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A economia da «nação proletária»

No documento Nunca Antes na História Deste País (páginas 27-34)

As «nações proletárias» não estavam sozinhas e opunham-se-lhes as «nações plutocráticas». Este par de conceitos foi actualizado mais tarde, no âmbito do terceiro-mundismo, mediante o recurso a outro par de conceitos, Centro e Periferia, e ainda aqui a extrema-direita anterior à guerra deixou a sua herança, porque estas noções foram criadas pelo economista e historiador da economia Werner Sombart, que havia abandonado a sua simpatia inicial pelo marxismo e se convertera depois num apologista do regime nazi. No começo da década de 1940 os termos Centro e Periferia encontravam-se já com certa frequência na literatura financeira internacional, mas Sombart usara

25 Citado em Richard STORRY, The Double Patriots. A Study of Japanese Nationalism, Londres: Chatto and Windus, 1957, pág. 38.

aquelas noções num sentido apenas descritivo, e foi o economista argentino Raúl Prebisch, num curso ministrado em 1944 e num artigo publicado dois anos depois, quem pela primeira vez as empregou como um dos elementos essenciais para a formulação de um modelo de desequilíbrio estrutural entre as nações. Segundo Prebisch, o comércio internacional estava viciado pelas diferenças de produtividade e pelos diferentes padrões de procura vigentes no centro industrial e na periferia agrícola, combinados com diferentes sistemas de organização do mercado de capitais e do mercado de trabalho em cada uma das regiões, e estes obstáculos estruturais só podiam ser remediados pela industrialização. Prebisch dirigiu e inspirou a Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), o organismo das Nações Unidas fundado em 1948 e que, apesar da sua especificação geográfica, constituiu o laboratório ideológico onde se formularam estratégias de industrialização para todos os países subdesenvolvidos. Ora, ao entenderem o desequilíbrio estrutural entre as nações como uma troca desigual e ao conceberem a desigualdade entre o Centro e a Periferia como uma modalidade de exploração, os economistas da CEPAL deram novo alento e outro rigor às teses defendidas na década anterior pelo economista e político fascista romeno Mihail Manoilescu.

Não posso traçar aqui uma biografia minimamente detalhada de Manoilescu, porque isso exigiria descrever a vida política da Roménia ao longo da década de 1930 e durante a primeira metade da década seguinte, quando se digladiaram mortalmente duas alas do fascismo: uma ala socialmente radical e caracterizada por um anti-semitismo feroz, chefiada por Corneliu Codreanu e, depois de ele ter sido assassinado na cadeia, por Horia Sima; e uma ala socialmente conservadora, encabeçada pelo rei Carol II e, depois de ele ter sido deposto, pelo general (mais tarde marechal) Antonescu. Tal como muitos outros fizeram antes dele e haveriam de o fazer depois, Manoilescu situou-se ora numa ora noutra das correntes em luta, procurando sobretudo estar ao lado do futuro vencedor, o que geralmente conseguiu, porque desempenhou funções de relevo na administração em áreas económicas, foi governador do Banco Nacional e em diversas ocasiões foi ministro da Economia e dos Negócios Estrangeiros.

Foi Mihail Manoilescu quem melhor desenvolveu os pressupostos económicos do conceito de

«nação proletária». O comércio internacional é uma verdadeira burla, denunciou ele no seu livro de 1929, Teoria do Proteccionismo e Trocas Internacionais, porque não é regido pela noção ricardiana de vantagem comparativa, adoptada pelos economistas neoclássicos. A tese da vantagem comparativa serve para justificar a manutenção dos países agrícolas numa situação de dependência e dos países industriais numa situação de supremacia. São as produtividades nos vários ramos de produção em cada um dos países que, segundo Manoilescu, devem ser comparadas, ou seja, o elemento fundamental é a relação entre, por um lado, uma unidade de trabalho gasta na produção de um bem destinado à exportação e, por outro lado, a produtividade do trabalho no país importador.

Trata-se de avaliar o poder aquisitivo das unidades de trabalho. Cinco anos depois, em O Século do Corporativismo, Manoilescu escreveu que «mediante o sistema industrial cada cidadão do Ocidente teve praticamente à sua disposição dez escravos das outras regiões do mundo» — os «dez»

surgiram aqui porque, para simplificar, o autor admitiu que o trabalho de um operário do Ocidente equivalia ao de dez trabalhadores dos países não industrializados — «que em troca do trabalho dele

lhe ofereceram o produto do trabalho de todos eles»26. Em suma, o objectivo é «adquirir ao estrangeiro o máximo de trabalho possível, com o mínimo de trabalho possível da sua própria nação»27.

