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2. O ADVENTO DA CIÊNCIA MODERNA E O DOMÍNIO DA MÁQUINA

2.2. E uma ciência de filósofos e técnicos nasce fora da universidade

Desde o século XII, profundas mudanças vinham se operando na ordem fundamentalmente rural da Europa medieval, sendo a urbanização progressiva uma das mais importantes (JAPIASSU, 1985). Com o afloramento das cidades e a intensificação das trocas comerciais, o trabalho técnico foi paulatinamente ganhando maior proeminência. Afinal, a aglomeração urbana e a atividade comercial exigiam o desenvolvimento de um conjunto de soluções técnicas, capaz de viabilizar a própria acomodação da população e garantir a expansão dos negócios. Assim, desde as técnicas de construção até a produção de utensílios domésticos tenderam a receber sucessivos aperfeiçoamentos. Ademais, o aquecimento do comércio e o ressurgimento da moeda demandavam melhores métodos de exploração das minas, melhores condições das estradas e dos meios de transporte, além de incentivar constantes incrementos nas manufaturas, voltados para ampliar a capacidade produtiva. Com as Grandes Navegações, o aparato náutico e bélico se tornou alvo de constantes estudos e aprimoramentos, com vistas a tornar o comércio marítimo mais seguro e lucrativo. Todo esse cenário gerou uma nova valorização sobre o trabalho técnico e artesanal.

Como se viu, a filosofia medieval, sob a influência da tradição aristotélica, estabelecia uma ruptura entre a ciência e a arte (esta assumindo a acepção primeira de trabalho técnico). Enquanto a ciência era associada à contemplação da verdade e, sem pretensão de atuar sobre a natureza, portava um valor de nobreza, a arte era considerada como ofício das classes inferiores e estava vinculada à ideia do trabalho artesanal, da transformação técnica da natureza. A nova valorização das artes, decorrente da sua inserção diferenciada no contexto da expansão capitalista, impactará profundamente a percepção sobre o valor do trabalho, sobre o saber técnico e sobre o sentido dos procedimentos artificiais de transformação da natureza. Rossi (1989) destaca que, entre os séculos XV e XVI, artistas, técnicos e engenheiros compuseram uma vasta literatura, em que rebatiam as teses sobre a inferioridade e a indignidade do trabalho artesanal e das artes mecânicas.

À diferença dos artesãos e ‘mecânicos’ da Antiguidade e da Idade Média, os técnicos da emergente Idade Moderna escreveram e publicaram livros, expressaram idéias [sic] sobre as artes, as ciências e suas relações, tentaram enfrentar polemicamente a tradição, opuseram seu tipo de saber e abordagem da realidade natural àqueles teorizados e praticados nas universidades (ROSSI, 1989, p. 10).

Essa nova valorização do saber técnico e a própria postura dos artesãos do início da Era Moderna logo se fizeram sentir no âmbito da reflexão filosófica. Assim, pensadores atentos a essas questões perceberam que os procedimentos próprios da observação e da inventividade técnica podiam contribuir de maneira relevante para o conhecimento dos fenômenos da natureza (ROSSI, 1989). É sintomática nesse sentido a abertura dos diálogos da última obra de Galileu Galilei (1564-1642), Duas novas ciências (publicada em 1638).

Salviati – Parece-me que a freqüente [sic] atividade do vosso arsenal, Senhores Venezianos, oferece vasto campo filosófico às inteligências especulativas e, particularmente, naquela matéria que se denomina Mecânica, visto que neste lugar se constrói continuamente todo tipo de instrumentos e máquinas por numerosos artesãos, entre os quais é possível que existam, devido tanto às observações feitas pelos antepassados, como pelas que fazem continuamente por sua própria reflexão, alguns que aliam sua perícia a um raciocínio profundo. Sagredo – V. Sa. absolutamente não se engana. Sendo eu curioso

por natureza, visito muitas vezes aquele lugar pelo prazer de observar o trabalho dos que chamamos mestres, graças a certa ascendência que têm sobre os demais artesãos. A conversação com eles ajudou-me muitas vezes na investigação das razões de efeitos

não somente maravilhosos, mas também ocultos e quase inimagináveis (GALILEI, 1988, p. 9).

