• Nenhum resultado encontrado

Após dez anos afastado do Santa Rosa, Carlos de Melo retorna ao engenho bacharel de Direito formado pela Faculdade de Direito do Recife. Em seu auto- retrato, Carlos diz “vinte e quatro anos, homem, senhor do meu destino, formado em Direito, sem saber fazer nada”51. O romance marca, portanto, o fim da vida do

menino, tem-se a confirmação e o desenlace da vida de Carlos de Melo.

A crítica contemporânea perceberá neste romance um refinamento maior na construção das personagens e da voz narrativa. Valdemar Cavalcanti argumentará que não só o bangüê ganhará “nervos e carne e ossos” neste romance, como também o romancista atribuirá um “sentido mais denso de humanidade” para o Ciclo iniciado dois anos antes com Menino de Engenho (1932). Para o crítico, este livro relata “aspectos mais dolorosos e crus, uma realidade mais dramática”52.

Se o tempo se encarregara de tornar Carlos um homem, também se ocupara de envelhecer o coronel José Paulino que “já andava mais curvo, o seu grito de mando não ia tão longe”53.

Em Bangüê, terceiro romance de José Lins, publicado em 1934, o leitor começa a perceber o Santa Rosa a partir do olhar do adulto Carlos de Melo, assim, o engenho começa a perder sua dimensão fantástica tão cara ao menino Carlinhos. A grandeza imaginada de sua gente e de sua terra cede lugar à

51REGO, José Lins. Bangüê. 14 ed. RJ: Nova Fronteira, 1984. p.27. Segundo Margherita Russotto, em Bangüê

a definição do herói sofre uma “exarcebação impaciente. É um momento de nervosa expectativas sobre seu futuro que se revela desde as primeiras páginas; um acerto de contas e uma resposta à pergunta: que fará Carlos de Melo? Para que serve?”. RUSSOTTO, M. Arcaísmo e Modernidade em José Lins do Rego. Uma Leitura de Doidinho. 1987. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada). FFLCH: USP, São Paulo. p.177.

52CAVALCANTI, Valdemar. Bangüê. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, n. 10, Ano III, jul. 1934. p.266. Ver

ainda: GOMES, Eugênio. Bangüê. Estado da Bahia, Salvador, 4.jul.1934 e GRIECO, Agrippino. Gente Nova do Brasil. 2 ed. RJ: José Olympio, 1948. pp.18-20.

percepção de que lhe restava “a realidade de uma vida na iminência de um novo rumo”54, sendo este o universo dentro do qual o herói irá se mover.

O jovem advogado não se interessará pela profissão, não demonstrando, também, grande interesse em substituir o avô no comando do Santa Rosa. Assim, passará seus dias lendo no quarto ou na rede do alpendre da casa-grande sempre à espera dos jornais que chegavam de Recife com alguns dias de atraso.

Carlos relata o silêncio e a distância que passou a marcar a convivência entre os habitantes da casa-grande: ele, José Paulino e Sinhazinha, a velha tia que aterrorizava o menino Carlinhos em sua infância. Talvez um dos momentos mais representativos da distância e do silêncio que marcavam tanto o envelhecimento de José Paulino, quanto a lenta decadência do Santo Rosa (sem que um fato exclua o outro) é o trecho transcrito a seguir que marca a perplexidade de Carlos diante desse duplo processo:

Mas por que estariam úmidos naquele dia os olhos do meu avô?

[...]

[Eu] Não acreditava mais em Deus. Tomava tudo no mundo como uma obra do acaso, de surpresa [...]

Pensar naquilo era duro. Procurava sair destas preo- cupações, senão mais aborrecidos se tornariam os meus dias. Fugia de casa desde que um pensamento deste me conduzia para a morte, para este espetáculo de que seria protagonista na certa. Deus era uma consolação que não me embalava. A sua realidade não era deste mundo. E eu trazia um corpo que era todo preso à terra, como um pé de mato. Subir dali como um balão, ascender dos meus alicerces de barro, era tarefa difícil para quem pensava demais, para uma carne como aquela minha, que era só carne.

Lera livros que falavam de homens iluminados pelo amor, arrastados pelo amor a grandezas que nunca atingiriam sozinhos. Ou de outros a quem o amor conduzia à morte como a um porto seguro. Homens que morriam e matavam por mulheres. [...]

O amor que eu conhecia nunca me deu força para coisa nenhuma, nunca me elevou nem me rebaixou, aluindo-me das minhas bases. Que secura era aquela minha? No íntimo me via pequeno demais, menor que todo mundo.

