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Doutrina da Situação Irregular

No documento MICHELLE CRISTINNE PEREIRA DA SILVA BITTAR (páginas 50-53)

CAPÍTULO 2: CONSTRUÇÃO SÓCIO HISTÓRICA DOS DIREITOS DA CRIANÇA

2.3. Doutrina da Situação Irregular

Em 1979, a Lei n° 6.697 introduziu o Novo Código de Menores, mantendo em seu bojo a Doutrina da Situação Irregular (ideia já abarcada no Código de 1927), através da postura tutelar e da ideia de criminalização da pobreza. Essa doutrina estabelece como seus destinatários somente as crianças e adolescentes considerados em situação irregular, ou seja, aqueles que não se enquadrassem nessa condição não contavam ainda com uma lei específica de proteção.

Eram consideradas em situação irregular as pessoas até dezoito anos autores de atos infracionais, órfãos ou abandonados, submetidos à pobreza, aos maus tratos, ao “perigo moral” e ao desvio de conduta. Não havia diferenciação entre crianças e adolescentes e nem mesmo de tratamento entre aqueles considerados em situação irregular. Em outras palavras, uma criança que estava em situação de abandono recebia o mesmo tratamento que um adolescente que havia cometido um ato infracional.

Em linha com o art. 1º e 2º do referido código tem-se:

Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a

menores:

I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II - entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei. Parágrafo único - As medidas de caráter preventivo aplicam-se a todo

menor de dezoito anos, independentemente de sua situação.

Art. 2º. Para os efeitos deste Código, considera-se em situação

irregular o menor:

I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução

obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;

b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;

II - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais

ou responsável;

III - em perigo moral, devido a:

a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;

b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;

IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual

dos pais ou responsável;

V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar

ou comunitária;

VI - autor de infração penal (BRASIL, 1979).

Segundo Lorenzi (2016), o Código de Menores de 1979 tratou-se de uma revisão do Código de Menores de 27, mantendo sua linha principal de arbitrariedade, assistencialismo e repressão junto à população infanto-juvenil. Como se viu acima, esta lei introduziu abertamente a expressão “menor em situação irregular”, que incluía crianças e adolescentes considerados em “perigo” ou “perigosos”.

Havia um controle exacerbado por parte do Poder Judiciário, exercido por meio da temida figura do juiz de menores. Este, considerado onipotente no contexto desse código, era assessorado pela polícia, conhecida por suas práticas violentas. Nesse sentido,

é interessante que o termo “autoridade judiciária” aparece no Código de Menores de 1979 e na Lei da Fundação do Bem Estar do Menor, respectivamente, 75 e 81 vezes, conferindo a esta figura poderes ilimitados quanto ao tratamento e destino desta população (LORENZI, 2016, p. 13).

Além disso, manteve-se o forte caráter de institucionalização. O internamento continuava sendo regra para a condução dos casos de meninos e meninas pobres, que viviam em condições indignas (VERONESE e CUSTÓDIO, 2011).

Como principais características desse Código pode-se mencionar (VERONESE e CUSTÓDIO, 2011; FONSECA, 2015):

• Visão estigmatizada da infância pela reprodução do conceito de “menoridade”; • Controle social da infância e da adolescência vítima da omissão e transgressão da

família, da sociedade e do Estado;

• Exclusão de crianças e adolescentes que não se enquadravam nas situações expressamente descritas;

• Concepção excludente da infância e da adolescência, baseada em critérios individuais, econômicos, políticos, sociais e jurídicos que estimulavam práticas discriminatórias de raça e de gênero;

• Institucionalização como prática dominante;

• Gestão das políticas governamentais de forma centralizada, autoritária e não participativa;

• Fiscalização do cumprimento da lei de competência exclusiva do Juiz e de seu corpo de auxiliares, que mantinham como campo de atuação o binômio carência e delinquência – o juiz de menores somente atuava diante de uma das possibilidades apresentadas no art. 2º do Código de Menores de 1979, as questões que não se enquadravam nesse artigo eram analisadas pelos magistrados da Vara de Família sob a incidência do Código Civil.

