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1. As cosmologias do parto/nascimento: uma discussão teórico-

1.2. Ecofeminismo e educação

A discussão sobre a parteria também vem ocorrendo por pressão do exercício crítico de alguns movimentos sociais globais. No espaço dessa tese tratarei das discussões da área da ecologia, mais especificamente, do ecofeminismo. O ecofeminismo originou-se de diversos movimentos sociais – feministas, pacifistas e ambientais – no final dos anos 1970, os quais inicialmente atuaram contra a construção de usinas nucleares. O movimento ecofeminista denuncia a relação entre a exploração e a submissão da natureza, das mulheres e dos povos estrangeiros pelo poder patriarcal (SHIVA, 1993).

O ecofeminismo entende que a dominação das mulheres está baseada nos mesmos fundamentos e impulsos que levaram à exploração da natureza e de povos por parte do capitalismo patriarcal. Segundo essa concepção, tanto o meio ambiente quanto as mulheres seriam vistos como “coisa útil”, submetidos às necessidades produtivas, seja como objeto de consumo, como meio de produção ou exploração. Além disso, o capitalismo patriarcal, de caráter etnocêntrico, buscaria dominar povos e culturas consideradas subalternas e

eliminar conhecimentos divergentes (SHIVA, 1993). Esse procedimento é denominado de “monocultura mental”, pela filósofa e escritora indiana Vandana Shiva. Para ela,

[...] a monocultura mental conduz a uma devastação da sabedoria milenar existente na humanidade, contrapondo-a à exclusividade do recente saber científico, transferindo a ideologia e os valores da monocultura aos produtores e produtoras, consumidores e consumidoras por meio do controle ideológico, sociocultural e econômico (SHIVA, 2002, p.11).

Essa discussão denuncia ainda o abuso no emprego de técnicas e tecnologias destrutivas e o “patenteamento da vida” a partir do monopólio do saber (SHIVA, 2002, p. 10). Para o ecofeminismo a vida deve ser pensada de maneira central na “organização social, política e econômica” (SHIVA, 2012, p. 30), apontando para uma preocupação mais ampla e indissociável da preservação e disseminação dos múltiplos conhecimentos no cenário contemporâneo. Os usos abusivos da tecnologia e da mecanização contra a natureza são vistos como correlatos aos usos e abusos ao corpo feminino. Em um sentido comparativo, a mulher e a semente são “transformadas em mera matéria-prima” (SHIVA, 2001, p. 84), e tratadas de maneira “similar” no que tange à desvalorização vital. Tanto a relação com a natureza quanto os procedimentos de parto tornam-se mecanizados. Os saberes femininos são desvalorizados e o corpo da mulher já não lhe pertence mais, estando submetido ao poder dominante da medicina, tornando-se peça de um sistema que executa o parto de forma padronizada. Nas palavras da autora:

A reprodução é associada à mecanização do corpo feminino, no qual um conjunto de partes fragmentadas, fetichizadas e substituíveis são administradas por especialistas médicos. [...] A mecanização do parto é evidente no aumento de cesarianas. [...] A construção médica da vida por meio da tecnologia é, com freqüência, inconsistente com as experiências de vida das mulheres como seres humanos pensantes e conhecedores (SHIVA, 2001, p. 84-86).

A mecanização como finalidade torna-se uma regra, e o desenvolvimento da técnica da cesariana substitui os conhecimentos das mulheres sobre seus próprios corpos. No tocante à educação, pode-se pensar que ela tanto pode reforçar quanto se contrapor a esse processo. Uma vez que

ela pode oferecer ou não espaços para a discussão dos saberes sobre corpo, corpo feminino, gestação, aborto, parto e nascimento. Assim como de outros temas que contemplem variações possíveis, e matizes aprofundados, para além do paradigma científico dominante e das normas sociais naturalizadas.

Pensando-se a educação como locus de processos e encontros na definição, legitimação e difusão de saberes e prática sociais, pode-se concordar com a afirmação de Carlos Brandão de que “ninguém escapa da educação” (2009, p.7), pois

Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela; para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com educação. (BRANDÃO, 2009, p. 7).

Quando observamos essa perspectiva de ‘vida e educação’ enfocamos processos de aprender a “fazer fazendo”. Poderíamos postular que também nem sempre é percebido como construímos esta educação cotidianamente, mas ela “existe difusa em todos os mundos sociais” (BRANDÃO, 2009, p.10), diferentemente apresentada e percebida no contexto geográfico, temporal e histórico, e em relação às formas como se processa nas configurações dos grupos sociais, da cultura, da língua e das simbologias. Isto é, como dispõem da vida social.

Desta forma, a educação não pode ser vista como limitada aos espaços escolares, pois ela ocorre em todos processos estabelecidos em sociedade, nas maneiras como pensamos, nas técnicas e procedimentos que utilizamos, na forma como naturalizamos as ideias, nada escapa da educação. A noção de educação como campo intrínseco à vida social permite pensar o tema das cosmologias do parto/nascimento como relacionadas à educação do corpo, nem sempre percebida como relevante ou necessária no âmbito da educação escolar.

Por outro lado, este estudo sobre as parterias, partos e nascimentos só é possível por haver uma transformação no reconhecimento do que, afinal de contas, é educação. Partindo-se de novos olhares e implicações nos diálogos entre aprendizagem, educação e conhecimento da vida, observa-se cada vez mais a necessidade de discutir e problematizar questões muitas vezes

relegadas, no campo acadêmico, como conhecimentos tidos como “comuns”. Defende-se, assim, que analisar as cosmologias dos partos/nascimentos nos possibilita refletir sobre as mudanças paradigmáticas em processo. Nesse caso, mais especificamente dos conhecimentos produzidos sobre as mulheres e das mulheres, que podem levar à transformação da noção de “empoderamento” de seus corpos para o de “apoderamento” de todo um sistema social que sustenta comportamentos, discursos e reproduções socioculturais sobre elas.