• Nenhum resultado encontrado

O DURADOURO MITO DE TURANDOT NA ESCRITA DE GOZZI E BRECHT

Se O servidor de dois patrões de Goldoni é o primeiro título que vem à mente quando se fala em dramaturgia influenciada pela commedia dell'arte, a tragicomédia de Carlo Gozzi (1720- 1806) Turandot encenada pela primeira vez em 1761, também teve uma considerável sobrevida devido a suas frequentes montagens e adaptações por parte de outros dramaturgos, além de ter recebido versões em ópera. A simplicidade da fábula de Gozzi, e sua mensagem ingênua ao mundo, parece ter repercutido fundo na mente de pessoas de países e gerações diferentes. Essa mensagem poderia ser resumida em "o amor vence todos os obstáculos". Para as mentes mais cínicas, a moral dessa fábula pode ser carregada de ironia, ou com o subtexto que for mais interessante. Essa é a vantagem da fábula: mudando uma coisa aqui e outra ali, ela se torna veículo do que bem entendermos.

Gozzi e a primeira de muitas Turandots

Em linhas gerais, Turandot tem o seguinte enredo: um príncipe sem reino e sem fortuna, Calaf, chega incógnito a Pequim, onde encontra o antigo servo de sua família, Barach. Através dele, Calaf fica sabendo da cruel princesa Turandot, a filha do imperador Altoum, que não aceita se casar com nenhum dos príncipes que vêm do mundo afora para pedir sua mão. Ela exige que os pretendentes respondam a três enigmas, e quem não sabe a resposta é decapitado. Ou seja, é uma princesa por quem os homens literalmente perdem a cabeça. Tanto que a cena inicial tem por cenário as cabeças cravadas em lanças. Numa visão mais contemporânea, esse ódio literalmente assassino aos homens por parte de Turandot, pode ser lido de várias formas, incluindo conjecturas acerca da sexualidade da princesa, e demais razões de sua rebeldia em relação ao casamento.

Calaf, ao ver um retrato dela, obviamente se apaixona num instante. Personagens como ele tem a tendência de se apaixonar por dever. Um príncipe desterrado não poderia se apaixonar por ninguém que não fosse a altíssima princesa do trono imperial chinês. Também, como príncipe, tem o mesmo superpoder de Édipo - responder enigmas. Desse modo, Calaf adivinha os três enigmas. Turandot, enfurecida, implora ao seu pai, o imperador Altoum, para que não seja obrigada a se casar. Calaf, compadecido, resolve dar uma alternativa a ela, lançando de volta outro enigma: caso

ela consiga descobrir seu nome, não há casamento e ele será executado como os outros. Turandot manda torturar o servo de Calaf, Barach, que não revela o nome. Porém, sua mulher Schirina entrega o nome. Turandot revela então o nome diante da corte, e quando Calaf ergue o punhal para se matar, ela o impede e realiza seu primeiro gesto de bondade.

Uma das características do modo em que Gozzi apresenta essa fábula é o sutil equilíbrio entre o trágico e o cômico. Por exemplo, durante o primeiro embate entre Calaf e Turandot, a cada enigma proposto, Pantalone e Truffaldino torcem por Calaf com toda a coloquialidade e senso de humor típicos das máscaras da commedia dell'arte, como pessoas que não sabem se portar num momento solene. Eles atuam através da tradicional "quebra cômica", quando uma situação muito séria é interrompida por um comentário, numa brusca volta à realidade. Também servem para conduzir os sentimentos do público, pois falam e se identificam como nós, ao torcer, comentar, e sentir medo e alegria. E o equilíbrio entre o trágico e cômico também se dá na mistura entre alto e baixo, entre a altivez de Turandot e Calaf, e a humildade de Barach, Pantalone e Truffaldino. É um mundo estratificado, representado pela hierarquia entre o cômico e o sério.

E na prática isso se expressa através de dois registros nos diálogos: o primeiro são os hendecassílabos brancos, nas falas dos personagens nobres, como Calaf, Turandot e Altoum. É a linguagem não cotidiana, maior que a vida. Esse tipo de verso, hendecassílabo (onze sílabas), é tão característico da lírica e do drama italiano, quanto é o pentâmetro iâmbico inglês de Shakespeare, (um verso de cinco pés) como é o alexandrino (doze sílabas) do teatro clássico francês. Dessa forma, Gozzi se protegia dos detratores da commedia dell'arte adornando-a com um verso que remetia aos maiores nomes da literatura de seu país.

