de maneira corriqueira e não listado como raras exceções, colocando essa ação como uma atividade humana. O que não significa que, de maneira direta, todos os homens sejam responsáveis, mas que, de muitas maneiras, a cultura do machismo e da misoginia contribui para a perpetuação desse tipo de violência focada, principalmente, contra a mulher.

A sociedade, ao estabelecer padrões de interação entre os gêneros em que o corpo da mulher é permanentemente objetificado e posto a serviço do desejo do homem, acaba por contribuir para a reprodução de uma realidade em que

sucessivas violações aos direitos da mulher tornou-se algo corriqueiro. Almeida (2016) enfatiza ainda serem as mulheres um público de risco por, além de ver seus corpos objetificados, e a referida objetificação ser banalizada, ainda, não raramente, costumam ser culpabilizadas pela violência que sofrem. A este padrão de violência contra a mulher se denomina, então, cultura do estupro.

Acerca dos elementos presentes na chamada cultura do estupro, Sousa (2007, p. 13) destaca:

Tais valores são repassados para toda a sociedade, que revitimiza a mulher principalmente por, segundo a concepção geral, colocar-se nas chamadas “situações de risco”, nos quais a mesma é culpada por não seguir as chamadas regras de conduta. Regras de conduta que, por sua vez, são inseridas na socialização da mulher desde o momento do nascimento, ensinando-a que tipo e tamanho de roupa vestir, que tipo de maquiagem usar, como se comportar na rua, quando e como beber e assim sucessivamente, depositando na mulher a responsabilidade sobre os atos de terceiros contra a sua integridade sexual. Essa mesma cultura do estupro ensina que os homens devem aproveitar toda e qualquer oportunidade de consumação sexual, e, que, muitas vezes, as mulheres que dizem não apenas o dizem porque são ensinadas a não dizer sim na primeira vez, e que cabe a eles “transformar” aquele não em um sim. Isso quando há qualquer consulta prévia da vontade da vítima. Em alguns casos, a violência se da de maneira que a vítima não toma conhecimento da situação antes, durante ou depois da consumação do ato por estar inconsciente, dopada, ou não ter noção de seus direitos perante a própria dignidade.

Possível depreender que a construção social de condutas próprias a determinados sexos, do homem como o ser conquistador, e da mulher como aquela a ser conquistada, indiretamente desenvolve padrões de comportamento que constroem esta realidade de violação continua aos direitos da mulher.

Finalmente, Sousa (2017) define a cultura do estupro como o conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo a violação sexual da mulher.

3.2 DAS VIOLAÇÕES À DIGNIDADE SEXUAL DA MULHER EM MEIOS DE