[...]

Ouvia o meu avô tossindo. Por que estariam úmidos os seus

54REGO, José Lins. Bangüê. 14 ed. RJ: Nova Fronteira, 1984. p.30. Novo rumo que possui níveis maiores de

olhos? Pensava nele.

Não tiraria mais dois anos de vida, tão próximo da morte e ali a dois passos de mim. Ele contava os seus dias. Saberia na certa que em breve o seu leito não seria mais aquela cama dura de couro. Que dor profunda não o machucaria! Tossia cada vez mais e a bronquite crônica perturbava as suas noites de sono solto. Comendo pouco, não ia mais aos banhos de madrugada. Como a roda volante do engenho, empacava.

Mas, por que chorava naquele dia em que me chamou para o café? Teria sido veneta de doente? Ou ainda existiam naquela sua sensibilidade, comida pelo tempo, restos de afeição por um neto que lhe não fizera as vontades?

Queria que fosse bacharel. Fui bacharel. Não era da espécie que ele admirava, daqueles que soubessem fazer uso da carta, que botassem as coisas para a frente. Era um neto mole, sem saber falar no júri, sem coragem para a vida. Aquilo que mais lhe repugnava vivia comigo deitado na rede: a preguiça.

Já que não dera o desempenho da carta, por que não me montava a cavalo pelos partidos, vendo o serviço, brigando com o feitor, descompondo os trabalhadores?

[...]

A casa-grande do Santa Rosa não ouvia nada. Perdera a fala, os ouvidos, com aquele silêncio de mosteiro abandonado. Quando cheguei na mesa para o café o meu avô já estava. Nós dois somente, naquela mesa imensa que vira cheia, de ponta a ponta, nos grandes dias do Santa Rosa, nas semanas santas de feijão-de-coco, nos São Pedros com os parentes e a alegria do patriarca contaminando todo o mundo. Hoje era aquilo. Ele e eu, e aquele silêncio e aquela tristeza de casa infeliz.

Naquela vez o meu avô tinha alguma coisa para me dizer: - Recebi uma carta de Juca mandando este telegrama. E deu-me a carta e o telegrama. Tio Juca arranjara as coisas ao seu jeito mandando para o velho Zé Paulino os resultados do seu trabalho: uma promotoria para mim, no Paraná. Olhei o velho e o velho não me disse nada.

- O senhor responda que eu aceito.

Vi então que o meu avô chorava. Os seus olhos azuis marejados. E num ímpeto, como se já tivesse feito aquilo muitas vezes, tomei-lhe as mãos e chorei sobre elas como menino.

- Vá, se quiser. Vá, se quiser. Estou para morrer. Queria ao menos que ficasse um aqui até o fim.

E levantou-se da mesa com o cacete batendo no chão. Chegou na janela, gritando para um sujeito que passava na estrada55.

Esse herói, a despeito de seu esforço para se situar no mundo e de produzir ou re-produzir as expectativas de seus antepassados (bem como a dificuldade de reprodução social), não consegue se constituir como uma personagem orgânica, persistindo a mesma ambigüidade e irresolução que marca o narrador - personagem de Doidinho. Novamente, temos um romance no qual o narrador não se realiza56.

O único projeto mais claro construído pelo herói é a intenção, pouco orgânica e prática, de se tornar escritor. Contudo, esse projeto passará por várias etapas (como demonstra a incerteza sobre o tema a ser explorado: escrever a história da aristocracia açucareira ou a dos pobres dos engenhos conforme sugerido por Maria Alice), não se sustentando em nenhuma delas quer por anti- intelectualismo, quer por culpa ou por incompetência57.

'Meu caro Carlos:

Há mais de um ano que não tenho notícias suas. Recolheu-se você a um silêncio de monge. Ninguém sabe nada do grande boêmio das pensões alegres. As nossas amigas não se cansam de perguntar pelo companheiro fugitivo. [...] A vida, por aqui, naquilo mesmo. Tenho lido muito. Nada de mulheres. [...] Li muito. Apareceu um livro de um sujeito do sul sobre as populações meridionais. Se você quiser, eu lhe mando. Você, Carlos, é que podia escrever sobre os nossos homens do norte. Aqueles seus ensaios sobre os senhores de engenho bem que revelaram capacidade para isto. Corre por aqui também uma versão: a de que você está preparando um livro sobre o seu avô,

56Para Margherita Russotto essa incompletude é um traço comum a todos as personagens dos romances de