Já o segundo registro em que os personagens falam é um misto de falas no vêneto atravessado de Pantalone, em prosa, e para Truffaldino, Gozzi decidiu não escrever a maior parte das falas, mas somente descrever suas ações e o que deveria dizer, na tradição do canovaccio. Por exemplo, "Truffaldino entra alegre, canta e faz tais e tais coisas, diz tal coisa para fulano...". Esse modo de escrita, intrinsicamente ligada à tradição do improviso da commedia dell'arte irrompe em meio aos versos e falas em prosa. Gozzi escreveu esses trechos em canovaccio para especialistas no improviso, como o capocomico Antonio Sacco. Daí podemos imaginar o ecletismo do elenco, onde havia grandes cômicos e improvisadores, mas também quem soubesse atuar no empostado estilo da tragédia.

Entre tantas adaptações que esse texto de Gozzi recebeu destacam-se as de Schiller e Brecht, e versões operísticas, pela mão de compositores como Busoni e Puccini. A tradição de

adaptar Turandot aos palcos de diferentes períodos foi mantida por encenadores como Goethe, Max Reihnardt, e principalmente, na montagem russa de Vakhtangov, que permaneceu em cartaz por décadas, como o Arlequim servidor de dois patrões de Strehler. Nesse capítulo vou me ater mais à versão original de Gozzi, e a irreverente resposta de Brecht, em Turandot, ou o congresso das

lavadeiras (1953). O método que vou empregar é o da Literatura Comparada que segundo

Carvalhal "designa uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas" (2006, p. 5). Da mesma forma que o conflito dramático propulsiona uma cena, o conflito resultante de duas escritas inspiradas pelo mesmo mito (aqui no sentido aristotélico, como o plot de uma peça de teatro) pode resultar em um diálogo que ensina bastante sobre a adaptação, e a paródia como instrumento de construção dramatúrgica, especialmente em se tratando da versão de Brecht, mas também do que Gozzi fez em relação a sua fonte.

Justamente porque a fábula não é uma invenção de Gozzi. O mito da princesa Turandot foi encontrado por Gozzi numa coleção de contos persas traduzidos por Pétis de la Croix, sendo que o conto em questão, Turan-Dokht (a filha de Turan) é de autoria do poeta persa Nizami Ganjavi (1141-1209). Provavelmente Nizami recolheu a história de uma tradição oral, pelo caráter de fábula, com elementos típicos de conto popular: príncipe só no mundo, enigmas, e um final feliz.

O motivo do príncipe errante e os enigmas podem também ser encontrados no mito de Édipo. Com o final tão diverso (Calaf conquista o amor de Turandot) ao de Édipo (o príncipe descobre que matou o pai e se casou com a mãe), Turandot pode ser compreendida com uma resposta cômica, o oposto do Édipo-Rei de Sófocles. Se nesse último os enigmas respondidos a Esfinge (parte do mito, e da backstory da tragédia ática) conduzem ao terrível destino de Édipo, na comédia de Gozzi a resposta dos três enigmas ocorre em cena, e conduzem ao final feliz do casamento e do amor. Nos dois casos, os heróis conseguem responder os enigmas, que representariam as atribulações da vida. E Édipo, triunfante ao responder suas questões, ganha o que sempre quis, e isso leva à sua destruição. Calaf também responde corretamente, e a comédia termina no seu momento de triunfo. Talvez a tragédia o aguarda em seu casamento com Turandot - o que, a julgar pelo caráter da princesa (vingativa e assassina), poderia muito bem ser um cenário digno de uma tragédia grega. Poderíamos mesmo imaginar uma tragédia intitulada Turandot II, de contornos strindberguianos sobre a vida conjugal de Turandot e Calaf, obviamente terminado em morte por decapitação.