Para compreendermos o lugar ocupado na ideologia fascista por esta teoria do comércio internacional enquanto troca desigual é conveniente constatar a sua afinidade com o conceito de

«nação proletária». «As trocas internacionais, a um contra dez, fornecem hoje “a chave” da compreensão das relações económicas entre os povos», escreveu Manoilescu depois de ter referido a desigualdade estrutural entre os países exportadores de produtos industriais e os países exportadores de produtos agrícolas e de matérias-primas. «Tal como Marx, com a sua teoria, nos fez compreender os fenómenos sociais do mundo capitalista e sobretudo a exploração de classe, também esta teoria das trocas internacionais nos faz compreender a desigualdade dos povos e as relações de explorador e explorado que os unem»28. A disparidade de fortunas entre os países, explicada por Manoilescu, de forma pioneira, como um resultado das diferenças de produtividade, foi entendida não como uma mera desigualdade mas como uma exploração, ficando a relação entre nações assimilada ao modelo da relação entre classes. Por isso, num artigo publicado em 1940, O Triângulo Económico e Social dos Países Agrícolas: A Cidade, a Aldeia, o Estrangeiro, Manoilescu afirmou que o «socialismo das classes» estava ultrapassado e exigiu a sua substituição pelo

«socialismo das nações»29. Como Manoilescu era então um apoiante do Terceiro Reich, isto significa que passara do tema da «nação proletária» para o de um socialismo nacional que não podia, evidentemente, deixar de ser um nacional-socialismo.

A análise do sistema de dependência entendido como um sistema de exploração foi levada mais longe no referido artigo de 1940, O Triângulo Económico e Social dos Países Agrícolas, onde Manoilescu concebeu a relação de dependência não apenas no comércio internacional mas igualmente nas trocas no interior de um país subdesenvolvido. Na sua opinião as áreas urbanas industriais exploravam as áreas agrícolas, em primeiro lugar porque o comércio externo lhes era favorável, já que a maior parte das exportações provinha das regiões rurais, enquanto a maior parte das importações se dirigia para as cidades. «O triângulo económico constituído pela aldeia, pela cidade e pelo mercado de exportação», escreveu Manoilescu neste artigo, «desempenha o papel especial de transformar o excedente de artigos produzido pela aldeia em bens de consumo, para benefício da cidade». Em segundo lugar, a situação económica difícil em que se encontrava a economia rural conduzia-a ao endividamento, e como as fontes de crédito eram urbanas, ocorria um fluxo permanente de pagamentos do campo em direcção à cidade superior ao fluxo em sentido inverso. Uma terceira modalidade, específica da Roménia, consistia no facto de a relação entre os

26 Mihaïl MANOÏLESCO, Le Siècle du Corporatisme. Doctrine du Corporatisme Intégral et Pur, Paris:

Félix Alcan, 1936, pág. 66 (sub. orig.).

27 Id., op. cit., pág. 368 (sub. orig.).

28 Id., op. cit., págs. 29-30 (subs. orig.).

29 Citado em Joseph L. LOVE, Crafting the Third World. Theorizing Underdevelopment in Rumania and Brazil, Stanford, California: Stanford University Press, 1996, pág. 84.

impostos pagos e os benefícios recebidos do Estado ser para os habitantes das cidades inferior ao que era para os habitantes do campo30.

Segundo Manoilescu, tanto a situação de dependência em que os países de economia predominantemente agrícola se encontravam relativamente aos países industrializados como a situação de dependência em que, no interior do países subdesenvolvidos, os campos se encontravam perante as cidades indicavam uma única solução — a promoção das indústrias. Nesta perspectiva, sendo a produtividade do trabalho muito maior na indústria do que na agricultura, a passagem da actividade rural para a fabril nas nações subdesenvolvidas trazia-lhes muito mais benefícios do que nas nações industrializadas, onde o diferencial era menor. Por isso as vantagens do proteccionismo, para Manoilescu, eram superiores às indicadas por Friedrich List, para quem se tratara apenas de criar condições favoráveis às indústrias incipientes até que estas estivessem capazes de sustentar a concorrência no mercado mundial e começassem a ser economicamente úteis. Segundo Manoilescu, bastava que a produtividade do trabalho num estabelecimento industrial, mesmo durante a sua fase incipiente, fosse superior à produtividade média no país, para que esse estabelecimento fosse desde logo benéfico. O critério dos diferenciais de produtividade, que servira a Manoilescu para explicar a desigualdade do sistema mundial de trocas, serviu-lhe para justificar o proteccionismo, e enquanto o diferencial persistisse, o proteccionismo mantinha a razão de ser. Mas como se podia gerar o processo de industrialização dos países subdesenvolvidos?