A apreciação do espaço de trabalho dos artesãos e das possibilidades de aprendizado contidos no mesmo denotava uma empatia com a própria lógica pragmática da produção técnica. Assim, a aproximação entre o saber filosófico (científico) e o saber técnico (empírico) foi determinante para colocar na pauta da ciência a perspectiva da transformação do meio (antes exclusivo das artes e ofícios), o que significava um choque com a perspectiva científica da contemplação desinteressada da verdade, ainda dominante nas universidades (ROSSI, 1989). Este fenômeno representa, portanto, “uma nova definição do conhecimento, que já não é contemplação mas utilização, uma nova atitude do homem perante a Natureza: ele deixa de a olhar como uma criança olha a mãe, tomando-a por modelo; quer conquistá-la, tornar-se ‘dono e senhor’ dela” (LENOBLE, 1990, p. 260). Com isso, operava-se, no âmbito do saber científico, uma aproximação entre a verdade e a utilidade, entre a teoria e a prática. É nesse sentido que se pode afirmar que o cientista que emerge com a Idade Moderna é o resultado de uma fusão entre o filósofo e o técnico. Não por acaso, o engenheiro alcançará, no século XVII, a “dignidade de sábio” (LENOBLE, 1990), destacando-se no cenário do movimento científico.

Ao longo do século XVII, as universidades se mantiveram distantes das novas proposições que surgiam no campo da filosofia mecânica e experimental (ROSSI, 1989), focando sua atuação sobretudo no ensino e tendo como propósito principal a formação de clérigos. Dessa forma, filósofos, engenheiros e técnicos afeitos às novas tendências acabaram se agrupando para dar origem a outras institucionalidades. É assim que, na segunda metade do século XVII, serão criadas as primeiras sociedades científicas, cuja inspiração se reporta à Casa de Salomão baconiana: em 1657, surge a Accademia del Cimento (na Itália); em 1662, a Royal Society de Londres (na Inglaterra); e em 1666, a Académie Royale des Sciences (na França). “Essas primeiras instituições se converteram numa espécie de júri da ciência. Entre suas atribuições, destaca-se a de elaborar um programa de defesa da filosofia experimental, em oposição aos filósofos dogmáticos” (JAPIASSU, 1985, p. 105. Grifos no original).

Contando com a proteção direta dos reis e dos grandes burgueses, a Royal Society e a Académie des Sciences colocaram em prática um projeto de investigação coletiva, que atendia à demanda de aperfeiçoamentos técnicos oriundos dos governos e das classes dominantes, promovendo estudos em áreas diversas, como comércio, navegação, manufatura e agricultura (JAPIASSU, 1985). Com o explícito propósito de dotar a ciência de uma finalidade prática, as novas instituições científicas afirmavam os valores do progresso técnico e da produção de riquezas como ideais máximos. Ao mesmo tempo, elas buscaram se distanciar das questões relacionadas à filosofia, à moral ou à teologia. O Estatuto da Royal Society de Londres, redigido em 1663, por Robert Hooke (1633-1703), é bastante explícito com relação a essa postura.

O objetivo da Royal Society é o de melhorar o conhecimento das coisas naturais e de todas as artes úteis, manufaturadas, práticas mecânicas, engenhos e invenções, por meio de experiências – sem se imiscuir em Teologia, Metafísica, Moral, Política, Gramática, Retórica ou Lógica (HOOKE, apud JAPIASSU, 1985, p. 105. Grifos no original).

Como foi visto, os ofícios técnicos e o trabalho dos engenheiros foram ganhando importância e valorização com o advento do capitalismo, atraindo, em especial, a atenção de uma burguesia interessada em seus misteres. No entanto, essas formas de conhecimento continuaram desprezadas pela ciência dominante, institucionalizada no âmbito das universidades. Dando vazão a uma demanda de inovações técnicas decorrente da expansão capitalista, a ciência moderna foi forjada à margem das universidades e, pode-se dizer, em oposição a elas ou apesar delas (JAPIASSU, 1985). Conhecer a verdade se tornou um princípio para transformar a realidade. Dominar a natureza entrou na ordem do dia e “a arte de fabricar tornou-se o protótipo da ciência” (LENOBLE, 1990, p. 260). Se apelos em favor de um divórcio entre a ciência e a teologia já tinham sido expressos antes por pensadores como Galileu, com o surgimento das sociedades científicas esse apelo vai ainda mais longe, propondo um rompimento também com a reflexão filosófica. Com os cientistas modernos, portanto, as questões éticas da ação foram paulatinamente se desvinculando da busca da verdade.