O motivo da decapitação é apresentado na cena inicial, onde vemos as lanças despontando sobre as muralhas do palácio, cada uma com uma cabeça fincada. Quem for dirigir

essa peça pode escolher em apresentar essa imagem de modo trágico, ou cômico, com um toque absurdo. Cabeças nesse estado podem remeter ao teatro de animação, num exagero cômico, não- realista. E voltando às considerações anacrônicas, certamente irrelevantes a Gozzi, mas que podem interessar às plateias contemporâneas, poderia se dizer que essas cabeças decapitadas evocam a castração. Como uma alegoria para a misandria de Turandot, as cabeças são expostas em frente ao palácio onde ela mora, num sangrento tributo a sua virgindade.

Logo na cena inicial do Ato I (p.18) Barach indica as cabeças decapitadas, num primeiro aviso a Calaf e ao público, do perigo representado pela cruel Turandot. Por esse viés, essa história parece uma variação do mito de Perseu: "herói que derrota o monstro e se casa com a princesa", presente em tantas culturas, e cujas reverberações povoam os blockbusters do cinema hollywoodiano. A bizarra variação seria: "herói derrota o monstro e se casa com ele!". Turandot seria então o mito de Perseu levado à suas últimas consequências, onde o guerreiro desposa sua conquista.

No diálogo inicial entre Barach e Calaf nos inteiramos que ambos estão em Pequim com nomes falsos: ambos são sobreviventes de um reino dizimado pela conquista do imperador. O fato do nome de Calaf ser mantido em segredo é importante para o desenvolvimento do enredo, pois será a resposta ao seu enigma. Já no caso de Barach, ficamos sabendo que ele sobrevive com o dinheiro de uma viúva. Sua condição de amasiado se contrapõe à paixão de Calaf, numa oposição entre classes sociais. Os pobres se juntam por praticidade, e os nobres se apaixonam para conquistar o trono. E na maneira em que dialogam se percebe suas personalidades: Calaf é um personagem calcado no dever, na nobreza típica do innamorato. Barach, no entanto, demonstra as súbitas guinadas de emoção da commedia: num instante está feliz a não poder, por reencontrar um de seus antigos patrões, e em outro instante está chorando copiosamente ao saber de sua triste sorte. Outra característica interessante desse encontro inicial entre Calaf e Baruch é a imagem quase beckettiana de dois mendigos, sendo um príncipe e outro servo. E o servo chora a mendicância do príncipe.

Chega outro servo, Ismael, e Calaf vê o retrato de Turandot. Já estamos na Cena III, e Turandot é sempre o assunto principal. E assim, um personagem que ainda não entrou em cena, não para de crescer na imaginação do público. A velocidade com o que o enredo se desenrola é peculiar aos gêneros considerados menores no drama: o melodrama, a farsa, o vaudeville. Não há tempo para um personagem se apaixonar aos poucos, ao longo de atos com verossimilhança psicológica. Só a ação de olhar um retrato é bastante para Calaf estar pronto para morrer por amor. Seria possível inclusive interpretar essa decisão da boca para fora. Calaf, como príncipe, deve tentar o mesmo que

os demais príncipes decapitados tentaram. E assim, entra um carrasco ensanguentado, para fincar mais uma cabeça (o patrão de Ismael). Temos então uma justaposição de imagens, representando o Amor e a Morte: um príncipe apaixonado ao lado de um carrasco portando a cabeça de um príncipe morto.

O ato I se encerra com a promessa de Barach de não revelar o nome de Calaf. Entra Schirina, a viúva que sustenta Barach, e os dois compõe uma cena clássica de pai e mãe chorando a partida do filho em direção à aventura, um típico desfecho de primeiro ato, com o herói partindo em direção ao seu destino. E assim, para protegê-lo, Barach e Schirina fazem oferendas a Confúcio, num estranho sincretismo de Gozzi, que parece imaginar um modo católico de reverenciar o sábio chinês, como se este fosse um santo italiano.

