• Nenhum resultado encontrado

A Dulcinea Inventada por Dom Quixote.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 137-141)

5 AS VÁRIAS DULCINEAS

5.1 A Dulcinea Inventada por Dom Quixote.

Se o sábio historiador Cide Hamete Benengeli só nos tivesse revelado o Quixote de 1605 não haveria dúvidas: a senhora do cativo Cavaleiro seria a sem par Dulcinea do Toboso inventada pelo mais famoso filho da Mancha, que por outro nome atende a Cavaleiro da Triste Figura332.

“Assim, limpas as suas armas, feita do morrião celada, posto o nome ao rocim, e confirmando-se a si próprio, julgou-se inteirado de que nada mais lhe faltava, senão buscar uma dama de quem se enamorar; que andante cavaleiro sem amores era árvore sem folhas nem frutos, e corpo sem alma”333.

No capítulo anterior, mais especificamente em 4.1, falamos da invenção de Dulcinea do Toboso por parte do Protagonista. Coerente com os livros de cavalaria, Dom Quixote não é unicamente andante, também, enamorado; precisa de uma dama a quem oferecer as vitórias conquistadas pelo valor do seu forte braço. A historia é bem conhecida: dom Quixote decide que sua senhora será uma suposta princesa, segundo o narrador, uma lavradeira de um lugar perto do seu (ou céu); dá-lhe o título de senhora dos seus pensamentos (não do seu corpo); e a

332

“don Quijote preguntó a Sancho que qué le había movido a llamarle el Caballero de la Triste Figura, más entonces que nunca.

-Yo se lo diré -respondió Sancho-: porque le he estado mirando un rato a la luz de aquella hacha que lleva aquel malandante, y verdaderamente tiene vuestra merced la más mala figura, de poco acá, que jamás he visto; y débelo de haber causado, o ya el cansancio deste combate, o ya la falta de las muelas y dientes.” (I, 19).

333

“Limpias, pues, sus armas, hecho del morrión celada, puesto nombre a su rocín y confirmándose a sí mismo, se dio a entender que no le faltaba otra cosa sino buscar una dama de quien enamorarse; porque el caballero andante sin amores era árbol sin hojas y sin fruto y cuerpo sin alma.” (I, 1).

designa pelo nome (digno de princesa e grã-senhora) que todos nós bem conhecemos: Dulcinea do Toboso (nome músico, peregrino e significativo)334.

Uma vez tendo dama, “se lançou ao campo, com grandíssimo contentamento e alvoroço, de ver com que felicidade dava princípio ao seu bom desejo”: “os agravos que pensava desfazer, sem-razões que endireitar, injustiças que reprimir, abusos que melhorar e dívidas que satisfazer”335. E assim, antes mesmo de começar com suas peripécias, ia andando pelos campos da Mancha dizendo ao vento, como um autêntico enamorado:

“-Ó Princesa Dulcinéia, senhora deste cativo coração, muito agravo me fizestes em despedir-me e vedar-me com tão cruel rigor que aparecesse na vossa presença. Apraza-vos, senhora, lembrar-vos deste coração tão rendidamente vosso, que tantas mágoas padece por amor de vós.

E como estes ia tecendo outros disparates, todos pelo teor dos que havia aprendido nos seus livros, imitando, conforme podia, o próprio falar deles; e com isto caminhava tão vagaroso, e o sol caía tão rijo, que de todo lhe derretera os miolos se alguns tivera”336.

Estando o enamorado Cavaleiro sozinho em Serra Morena (Sancho tinha ido a Toboso), chega a afirmar que sua Senhora é virgem, motivo pelo qual não precisa ter ciúme dela, como teve Roldão o furioso337. Em outra ocasião, quando Dom João pergunta a Dom Quixote se tem novidades da sua Amada, se estava casada ou grávida, o Cavaleiro insiste em

334

“Y fue, a lo que se cree, que en un lugar cerca del suyo había una moza labradora de muy buen parecer, de quien él un tiempo anduvo enamorado, aunque, según se entiende, ella jamás lo supo, ni le dio cata dello. Llamábase Aldonza Lorenzo, y a ésta le pareció ser bien darle título de señora de sus pensamientos; y, buscándole nombre que no desdijese mucho del suyo, y que tirase y se encaminase al de princesa y gran señora, vino a llamarla Dulcinea del Toboso, porque era natural del Toboso; nombre, a su parecer, músico y peregrino y significativo, como todos los demás que a él y a sus cosas había puesto.” (I, 1).

