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3. A HISTÓRIA RECEPCIONAL DE SAGARANA

3.3. Duas leituras recentes

Desejamos destacar neste tópico a recepção de Gilca Machado Seidinger, exposta no livro Guimarães Rosa ou a paixão de contar: narrativas de Sagarana e a de Sílvio Holanda, notória em sua dissertação de mestrado intitulada Rapsódia Sertaneja.

Gilca Seidinger defedeu sua dissertação em 1999, delimitando seu corpus a dois contos de Sagarana, “Minha gente” e “Conversa de bois”, os dois textos tem alguns pontos em comum, investigados pela pesquisadora, o que aqui nos interessa, entretanto, é somente sua análise acerca de “Minha gente”, sobre a qual demonstra especial interesse pelo narrador rosiano, analisa os processos de composição acionados pelo discurso narrativo, em relação com a história, nos dois contos mencionados.

Ela percebe, sem grandes esforços, tendo em vista a clara obviedade do fato, que em “Minha gente” há um narrador presente na narrativa que conta, como herói, portanto autodiegético, como já melhor analisado no capítulo anterior. Aponta, ademais, amparada por Gérard Genette, a necessidade de se estabelecer a diferença entre quem vê, o focalizador, e quem fala, o narrador propriamente dito. Por essa razão, investiga nos contos quem vê, como vê, quem fala e como fala. Vê na relação narrador-focalizador,

uma chave para o mistério do narrador rosiano; nessa região de contato, espaço vivo, polêmico, em que podem vir a emergir tensões, crises, e que por isso mesmo pemite avanços, gera resultados, dá lugar ao novo, ao

original — quer no âmbito estético, formal, quer no que toca ao aspecto mesmo do conteúdo, da temática, em sua razão primeira, ponto de partida e de chegada do fazer literário: as aventuras e desventuras do “homem humano”. (grifo do autor).159

Para desenvolver essa análise, Gilca Seidinger selecionou dois pontos de apoio. Um, o referencial teórico desenvolvido por Genette no seu Discurso da narrativa, que, segundo ela, oferece um amplo instrumental metodológico voltado para o texto literário, em sua modalidade narrativa, mais especificamente no que diz respeito aos níveis narrativos, a voz e ao tempo. E outro, a semiótica, que parte de uma concepção ampla de texto, podendo ser ele linguístico, oral ou escrito, visual ou gestual, ou ainda, sincretizar distintas formas de expressão, como as histórias em quadrinhos e os filmes.

159 SEIDINGER, Gilca Machado. Guimarães Rosa ou a paixão de contar: narrativas de Sagarana. São Paulo:

Ela alerta que perpassam pelos estudos semióticos duas concepções de narratividade: a narratividade como transformação de estados e de situações, operada por um sujeito que age no e sobre o mundo e a narratividade como sucessão de estabelecimentos e de rupturas entre um destinador e um destinatário, do que decorre a comunicação e os conflitos entre os sujeitos.

A pesquisadora busca a apreensão do sentido do texto, por meio da noção de percurso gerativo (baseado na semiótica), reconhecendo três etapas para na geração do sentido do texto, a do nível fundamental, a do nível narrativo e a do nível discursivo. Ela lança mão, assim, da análise de José Luiz Fiorin, As astúscias da enunciação (1996), esclarecendo que se trata de um estudo que aborda a dimensão da sintaxe do discurso, inserindo-se, portanto, no campo da da teoria semiótica narrativa e discursiva e que tem por objetivo, não apenas descrever as categorias de tempo, espaço e pessoa em português, mas também investigar como essas categorias são manifestadas no discurso e quais os efeitos de sentido que nele produzem.

É de posse desse aparato teórico que Gilca Seidinger buscou aprofundar o questionamento a respeito da enunciação, com vistas a embasar a investigação acerca do narrador, da focalização e do ato narrativo na trama rosiana.

A priori, porém, ela discorre um pouco acerca da trajetória do escritor Guimarães Rosa, desde de 1929, quando da publicação em O cruzeiro de um conto, “O mistério de Highmore Hall”, história que, a propósito, não agradava ao ficcionista mineiro, conforme confessou posteriormente, afirmando que escrevia friamente, pois estava interessado no prêmio em dinheiro de que estava necessitado, até a publicação de Sagarana, onde se detém para dissertar acerca da opinião crítica que despertou essa obra.