Começa então o Ato II, na primeira aparição da escrita em canovaccio. Entram em cena Truffaldino e Brighella, que devia ser seu "escada", ou seja, a vítima das piadas, e quem as prepara. A cena é emoldurada através de uma montagem de cena, pois os personagens carregam móveis, numa escolha que parece bem contemporânea. Uma transição de cena assim, inserida no enredo, é como uma escolha de direção inserida na dramaturgia. Enquanto vão realizando essa transição, eles discutem a situação da princesa, numa competição de concetti, um recurso retórico barroco, e bastante comum na commedia dell'arte. Em geral é assim: A diz isso, B disso isso com algo a mais, e por assim adiante. O conflito se desenvolve a partir de quem terá mais presença de espírito, intensificando-se até os dois passarem a trocar insultos. Certamente, isso devia ser um momento para dizer as maiores baixarias, impublicáveis naquele tempo, mas que Gozzi sugere através da escrita em canovaccio, simplesmente ordenando que eles se insultem. Para insuflar a imaginação dos improvisadores, somos informados que nessa tragicomédia Truffaldino é eunuco; o que faz sentido, estando ele a serviço do trono imperial chinês, e na proximidade da casta Turandot.

Na cena seguinte (p.30), a Cena 2 do Ato II, ocorre a primeira entrada de Pantalone. Trata-se de um momento de choque cultural: ele diz algo como "se eu contasse essa história em Veneza...", como bom bairrista veneziano que ele é. Nesse caso, a escrita não é mais em

canovaccio, nem nos hendecassílabos dos Ato I. Pantalone fala em vêneto, sua língua natal, e em

prosa. Ninguém explica como Pantalone foi parar na China. Mas como os personagens de desenho animado, feito Pernalonga, as máscaras podem estar em qualquer lugar, exercendo qualquer profissão, e nas situações mais inesperadas.

Em seguida, na cena 3, Calaf se apresenta diante do imperador, Altoum, e se mostra disposto a responder os enigmas. Altoum se simpatiza pelo jovem, e tenta dissuadi-lo com sábios

conselhos, que são contrapostos com as bobagens de Pantalone. É uma construção de cena baseada na quebra cômica, quanto mais sério e digno for Altoum, mais boboca e sem noção será Pantalone. É também momento onde se articula a estrutura de alto e baixo, de trágico e cômico, que define a própria escolha de Gozzi de designar seu texto como tragicomédia, e para justificar o convívio de personagens como Calaf e Turandot com as máscaras de Truffaldino e Pantalone.

Turandot entra em cena precedida por uma grande marcha, uma pantomima, que explica a atração exercida por essa peça de teatro nos compositores de ópera. A grandiosidade dessas cenas, e a presença de tantos atores em cena, remetem a um palco de grandes proporções, como se dá nas casas de ópera. Há pouco espaço ao íntimo, o que se sobressai é a monumentalidade dos personagens e cenários. Quando a princesa fala pela primeira vez, ela usa o "Quem é que...", numa linguagem de Esfinge. Sua apresentação é de personagem maior que a vida, sendo descrita como fria, gélida, e demais comparações que evocam frieza. É, portanto, um personagem não-realista. Sua distância emocional com os demais personagens é tão marcada, que mesmo num texto onde quase não há rubrica, em certo trecho Gozzi não resistiu e escreveu um "tom acadêmico", para um momento onde Turandot explica a razão de seu proceder.

No momento em que os enigmas são propostos a Calaf, instaura-se uma situação de jogo. Há o suspense do "quem vai ganhar", com direito a torcida de Pantalone e Tartaglia, que se apoiam na empatia do público, que já está desde o início do texto ao lado de Calaf. Nessa cena onde há tantos personagens em cena, ocorre o recurso do "ouvido seletivo" das máscaras. Os personagens pensam em voz alta, ou comentam entre si sem que os demais escutem, ou falam para que todos ouçam. Para criar uma cena com tantos matizes há também uma salada linguística: versos, e quebras de humor em prosa, apartes e tiradas. Mais adiante, em outra cena, há inclusive um momento em que há um diálogo misto em prosa e canovaccio. Trufaldino fala com outros personagens, que recebem falas em prosa para dialogar com Truffaldino que improvisa.