335

“Hechas, pues, estas prevenciones, no quiso aguardar más tiempo a poner en efeto su pensamiento, apretándole a ello la falta que él pensaba que hacía en el mundo su tardanza, según eran los agravios que pensaba deshacer,

tuertos que enderezar, sinrazones que emendar, y abusos que mejorar y deudas que satisfacer. Y así, sin dar parte a persona alguna de su intención, y sin que nadie le viese, una mañana, antes del día, que era uno de los calurosos del mes de julio, se armó de todas sus armas, subió sobre Rocinante, puesta su mal compuesta celada, embrazó su adarga, tomó su lanza, y, por la puerta falsa de un corral, salió al campo con grandísimo contento y alborozo de ver con cuánta facilidad había dado principio a su buen deseo.” (I, 2).

336

“Luego volvía diciendo, como si verdaderamente fuera enamorado: -¡Oh princesa Dulcinea, señora deste cautivo corazón!, mucho agravio me habedes fecho en despedirme y reprocharme con el riguroso afincamiento de mandarme no parecer ante la vuestra fermosura. Plégaos, señora, de membraros deste vuestro sujeto corazón, que tantas cuitas por vuestro amor padece.

Con éstos iba ensartando otros disparates, todos al modo de los que sus libros le habían enseñado, imitando en cuanto podía su lenguaje. Con esto, caminaba tan despacio, y el sol entraba tan apriesa y con tanto ardor, que fuera bastante a derretirle los sesos, si algunos tuviera.” (I, 2).

337

“Porque mi Dulcinea del Toboso osaré yo jurar que no ha visto en todos los días de su vida moro alguno, ansí como él es, en su mismo traje, y que se está hoy como la madre que la parió; y haríale agravio manifiesto si, imaginando otra cosa della, me volviese loco de aquel género de locura de Roldán el furioso.” (I, 26).

que está “donzela”, ou seja, virgem e solteira338. Curiosa essa afirmação, pois, por exemplo, Oriana teve relações com Amadis antes de contrair casamento com o cavaleiro, a virgindade não era necessária para a dama de um cavaleiro.

No episódio da pastora Marcela, antes do enterro de Grisóstomo, Dom Quixote satisfaz a curiosidade de Vivaldo. O enamorado Cavaleiro faz uma descrição minuciosa da sua imaginada Amada:

“Só posso dizer, em resposta ao que tão respeitosamente se me pede, que o seu nome é Dulcinéia, sua pátria Toboso, um lugar da Mancha; a sua qualidade há-de ser, pelo menos, Princesa, pois é Rainha e senhora minha; sua formosura sobre-humana, pois nela se realizam todos os impossíveis e quiméricos atributos de formosura, que os poetas dão às suas damas; seus cabelos são ouro; a sua testa campos elísios; suas sobrancelhas arcos celestes; seus olhos sóis; suas faces rosas; seus lábios corais; pérolas os seus dentes; alabastro o seu colo; mármore o seu peito; marfim as suas mãos; sua brancura neve; e as partes que à vista humana traz encobertas a honestidade são tais (segundo eu conjecturo) que só a discreta consideração pode encarecê-las, sem poder compará-las”339.

Eis a Dulcinea inventada por Dom Quixote: apenas um nome, um disparate, uma exageração. A Dulcinea do Quixote de 1605 é uma espécie de reminiscência dos livros de cavalaria. Se para Platão a reminiscência é de outras vidas, para um cavaleiro (que só ganha vida nos livros de cavalaria) só pode ser dos Amadis, Palmeirim, Cavaleiro do Febo, etc. Aliás, o próprio Enamorado confesa que seu amor tem sido sempre platônico, por exemplo, quando lhe pede a Sancho que leve a famosa carta a Dulcinea:

“E o ir a coisa escrita por mão de outrem pouco importa, porque, se bem me lembra, a Dulcinéia não sabe escrever nem ler, nem em toda a sua vida viu nunca letra nem carta minha, porque os meus amores e os dela têm sido sempre platônicos, sem se atreverem a mais que a um olhar honesto; e ainda isso tão de longe em longe, que me atreverei a jurar-te com verdade que em doze anos (que tantos há que eu lhe quero mais que à luz destes olhos que a terra há-de comer) não a tenho visto quatro vezes; e até poderá

338

“En el discurso de la cena preguntó don Juan a don Quijote qué nuevas tenía de la señora Dulcinea del Toboso: si se había casado, si estaba parida o preñada, o si, estando en su entereza, se acordaba -guardando su honestidad y buen decoro- de los amorosos pensamientos del señor don Quijote. A lo que él respondió:

-Dulcinea se está entera, y mis pensamientos, más firmes que nunca; las correspondencias, en su sequedad antigua; su hermosura, en la de una soez labradora transformada.” (II, 59).