Assim, a responsabilização pela condição de irregularidade de meninos e meninas era exclusivamente individual. Sob o pretexto de proteger a população infanto-juvenil, garantias jurídicas do Estado de Direito lhe eram negadas. Direitos basilares, como o de liberdade e igualdade, eram violados, praticando uma verdadeira criminalização da pobreza e judicialização das questões sociais.

O desrespeito às condições peculiares das crianças e adolescentes evidenciava-se na heterogeneidade da população da FEBEM da época, da qual 80% era formada por crianças e adolescentes que não haviam praticado nenhum ato infracional. Constituía-se, assim, um sistema de controle da pobreza, no qual a vítima era punida e tolhida de seus direitos mais naturais ao serem privadas de liberdade (SOARES, 2003).

A esse respeito, Santos (1987) faz uma coletânea de relatos de violência contra a criança noticiados pela imprensa nacional. Dentre elas, destaca-se uma reportagem da Folha de São Paulo, que narra o caso de uma criança de seis anos que, vítima de violência física doméstica, foi encaminhada para a FEBEM, mesmo destino das outras crianças e adolescentes considerados em situação irregular.

PAI QUEIMA FILHA COM FERRO

Z.O.C., de seis anos, foi torturada no Rio pelo seu padrasto, J.M.P., de 22 anos, que a queimou nas nádegas, coxas e pés, com um ferro de passar roupa. Na delegacia de polícia, ele explicou que a garota mexeu no despertador, fazendo com que ele perdesse a hora. Além de queimar a menina, colocou sal sobre os ferimentos “para arder bastante”. A mãe de Z.O.C. estava viajando e por isso ele buscou ajuda de uma vizinha que levou a criança ao posto policial. A garota depois de medicada foi entregue a uma unidade da FEBEM. (O ESTADO DE SÃO PAULO apud SANTOS, 1987, p. 33, grifo nosso).

Após a publicação desse Código em 1979, com o passar dos anos, organizações e comunidades se animavam com a perspectiva da edição de uma nova Constituição. Começou-se a presenciar uma forte mobilização de grupos populares nacionais e de organismos internacionais, que lutavam pelo rompimento da situação irregular e pela a adoção da proteção integral (AMIN, 2006).

Frente ao autoritarismo, os movimentos sociais assumiram um papel de protagonismo. Almejando acima de tudo a democratização, tais movimentos buscavam alternativas ao modelo vigente. O discurso disseminado pelo “Estado autoritário recebia a contribuição crítica do espaço público e, portanto, político de reflexão sobre as práticas históricas instituídas sobre a infância” (VERONESE e CUSTÓDIO, 2011, p. 13).

Nesse período, a problemática da infância começou a ser intensamente discutida e disseminada, o que fez com que a noção de irregularidade passasse a ser duramente questionada. Aliado a isso, as estatísticas sociais passavam a retratar uma dura realidade. Eram cerca de 30 milhões de “abandonados” ou “marginalizados”, contradizendo a falácia da proporção minoritária dessa população. Como poderia entrar em “situação irregular” simplesmente a metade da população de 0 a 17 anos? (RIZZINI e PILOTTI, 2011, P. 28)

Com isso, organizações e a sociedade como um todo passaram a se engajar na luta pela garantia de direitos, fazendo com que novos atores entrassem em cena. Em nível nacional, o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas (MNMM)8 teve importante contribuição. Ele lutou para sensibilizar a sociedade para repensar a população rotulada como “menores abandonados” ou “meninos de rua” e alcançar uma Constituição que garantisse e ampliasse os direitos sociais e individuais infanto-juvenis (AMIN, 2006).

Nesse caminho, em 1987 foi formada a Comissão Nacional da Criança e Constituinte, instituída por portaria interministerial e por representantes da sociedade civil organizada. Por todo país passaram a haver importantes Fóruns de Defesa da Criança e do Adolescente (MARCILIO, 1998). No período, a referida Comissão levantou 1.200.000 assinaturas e buscou junto a parlamentares a inclusão dos direitos infanto- juvenis na nova Carta (AMIN, 2006).

Percebia-se um processo de transição que desaguaria na superação jurídica do direito do menor pelo direito da criança e do adolescente; na substituição da doutrina da situação irregular pela adoção da doutrina da proteção integral.

No documento MICHELLE CRISTINNE PEREIRA DA SILVA BITTAR (páginas 50-53)

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