Na reedição de 1940 de Teoria do Proteccionismo e Trocas Internacionais, Manoilescu calculou que na Roménia os salários médios eram 4,6 vezes maiores na indústria do que na agricultura, o capital por trabalhador era 4,1 vez maior, a produtividade do trabalho era 4,6 vezes maior, mas a taxa média de lucro era só 1,8 vezes maior na indústria do que na agricultura. Daqui ele concluiu que não existia uma correlação entre lucro e produtividade e que o interesse particular determinado pelo lucro não coincidia com o interesse nacional definido pela produtividade31. Manoilescu pôs em causa a tese dos economistas liberais, que admitiam que a rentabilidade de um empreendimento coincidia com a sua produtividade, e portanto ele considerou necessário que a economia fosse regida por uma instância superior aos empresários individuais. O Século do Corporativismo foi dedicado à exposição de um sistema político de organização económica que, embora mantendo o lucro e a iniciativa particular, os superava mediante a ordenação corporativa do Estado. «O espaço corporativo é um espaço onde os impulsos egoístas dos indivíduos não deixam de existir e continuam a representar forças actuantes, mas onde, além desses impulsos, existe um sistema de forças que dirige as acções individuais para um objectivo comum constituído pelos fins do Estado»32. Esta necessidade tornara-se especialmente urgente com a crise económica desencadeada em 1929, que reduzira as trocas internacionais e as pressionara a assumir a forma de compensação bilateral. «A exportação […] tornou-se cada vez mais difícil. […] O princípio compra para que eu compre outro tanto tornou-se regra no comércio externo […] Os exportadores e os importadores estão obrigados a sindicar-se para prosseguir uma actividade comum com um objectivo comum. E

30 Id., op. cit., págs. 88-89. A frase citada encontra-se na pág. 88.

31 Id., op. cit., pág. 82.

32 M. MANOÏLESCO, op. cit., pág. 361 (sub. orig.).

esta organização é-lhes imposta de fora»33. Com efeito, explicou Manoilescu, o sistema de compensação bilateral exige que o Estado intervenha para fornecer créditos, exige a padronização da produção para aumentar a produtividade e a capacidade concorrencial, exige acordos entre exportadores para que os preços não baixem bruscamente no mercado mundial, exige a adaptação da capacidade de produção à capacidade de compra, exige a especialização das instituições de crédito, e tudo isto implica a existência de uma economia organizada34. Em suma, «querer organizar a ordem social é querer o Estado corporativo»35.

Tanto no diagnóstico da dependência externa como no da dualidade interna dos países subdesenvolvidos, soa nas teses de Mihail Manoilescu uma grande modernidade, e a estratégia industrializadora proposta pelos economistas da CEPAL para corrigir essa situação constituiu uma reelaboração das soluções que Manoilescu havia adiantado. Joseph Love, no seu notável livro Crafting the Third World. Theorizing Underdevelopment in Rumania and Brazil, publicado em 1996 pela Stanford University Press, analisou a repercussão internacional da obra de Manoilescu. Este livro foi também publicado no Brasil, pela editora Paz e Terra, mas ignoro se a tradução é aceitável.

Segundo Love, desde cedo que a influência de Manoilescu se fez sentir nos países de línguas ibéricas. Em Portugal ele foi recebido em 1936 por Salazar e por Marcelo Caetano, que expressaram o seu apreço sobretudo pela doutrina corporativa. Aliás, o autor de O Século do Corporativismo considerara Portugal como um dos três países onde o corporativismo era aplicado36. Já em Espanha foram antes de mais as teses de Manoilescu sobre a desigualdade no comércio externo e a necessidade de promover a industrialização que beneficiaram de um bom acolhimento. Para além da influência exercida pelos dois países ibéricos sobre a América Latina, as ideias de Manoilescu tiveram aí também uma repercussão directa. No Brasil sucedeu o mesmo que em Espanha; as obras especificamente económicas de Manoilescu foram discutidas antes do livro sobre o corporativismo, influenciando o principal porta-voz dos meios empresariais, Roberto Simonsen, e parece que o próprio Getúlio Vargas as leu. O certo é que o prestígio de Manoilescu na extrema-direita brasileira atingiu um escopo muito vasto, desde os integralistas que na direita radical se opunham ao Estado Novo até aos tecnocratas e políticos que formulavam os objectivos modernizadores e davam um eixo ao regime de Vargas. Na Argentina as ideias de Manoilescu parece não terem interessado os empresários industriais nas décadas de 1930 e 1940, mas eram conhecidas entre os economistas, e também no Chile elas foram acolhidas favoravelmente.