339

“sólo sé decir, respondiendo a lo que con tanto comedimiento se me pide, que su nombre es Dulcinea; su patria, el Toboso, un lugar de la Mancha; su calidad, por lo menos, ha de ser de princesa, pues es reina y señora mía; su hermosura, sobrehumana, pues en ella se vienen a hacer verdaderos todos los imposibles y quiméricos atributos de belleza que los poetas dan a sus damas: que sus cabellos son oro, su frente campos elíseos, sus cejas arcos del cielo, sus ojos soles, sus mejillas rosas, sus labios corales, perlas sus dientes, alabastro su cuello, mármol su pecho, marfil sus manos, su blancura nieve, y las partes que a la vista humana encubrió la honestidad son tales, según yo pienso y entiendo, que sólo la discreta consideración puede encarecerlas, y no compararlas.” (I, 13).

ser que destas quatro vezes nem uma só ela em tal reparasse; tamanho é o recato e encerro com que seu pai Lourenço Corchuelo, e sua mãe Aldonça Nogales a criaram.”340.

Na Segunda Parte, Dom Quixote chega a reconhecer que está enamorado só porque todo cavaleiro andante tem de sê-lo e, mesmo assim, seu amor é platônico e não vicioso (ou seja, não é carnal)341. Assim como na Filosofia Platônica a beleza dos corpos é o inicio da ascensão às Idéias e o verdadeiro fim é o Bem342, a flor, nata e espuma da andante cavalaria está mais preocupado em fazer o bem a todos e o mal a ninguém343. Assim como o Sócrates do Banquete, nosso Cavaleiro não está interessado em aventuras eróticas (corporais), chegando ao cúmulo de fugir das mulheres, como foge o amendrontado Sancho de um javali ou Sócrates de Alciviades. Para Martínez Bonati, a invenção de Dulcinea é a saída que Dom Quixote encontra para proteger-se da aventura que mais teme (talvez a única)344.

Deste modo, a Dama do nosso anacrônico Cavaleiro não passa de um ideal, uma perfeição que só é possível encontrar nessas “outras vidas”, “outros mundos”, outros livros. Dulcinea é como um número para Platão, do qual é possível falar e é perfeitamente compreensível, porém não existe neste mundo, nesta vida, neste livro, nesta mancha. Por mais que procuremos, por exemplo, o número “um” jamais o encontraremos, como não encontraremos número nenhum. Por isso, ele a procura e nunca a encontra; ele a sente mas

340

“Y hará poco al caso que vaya de mano ajena, porque, a lo que yo me sé acordar, Dulcinea no sabe escribir ni leer, y en toda su vida ha visto letra mía ni carta mía, porque mis amores y los suyos han sido siempre platónicos, sin estenderse a más que a un honesto mirar. Y aun esto tan de cuando en cuando, que osaré jurar con verdad que en doce años que ha que la quiero más que a la lumbre destos ojos que han de comer la tierra, no la he visto cuatro veces; y aun podrá ser que destas cuatro veces no hubiese ella echado de ver la una que la miraba: tal es el recato y encerramiento con que sus padres, Lorenzo Corchuelo, y su madre, Aldonza Nogales, la han criado.” (I, 25).

341

“yo soy enamorado, no más de porque es forzoso que los caballeros andantes lo sean; y, siéndolo, no soy de los enamorados viciosos, sino de los platónicos continentes. Mis intenciones siempre las enderezo a buenos fines, que son de hacer bien a todos y mal a ninguno; si el que esto entiende, si el que esto obra, si el que desto trata merece ser llamado bobo, díganlo vuestras grandezas, duque y duquesa excelentes.” (II, 32).

342

Platão, O Banquete. Cf. Reyes Celedón, “Do Eros nos ensinamentos de Diotima de Mantinéia”.

343

“-¡Dios te guíe y la Peña de Francia, junto con la Trinidad de Gaeta, flor, nata y espuma de los caballeros andantes! ¡Allá vas, valentón del mundo, corazón de acero, brazos de bronce! ¡Dios te guíe, otra vez, y te vuelva libre, sano y sin cautela a la luz desta vida, que dejas por enterrarte en esta escuridad que buscas!” (II, 22).

344

“La invención de Dulcinea es, pues, la autoprotección del hidalgo ante la única aventura caballeresca que teme: la aventura erótica (pues el triunfo no es allí cosa de fuerza de voluntad)”. Martínez Bonati, El ‘Quijote’ y

não a vê; ele lhe fala e esta nunca o escuta; ele a cheira porém não a reconhece345; contudo, é impossível tocá-la, pois corpo não tem. Dom Quixote, então, a designa.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 137-141)