Ela chama a atenção para uma narrativa em particular escrita por Rosa em 1930 “CRONOS kai ANAGKH”, “Tempo e destino”, uma história fantástica, de inspiração faustiana que transcorre na Alemanha, durante um torneio internacional de xadrez. No dia da competição Dmitri Zviazline Dmitrioff, um jovem ucraniano, é conduzido a um castelo em ruínas onde presencia uma partida entre um homem bizarro, de aspecto demoníaco, e uma figura misteriosa de cabelos e barbas brancos e longos e de aparência sacerdotal. A partida então que eles disputam, o Tempo e o Destino, nada mais é do que a partida pelo destino da humanidade, a que o personagem ucraniano assiste o desenrolar.

Para Gilca Seidinger, essa narrativa ganha interesse especial por trazer um elemento que ressurge em “Minha gente”, o jogo de xadrez, visto como uma espécie de oráculo dentro do conto “O mistério de Highmore Hall”.

Ressaltamos ademais que, pela facilidade de visita ao IEB, onde estão os arquivos rosianos, ela obteve alguns dados acerca do processo de depuração por que passaram os contos, por meio da consulta aos originais de Sezão, ao qual se refere ocasionalmente ao longo do seu trabalho, pois, conforme afirmação da própria autora, o interesse por esse processo “está subordinado, em última instância, à questão do narrador, nosso tema maior”160. Ela descobre, por meio dessa análise que a última modificação do livro data de 1964, a partir daí, ele não sofre mais nenhuma alteração.

Em linhas gerais ela conclui que a palavra é elemento desencadear da ação principal nos relatos de Sagarana, em “Minha gente” a decisão do protagonista de voltar para a fazenda do tio e encontrar seu destino é desencadeada pela palavra cantada do papagaio caduco e reforçada pela escrita da carta de Santana.

Vê, amparada pela análise de Benedito Nunes, a viagem como fator de modificação do destino e onde a ação da providência se manifesta, em “Minha gente” revela-se um saber em constante renovação, amparado na experiência e na reflexão do protagonista-narrador, e a viagem desempenha um papel de divisor de águas na vida desse personagem, um momento de aprendizado, desencadeando mudanças fundamentais em seu modo de ser.

Gilca Seidinger observa o predomínio das cenas detalhadas, dramatizadas e a ausência de repetições, destaca que o ritmo geral da narrativa compõe-se pela alternância das cenas detalhadas e das elipses, que são somados ao predomínio do tempo presente, ou do passado imediato, conferindo, assim, a narrativa o caráter de um diário, a informação narrativa, portanto, seria abundante e pormenorizada, estando, limitada entretanto, ao conhecimento do narrador-personagem.

Em “Minha gente”, desde a primeira linha, a palavra é dada à personagem, já como narrador, pois toda a narração é de responsabilidade do protagonista. Dele parte a focalização, tudo passa por sua percepção. A focalização interna é coerente com o modo como se conta a história, com maciça presença do informador. E, uma vez que o protagonista-narrador não sabe tudo — está aprendendo —, isso remete também à instância da história, ao próprio perfil da personagem, pois o caráter da informações está naturalmente limitado por suas carências cognitivas. Isso contribui para incrementar o efeito de veracidade do relato; tal é seu efeito, que parece ter determinado,inclusive, certa leitura menos elogiosa do conto, na época da publicação.161

Desse modo, a pesquisadora explica a crítica negativa em relação a “Minha gente” pela veracidade que Guimarães Rosa tentou colocar na narrativa, limitando as informções a

160 SEIDINGER, Gilca Machado. Guimarães Rosa ou a paixão de contar: narrativas de Sagarana. São Paulo:

Scortecci, 2004. p. 23.

cognição do narrador-personagem, em nosso entendimento, isso pode até ser um elemento a mais para a depreciação do conto, mas não o fator determinante. A suposta falta de interesse social, a uma primeira vista, foi o mote principal do segundo plano relegado a “Minha gente”, via-se nesse conto, um exemplo das já desgastadas narrativas sentimentais.