José Lins, assim, nenhuma delas seria capaz de adquirir, por si só, a independência e liberdade necessárias para constituir-se em heróis completos. “Para isto teria sido necessário marcar distâncias, estabelecer uma barreira clara entre o narrador e a matéria narrada; mas isto não estava previsto no projeto estético- ideológico do autor [...] todos os seus personagens acabam sendo ‘alter ego’ do narrador, espelhos e facetas profundas de sua própria experiência [...] Todo o seu universo ficcional é amarrado com firmeza a essa experiência que é – paradoxalmente – a experiência da própria dissolução e da perda de valores comunitários. Ele estava ‘enlamado’ demais pelo mundo que pretendia descrever; por isso ‘viscosidade’ continua sendo a imagem mais apropriada para definir a distância entre o narrador e a matéria narrada”. RUSSOTTO, M. Arcaísmo e Modernidade em José Lins do Rego. Uma Leitura de Doidinho. 1987. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada). FFLCH: USP, São Paulo. p.160.

57Maria Alice, a prima que viera recuperar-se de uma doença no Santa Rosa e que despertara em Carlos o

amor e certa vontade para tocar o engenho, insistirá para que ele escreva artigos denunciando a pobreza em que vivem os trabalhadores de eito do engenho. Em seus devaneios diz Carlos: “seria uma campanha admirável, levantada por um neto de senhor de engenho. Seria bonito: levantar-me a favor dos meus servos [...] Começara o artigo, enchendo umas duas tiras de sentimentalismo sobre a vida rural dos engenhos e me senti ridículo”. Já a carta do antigo colega do Recife, Mário Santos, despertará em Carlos dúvidas ainda maiores. Bangüê. 14 ed. RJ: Nova Fronteira, 1984. p.115.

nada menos do que toda a história da cana-de-açúcar na Paraíba. Estou doido para lê-lo. Será verdade? O assunto é o mais sugestivo. Aliás você terá todas as facilidades. Pelo que se falava na Academia, o seu avô é o grande tipo do senhor de engenho. A vida aí, no Santa Rosa, ainda deve ser a grande vida senhorial dos velhos tempos: homens dignos, mulheres recolhidas e santas e a vassalagem cheirando a escravidão. Muito me tenho lembrado das nossas conversas do Continental, com você a falar de literatura, largando as suas boutades. [...] Mas eu estou lhe escrevendo para falar do seu livro. Qual será o seu plano? Você pegará o velho seu avô isolado ou é a crônica da sua família que vai traçar? Melhor seria uma crônica de sua gente, dos velhos troncos até os nossos dias. Sinto não ter em mãos este material de que você dispõe com tanta abundância. Se quiser alguma coisa aqui da biblioteca, me escreva, pois posso pedir ao Diretor, com quem me dou. [...] Posso lhe mandar também umas notas que tirei para fazer meu estudo sobre Nabuco. Mas, certamente, você não precisará de nada disto. Basta este contato direto com a sua gente, esta sua vida feliz, misturada com os seus. Você, Carlos, é um homem de sorte. Pode olhar para trás e ver avós brancos, os homens que fizeram a grandeza da sua família a cavar a terra, a mandar em negros. Quero ver o seu livro. Escreva e mande as suas notícias. Seja mais camarada, lembre-se dos velhos amigos. Qualquer dia destes saio daqui e vou passar uns dias com você. Quero ver de perto os remanescentes da velha nobreza rural, o seu avô mourejando e o neto de pena na mão para nos contar a sua vida heróica. Você é um homem que não pode se queixar. Vivia com esta idéia na cabeça, na Faculdade, e quando termina o curso, enquanto outros se danam atrás das promotorias, encontra um seio de Abraão para descansar. Vida boa. Escreva-me, Seu Carlos. Do seu

Mário Santos’58

Deve-se notar que essa irresolução e a conseqüente paralisia, decorrem da impossibilidade de Carlos de Melo em responder as perguntas centrais de um projeto como esse: para quem escrever (para Mário Santos ou para os pobres dos engenhos)? Qual a linguagem a ser utilizada (a escrita do primeiro ou o canto dos segundos)?

Para Margherita Russotto, Carlos é um “‘projeto’ de herói nunca atingido, em atitude de hipótese constante – faria isto, faria aquilo”59. Nesse sentido, não é

capaz de formular uma visão articulada e coerente do mundo, isto é, ainda que

58REGO, José Lins. Bangüê. 14 ed. RJ: Nova Fronteira, 1984. pp.54-56. Itálico e grifos no original.

