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A exploração de elementos da memória cultural lituana reflectidos de forma a alcançar uma potencial ligação com o público ocidental, presentes neste filme, demonstra a potencialidade deste registo enquanto uma tecnologia de memória cultural europeia. No entanto, tal exploração não permite a evidenciação da falta de ligação do público local aos registos criados nesta época: os elementos reflectidos estão ligados à memória cultural lituana e, consequentemente, à população lituana. Para além

100 "A queda da URSS, o centro do mundo comunista, foi consequência directa dos esforços falhados de Gorbatchev para a

60 disso, foi possível observar que os elementos realçados por Matelis são potencialmente geradores de uma memória prostética europeia superficial, devido à falta de contextualização e de noção das questões históricas e de memória cultural da Lituânia. Como tal, o público local teve acesso a um registo que reflectia as questões de questionamento da identidade nacional, com o levantamento de determinados elementos considerados fundamentais para a criação e manutenção da mesma, com a apresentação de

elementos da memória cultural nacional.

A falta de ligação da comunidade lituana para com este registo - que é considerado enquanto um exemplo do tipo de registos realizados na época - derivará da forma como tais elementos são apresentados: a vertente poética e experimental, que deriva do estilo de criação artística explorada por Matelis e pelos restantes realizadores da época. Tal como indicado anteriormente, uma das questões colocadas a Arunas Matelis, por um elemento do público numa exibição local, relativamente ao seu filme - consagrado no circuito de festivais -, foi a falta de apresentação de determinados símbolos, como a bandeira nacional: símbolos reconhecidos facilmente por qualquer elemento de público enquanto um elemento cultural lituano. A utilização de símbolos de forma mais metafórica, indirecta e a utilização de formas experimentais resulta num tipo de registo cinematográfico documental não-jornalístico, metafórico e de contemplação que, na época, não correspondia às expectativas do público lituano. Assim, e tendo em conta a impossibilidade de forte distribuição e exibição deste documentário, tal como de outros, pelo país, a pertença deste no imaginário colectivo daquilo que poderá ser considerado o cinema nacional lituano é questionável, ainda que o papel de tecnologia de memória cultural

(maioritariamente transnacional) esteja presente.

Este tipo de registo não apresentava, no entanto, estratégias completamente novas e desconhecidas: a ligação de Matelis e da nova geração de realizadores dos anos 90 com a tradição documental lituana dos anos 60 é evidente. Henrikas Šablevičius, um dos realizadores do documentário poético dos anos 60, é apresentado por inúmeros realizadores da nova geração dos anos 90 como sendo uma referência em termos estilísticos e em termos de abordagem - perante os objectos, perante os indivíduos. Arunas Matelis descreve, em entrevista, o tipo de olhar despertado pela influência de Šablevičius, em que "(...) se virmos uma pessoa no trolleybus, temos tanto de nos lembrar da sua cara, como também de criar a sua história: porque é que ele/a é assim, o que é que lhe aconteceu?" (Meno Avilys, 2014, p. 56). Acima de tudo, Matelis refere o despoletar da atenção para com os outros que os rodeavam, para com os ambientes que os rodeavam e a necessidade de contar histórias através da simples captura visual - que serve, no entanto, enquanto um ponto de partida para um despoletar de reflexão. Para Audrius Stonys, "parece que nada está a acontecer nos filmes de Šablevičius. (...) No entanto, ao ver o filme, pensamos sobre valores perdidos, simplicidade humana e inocência." (Meno Avilys, 2014, p.61) Em 1988, dois anos antes da Restauração da Independência da Lituânia, Šablevičius lançou "We Were At Our Own Field": um registo documental particular da ligação das comunidades à zona rural. Ainda que as zonas rurais sejam um espaço marcadamente da geração dos ano 60, ao contrário da geração

61 dos anos 90 - que primazia a cidade -, este registo apresenta, mesmo assim, determinados elementos que representam a identidade nacional e a memória cultural lituana de uma forma indirecta e subjectiva.

Nesta curta-metragem de Šablevičius, é possível observar um registo da tradição de retorno a uma aldeia desocupada desde o período inicial da ocupação soviética, em que os antigos habitantes visitam as campas dos seus entes familiares já falecidos - aqui enterrados tanto antes, como durante, e após a saída desta região -, e realizam um almoço comunitário, para partilha dos desenvolvimentos das suas vidas, durante o ano que passou. Uma reunião anual, onde se partilham memórias de experiências vividas em comunhão, nesta aldeia, onde se partilham memórias da vida actual e, acima de tudo, onde se partilha a história do sofrimento comum que derivou da privação da possibilidade de manutenção da vida que tinham anteriormente. Explorando os campos vastos, preenchidos somente com um vazio de humanidade, mas com uma totalidade natural, revivem o passado em comunidade - um eterno retorno ao campo e à memória colectiva. O cenário ilustrado não é único: esta aldeia e esta comunidade representam uma experiência sentida pela grande maioria das comunidades rurais.

"Para a maioria dos lituanos, a memória da migração do campo para a cidade (...) tem sido marcada, desde há muito tempo, pelo trauma da 'partida', pela separação da terra e pela destruição do modo de vida tradicional da aldeia." (Davoliūtė, 2013, p.6)

Este filme constitui, como tal, uma evidência da memória cultural lituana e, em particular, das migrações do campo para a cidade. Para além de tal facto, "We Were At Our Own Field" apresenta um carácter político - discursivamente - mais explícito, em comparação com registos cinematográficos anteriores de Šablevičius - ainda que seja um registo familiar, de estilo amador, e maioritariamente visual -, que poderá ser associado ao ano de produção do filme (1988). Como tal, este filme apresenta uma enorme relevância enquanto um dos primeiros filmes que ilustram as escolhas criativas - estéticas e de conteúdo - dos realizadores lituanos perante as brechas criadas no sistema soviético, resultantes das

medidas que marcaram o início do colapso do regime.

"PABUVAM SAVAM LAUKI / WE WERE AT OUR OWN FIELD" (1988)