Gilca Seidinger destaca, além disso, que a narração, embora se inicie como ulterior, no pretérito, a relação atemporal da narração com a História não se mantém constante, os tempos do passado vão se mesclando ao do presente de maneira lenta e sutil, ocorrendo o mesmo no que diz respeito ao espaço da enunciação narrativa, ou seja, o “aqui” da enunciação não é o mesmo o tempo todo, segundo ela “parece transformar-se e seguir o desenrolar dos acontecimentos”162.

Para Seidinger, “Minha gente” junta dois tipos de relatos memorialístico, o da narração intercalada aos fatos, do diário, e o da narração ulterior. O principal efeito disso, de acordo com ela, é permitir comunicar as experiências, passo a passo, sem que o saber posterior interfira no relato, e nada impede que esse segundo momento de aprendizado seja também representado, é o processo observado no seu decorrer, ele narra, na maior parte do tempo, enquanto aprende.

Portanto, na elaboração do diário, focalizador e narrador fundem-se, pois é o protagonista quem vê e quem fala, e, embora, o diário seja uma forma íntima, privada de elabora de experiência e não é, em princípio, destinado a tornar-se público, pois o destinatário seria apenas a própria pessoa que escreve, para evocar suas experiências, o acesso as memórias do narrador-personagem está franqueado, segundo a autora, mesmo que não esteja de mencionado explicitamente, está subtendido “e mais presente na moldura que envolve o diário, na narração ulterior que abre e fecha a narrativa”163.

Em linhas gerais, essas são as principais considerações da pesquisadora Gilca Seidinger, atualmente doutora, ela desenvolveu sua tese em outra temática, analisou a tradução de Tutaméia para o alemão.

Desejamos, deste modo, chamar a atenção para título do trabalho de Seidinger, Guimarães Rosa ou a paixão de contar, inspirada por uma frase de Antonio Candido, conforme já mencionamos neste capítulo. A segunda leitura que trataremos neste tópico, a de Sílvio Holanda, lançou mão da mesma estratégia para intitular sua dissertação, Rapsódia

162 SEIDINGER, Gilca Machado. Guimarães Rosa ou a paixão de contar: narrativas de Sagarana. São Paulo:

Scortecci, 2004. p. 170.

sertaneja, rapsódia foi um termo utilizado por Álvaro Lins164, ao que o pesquisador agregou a palavra sertaneja.

Ao contrário de Gilca Seidinger, ele traça uma análise acerca dos nove contos de Sagarana e não apenas dois, ressaltando o papel do leitor e o da história na análise e interpretação crítica. Discutindo, ainda, sobre o incontornável problema do regionalismo e observando, de maneira sucinta, alguns aspectos formais e temáticos responsáveis pelo caráter inovador de Sagarana, que são retomados e expandidos na interpretação de cada texto em particular.

No que se refere ao capítulo de análise dedicado à narrativa “A volta do marido pródigo”, o pesquisador atribui a característica de neopícaro a Lalino, traçando considerações, baseado em Mario González, acerca do romance picaresco. Ele defende, assim, a leitura do personagem Lalino como um pícaro, discorrendo acerca das particularidades de suas atribuições que o fazem pensar nesse sentido.

Lalino finge, como o pícaro espanhol, trabalhar; usa da sua picarice para fugir ao cansaço advindo do trabalho [...] Lalino, excluindo o trabalho, tenta convencer seus companheiros a fazerem o mesmo. A conversa aparece como desculpa para Lalino largar o serviço. [...] Embora fugindo ao trabalho, que não aceita como meio válido de ascensão social, Lalino tem sonhos de proprietário.165

Prossegue sua análise afirmando que a palavra em Lalino está subordinada ao fingir, que a própria ideia de teatro presente no conto conota esse fingimento, entendendo que é por meio da lábia e da trapaça que esse personagem abala os valores da disciplina.