59RUSSOTTO, M. Arcaísmo e Modernidade em José Lins do Rego. Uma Leitura de Doidinho. 1987. Tese

possa nos dar interpretações da realidade social e algumas impressões sobre o mundo e sobre si mesmo, não consegue nos dar a fundamentação racional de suas ações.

Portanto, a narrativa surge da intimidade exacerbada e solitária e não propriamente de uma análise linear e consecutiva da situação. Por isto, a exposição deste ‘fora de lugar’, que mostra um processo de degradação e fragmentação do herói, é representada principalmente mediante a auto- flagelação e a queixa60.

Carlos não possui o vigor, a firmeza e a violência que caracterizavam o avô, assim, acredita não possuir “força para resistir” ora porque se desculpava demais ora porque não castigava os trabalhadores o suficiente. Esta debilidade começa a roer sua própria condição de senhor à medida que os moradores e trabalhadores do engenho começam a lhe roubar milho, madeira, etc.61.

A morte de José Paulino define o destino de Carlos, o qual, herdeiro do Santa Rosa, será obrigado, definitivamente, a imitar os gestos do avô. Em três anos o engenho estará próximo da ruína. Ao leitor não é permitido saber detalhes desse processo, conhecemos apenas a despedida, novamente uma fuga – porém, a última-, de Carlos de Melo do Santo Rosa:

Era um homem rico. O bolso cheio de contos de réis. Dei o engenho ao Tio Juca por trezentos contos. Ao menos o Santa Rosa se salvara de me ser arrancado das mãos, por uma sentença de juiz. No dia em que assinei a escritura, vi o retrato do meu avô, com aquele olhar brando e a cara serena de quem tinha um coração de primeira.

Saí para olhar o engenho, mas a lembrança de Nicolau estava viva. Morrera por mim, matara por mim três pessoas. De noite estaria nos meus sonhos [...]

As negras, na cozinha, discutiam o destino delas. França iria para o Itapuá, Avelina para o Maravalha.

O Santa Rosa se findara. É verdade que com um enterro de luxo, com um caixão de defunto de trezentos contos de réis. Amanhã, uma chaminé de usina dominaria as cajazeiras. Os paus-d'arco não dariam mais flores porque precisavam da terra para cana. E os cabras de eito acordariam com o apito grosso da usina. E a terra iria saber o que era trabalhar para usina. E os

60RUSSOTTO, M. Arcaísmo e Modernidade em José Lins do Rego. Uma Leitura de Doidinho. 1987. Tese

(Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada). FFLCH: USP, São Paulo. p.200.

61Note-se a ambigüidade do pensamento de Carlos de Melo no que se refere a esse tema: num primeiro

momento diz “aquela gente de Pinheiro eram uns cínicos”, no parágrafo seguinte: “Sei lá se eram. Podiam ser até uns miseráveis, uns infelizes”. REGO, José Lins. Bangüê. 14 ed. RJ: Nova Fronteira, 1984. p. 140.

moleques o que era a fome. Eu sairia de bolso cheio, mas eles ficavam. Estava fingindo pena pelo destino dos meus cabras.

Acordei numa manhã com os pássaros da gameleira cantando como naquele dia em que pela primeira vez me levavam para o colégio. Agora ia sair para sempre do Santa Rosa. Ali sofrera muito nos últimos tempos. Me degradara mesmo, fizera filhos em mulheres infelizes, dera em Pinheiro por causa de uma miséria, dormira com medo de cabras, de nada, de sombras. De dentro da rede, naquela manhã de minha partida, sentia que não podia fazer mais nada. Fracassara completamente. Deixava o Santa Rosa para os outros. João Rouco, João de Joana, Manuel Severino, todos ficavam para o eito da usina. A esteira da usina, os trens, os arados, as fornalhas precisavam de gente. Gente que não dormisse, que não fizesse roçado, que não plantasse algodão. Da janela do vagão via o Santa Fé novo em folha, com a casa-grande espelhando ao sol. Depois o Santa Rosa ficando de longe. O trem já apitava na curva do Caboclo. O bueiro, as cajazeiras, os mulungus da estrada ficavam. Tudo ficava para trás.

Lembrei-me do retrato do velho Zé Paulino, de olhos bons e com a cara mais feliz do mundo. O neto comprara uma passagem de trezentos contos para o mundo.

O cemitério de São Miguel de Itaipu se mostrava do alto com as suas cruzes velhas. Mandaria levantar um túmulo bonito para Nicolau. O trem corria. Tudo ficava para trás. Um túmulo bonito para Nicolau62.