Uma influência tão vasta seria por si só duradoura e asseguraria que as teses de Manoilescu não fossem esquecidas após a derrota militar dos fascismos, mas foi sobretudo o economista argentino Raúl Prebisch quem lhes garantiu a continuidade. E é curioso que assim fosse, porque num país onde o fascismo conseguiu uma presença ampla e perene na vida política, Prebisch foi sempre

33 Id., op. cit., págs. 118-120 (subs. orig.).

34 Id., op. cit., págs. 120-121.

35 Id., op. cit., pág. 126 (sub. orig.). «A organização impõe-se», escreveu ainda Manoilescu na pág. 122 (subs. orig.), «e a sua forma natural é a corporação».

36 Id., op. cit., pág. 13. Os outros dois países eram a Itália e a Áustria.

antiperonista. Ele incluía-se numa corrente modernizadora ligada à oligarquia agrária, que formava a base mais sólida e mais poderosa da oposição ao peronismo. Prebisch foi o primeiro director-geral do Banco Central, afastado das suas funções com o golpe militar de 1943, que elevou Perón ao poder; e foi ele o autor de um importante relatório económico a pedido dos militares que derrubaram Perón em 1955.

As orientações desenvolvimentistas e industrializadoras defendidas por Raúl Prebisch e a sua análise do desequilíbrio estrutural entre Centro e Periferia adquiriram uma vastíssima audiência com a sua nomeação em 1948 para director da CEPAL. Foi ali que a esquerda brasileira moderna encontrou a matriz, por um lado graças a Celso Furtado, tanto na obra teórica e como na intervenção na política económica. Por outro lado, a influência da CEPAL fez-se sentir também através dos teóricos marxistas da dependência que, ao formularem a relação entre Centro e Periferia com os termos da exploração, que Marx havia usado para a relação entre classes sociais, estavam a proceder à operação que Corradini executara quando cunhara o conceito de «nação proletária». O círculo completou-se. As teorias do desenvolvimento prosseguidas na esquerda deram continuidade às teorias formuladas por Manoilescu. Como argutamente observou Joseph Love, tratava-se de uma maneira de criticar o imperialismo sem precisar de criticar o capitalismo37. Afinal, reduzia-se a luta contra o imperialismo a uma luta contra o estrangeiro, e apelava-se ao combate contra uma parte do capitalismo nacional com a justificação de serem agentes do estrangeiro e não por serem considerados simplesmente capitalistas.

Estas circunvoluções da história têm implicações muitíssimo vastas, impossíveis de deslindar no espaço limitado de um artigo. É que os conceitos não são meras palavras, e distinguem-se das restantes palavras por terem implicações próprias. Os conceitos são instrumentos intelectuais, e a escolha de um dado instrumento determina — não inteiramente, mas em grande medida — o resultado a que se chega. Os conceitos têm uma vida própria, independente das boas ou más intenções de quem os usa. Com as noções de Manoilescu, herdadas através de Prebisch e de Celso Furtado, só pode chegar-se à noção de «nação proletária», que dilui a estratificação das classes na homogeneização da nação. E na noção de «nação proletária» está implícita a sua redenção através de um imperialismo anti-imperialista, tal como o entendiam Kita Ikki e os demais fascistas japoneses.

O carácter nefasto destes conceitos parecia não ter implicações demasiado graves enquanto a economia brasileira se mantinha subdesenvolvida. Mas agora, quando a recessão ou a estagnação na maior parte dos países a que ainda teimamos em chamar dominantes contrasta com o crescimento num pequeno número de países emergentes, entre os quais o Brasil passou a ter um lugar de destaque, como fica a situação daqueles que trocaram a luta contra o capitalismo por uma luta estritamente anti-imperialista? Continuarão a identificar o imperialismo com os Estados Unidos e a reproduzir em todos os matizes a visão do Brasil como um país coitadinho? Ou serão capazes de proceder a uma enorme remodelação ideológica e de considerar que o capitalismo brasileiro é desde já, neste momento, um imperialismo emergente?

37 J. L. LOVE, op. cit., pág. 135.

Da resposta a esta questão depende o lugar que se ocupa na luta de classes actual.

Abril de 2011

No documento Nunca Antes na História Deste País (páginas 27-34)