Ademais, Sílvio Holanda reforça sua ideia de que Lalino representa o herói pícaro, pela comparação desse pesonagem a um outro, o Guzmán, de Guzmán de Alfarache, livro de Mateo Alemán.

A referência à possível venda da esposa por Lalino abre um importante espaço intertextual através da picaresca a que já nos referimos. Como Guzmán, personagem de Guzmán de Alfarache, livro de Mateo Alemán, Lalino cede a outros sua mulher por dinheiro. Aceita a hipótese da venda por Lalino, resta a considerar o motivo de tal decisão. Guzmán o faz premido pela miséria; Lalino precisa de dinheiro para a viagem em que pretende conhecer o amor das odaliscas urbanas; há, portanto, uma motivação sexual no seu comportamento. O tema da viagem pode ser relacionado, ainda, à

164 “Contos, novelas, histórias estes capítulos de Sagarana? Antes de tudo, são rapsódias, cantos em grande

forma que trazem no seu seio a representação poética do espírito e da realidade de uma região”. (Grifo nosso). LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 263.

165 HOLANDA, Sílvio Augusto de Oliveira. Rapsódia Sertaneja: leituras de Sagarana. Belém, 1994.

picaresca, dado o caráter itinerante do herói pícaro.166

Salientando em seguida que o estado permanente do pícaro é a aventura, e que o fingimento é a sua arma, aspecto da sua personalidade que ele usa para resolver as questões políticas, o pesquisador continua descrevendo e analisando a história a medida em que a expõe.

Outra análise interessante que traça acerca de “A volta do marido pródigo” e que desejamos destacar aqui diz respeito ao doutrina moral que o sentido parabólico traz ao conto, mais especificamente a temática da queda e da salvação.

Em relação à “Minha gente, o título do capítulo para esse conto chama logo a atenção: “Eros e anankê”, entretanto, Sílvio Holanda não inicia esclarecendo o título, mas, assim como no capítulo referente a “Volta do marido pródigo”, principia apresentando a narrativa ao leitor e comentando a respeito da partida de xadrez e do personagem que, de alguma forma, está ligado a esse jogo, Santana.

Ressaltamos a comparação que o pesquisador estabelece entre o capiau e Sócrates. A certa altura do conto indagado acerca da beleza dos cararás, o sertanejo responde “coisa que não presta não pode ter nenhuma beleza”167, reduzindo, assim, o conceito de beleza ao de utilidade. Para validar a comparação, cita o referido filósofo, “em suma, as coisas são belas e boas para o uso a que se destinam”168. O fato de o capiau discutir o conceito de beleza quebra, na opinião de Sílvio Holanda, a imagem de rudeza com a qual estávamos acostumados pela ficção nordestina de 1930, pois o capiau mineiro é capaz de refletir sobre o belo.

Passa então a analisar um pouco do incontornável cenário político que se apresenta no quinto conto de Sagarana, para ele, “Minha gente” mostra-nos toda a estrutura do clientelismo político que, embora não esteja denunciado de maneira explícita, como no romance nordestino, está incrustado em seus alicerces. O saber urbano que detém o narrador é instrumentalizado em função política clientelista, materializada na narrativa pelo personagem Tio Emílio, que pede ao sobrinho que escreva cartas aos seus correligionários.

Somente depois de uma ampla relexão acerca do conto é que o título que traz nome ao capítulo é esclarecido, o pesquisador acredita que anankê (destino), operando movimentos de avanço e de recuo como em uma partida de xadrez, também comanda eros (amor), “impondo- se sobre as decisões individuais da pessoa, que não deve buscar no amor nem direção nem

166 HOLANDA, Sílvio Augusto de Oliveira. Rapsódia Sertaneja: leituras de Sagarana. Belém, 1994.

Dissertação de mestrado (Teoria Literária), Universidade Federal do Pará. p. 59-60.

167 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Universal, 1946. p. 168. 168 XENOFONTES apud HOLANDA, Sílvio Augusto de Oliveira. Op. cit., p. 97.

destino”169.

Segundo ele, em “Minha gente”, assim como em “A volta do marido pródigo”, a casualidade no plano da narração é desviada pela ideia de destinação. Os personagens estariam envolvidos pelas malhas do destino.

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