Chega então o grande momento em que Calaf deve enfrentar a Esfinge/Turandot. Ela se desvela diante dele, e acontece então o grande twist. O enigma agora é Calaf. Ele desafia todos a adivinhar seu nome. Na ópera de Giacomo Puccini, esse momento recebeu a ária Nessun dorma, que é talvez a ária de ópera mais famosa que existe, ouvida em Copas do mundo, filmes e comerciais de TV. A ironia de um príncipe, cujo nome por definição todos conhecem, manter seu nome em segredo, funciona como um interessante paradoxo. Fica clara então a ideia que está por trás desse mito: o enigma é o amor. A incompreensão do que é o Outro, é que alimenta o amor. Turandot só se renderá, depois de estar por dias obcecada em saber qual o nome da pessoa que

desvendou os seus enigmas. A proposição de um enigma, por parte de Calaf, não deixa de ser uma estratégia de sedução.

Começa o terceiro ato com cenário novo, num primeiro momento "doméstico", guardadas as devidas proporções. Acontece então uma cena de dama com criada, o recurso típico de Racine e da tragédia neoclássica francesa. A dama discorre em intermináveis versos sobre o que se passa em seu íntimo, ao ouvido paciente da criada. É um recurso de exposição dramática: o público fica sabendo o que sente um personagem, através de um momento de intimidade. Se a criada é paga para ouvir, o público paga para ouvir, e participar através de empatia dos amores e das vidas ficcionais. Nesse momento nos damos conta de como o ódio desmesurado de Turandot está por transbordar, e se reverter em amor. Há também um verso protofeminista proferido por Turandot "imaginando-me mulher sujeita ao homem"28.

Outro grande papel feminino é o de Adelma, a princesa reduzida à escravidão, e que ama Calaf. Ela é vítima desses amores de ópera, completamente irreais. Em certo momento ela diz um verso metateatral "uma infeliz atriz que erra em cena"29, um tipo de alusão que se ouve da boca da

Cleópatra de Shakespeare, em Antônio e Cleópatra. Adelma representa o oposto de Turandot, por isso pode ser um personagem de grande poder de sedução. Se Turandot é constantemente comparada com o gelo, Adelma é o fogo em cena. Ela não precisa passar pela "conversão" que Turandot passa, da insensibilidade ao sentimento. Notadamente, apesar de Adelma ser nobre, ela se encontra escravizada. E assim se mantém mais próxima aos personagens nobres, sem falar ou se portar como uma Schirina. Desse modo, Turandot, Calaf e Adelma formam um triângulo amoroso que se estende até a última cena.

Se o Ato II é um ato construído em cima do suspense, causada pela proposição e resposta dos enigmas, o Ato III é um ato de investigação (Turandot procura o nome oculto de Calaf). Desse modo, os dois atos são baseados em duas estruturas recorrentes do drama, ambas utilizadas para prender a atenção do espectador. Dentro da estrutura geral da tragicomédia, que se apoia na oposição de extremos (nobre e servo, gelo e fogo, cômico e trágico, amor e ódio), cada ato traz um elemento dramático central: o primeiro a exposição, o segundo o suspense, o terceiro a investigação. No quarto ato temos a "catástrofe", e no quinto a resolução. Portanto, a construção do drama de Gozzi, apesar de não ser clássica ao modo do neoclassicismo francês (onde há exigências extremas de unidade de tempo, lugar e ação), é clássica no sentido de expor uma história em cinco atos (como proposto por Horácio), da exposição do problema inicial a sua conclusão.

28 No original: "figurandomi moglie soggetta ad uomo"

Dentro das oposições já mencionadas, há uma grande oposição entre Turandot e o resto do elenco. Turandot lentamente caminha da insensibilidade para o sentimento. E sua transição é vagarosa, ao longo dos cinco atos. É uma transformação "dramática", por assim dizer, que não ocorre de um momento ao outro. Os personagens da commedia dell'arte, entretanto, fazem transições das lágrimas aos risos no decorrer de poucas falas. Também jamais ocultam um sentimento sutil, uma transformação subterrânea como essa que ocorre em Turandot. As máscaras se apresentam sem "filtro", quando falam, usam palavrões, e quando choram, são imunes à timidez. E como os personagens de desenho animado, já discutidos anteriormente, as máscaras não têm coerência. Não são necessariamente bonzinhos, ou vilões. Tanto é, que ao final do Ato III, Truffaldino, o herói cômico, sobre o qual recai a simpatia do público, ocupa a posição de vilão.