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O plano dos jesuítas era formar grandes comunidades com tribos de nômades consideradas rudes, ao estilo das utopias dos primeiros cristãos, separadas das colônias espanholas. As dificuldades do empreendimento foram muitas. A escassez de recursos era um fator limitante ao crescimento do número de índios cristãos e batizados.

Na documentação sobre o Itatim, compilada por Cortesão (1952, p. 67-68), há o documento XI, de autoria do jesuíta Francisco Lupercio de Zurbano, escrito em 22 de setembro de 1643, que revela o aporte financeiro necessário para a manutenção da catequese dos índios Itatim: “De los 200 pesos que El collegio del Paraguay da a esta

mission los 50 se daran em rescates comprados em El Puerto si se abriere conforme la Mem.ª que daran los padres.”

A coroa também fazia pequenos aportes, como ajuda para compra dos sinos e artigos para as igrejas, isenção temporária de impostos e um salário anual para o cura e seu assistente, no valor de 300 pesos, no século XVIII (NEW ADVENT, 2008). Os recursos eram reduzidos e a missão necessitava praticar o comércio para viabilizar-se. Uma das atividades mais praticadas era o comércio de erva com Assunção e Buenos Aires. A erva das missões era bastante elogiada pela qualidade, chamada da ca’a mini, erva miúda, fina. O estereótipo de índio preguiçoso serviu, no período colonial, para defender as missões e para justificar a expropriação de territórios para os colonos. De fato, o que foi apresentado como preguiça remete a um ritmo diferente por parte dos indígenas.

FIGURA 06–REPRESENTAÇÃO DOS ÍNDIOS COMO PREGUIÇOSOS

Fonte: POMA DE AYALA, 1615, p. 885.

A base econômica das reduções foi apressadamente associada, sobretudo, na década de 1970, ao comunismo, o que ignora as formas de organização da vida econômica indígena e sua permanência no interior das missões, articulação com os caciques e a rede de relações que havia entre a missão e seu entorno. Formas de organização econômica difíceis de se reduzirem a esquemas econômicos ou ideológicos mais formais.

De modo geral, a terra e os demais bens das reduções eram a propriedade da comunidade; isso explica, por exemplo, a Guerra Guaranítica (1756-1757), que antecedeu a expulsão dos jesuítas, motivada, na ótica luso-espanhola, pela recusa dos Guarani em abandonar suas terras. Na mentalidade do antigo regime, as terras pertenciam ao rei e o súdito usufruía, então era obrigação dos índios deixá-las e transladar-se para onde os

representantes reais determinassem. A distribuição das terras para o cultivo era realizada pelos caciques, o que mostra o predomínio de famílias extensas no interior dos povoados. O mesmo se dava com as ferramentas, que eram emprestadas da missões e de uso coletivo. O mesmo com o gado. Um indígena, por exemplo, não poderia vender sua casa ou o gado. Nem toda a terra era coletiva, parte dos lotes pertencia a Deus e era administrada pelos religiosos, cuja renda destinava-se ao comércio e à manutenção do comércio externo das missões. A exploração dos ervais era uma dessas fontes.

O fruto do trabalho coletivo (pytyrõ12), instituição muito antiga entre os Guarani, era armazenado em galpões, para socorrer as viúvas, pobres e doentes. Esse resultado do trabalho coletivo era um grande chamariz de índios para as missões. Tais benefícios podem ser os únicos, mas certamente foram relevantes na hora de aceitar viver na missão, sob rígidas regras cristãs. É interessante observar que as missões jesuítico-guarani criaram novas necessidades materiais para os índios. Essa instituição explorou potencialidades culturais pré-existentes entre os índios e aí reside sua sustentabilidade econômica, durante aproximadamente 150 anos. Observa-se que essa laboriosidade indígena contrasta com as representações de índios que dormem até tarde e não utilizam suas ferramentas para trabalhar no campo. No caso jesuítico, a preguiça é apresentada como distintivo dos índios não-cristãos, mas é preciso destacar que essa é a visão jesuítica sobre uma sociedade distinta, que lida diferentemente com o tempo. Uma possibilidade distinta de análise é que, para os Guarani, o ritmo era diferente do ritmo espanhol, que via essa disparidade a partir de seu próprio mundo, ou seja, preguiça.

São constantes as referências ao gado que havia nas reduções, cavalos para trabalhos do campo e guerra, caballos del santo, reservados para as procissões, produção de milho, mandioca, batata, legumes e algodão para vestir os índios e diminuir os pecados contra a castidade. Trigo e arroz também eram cultivados nas reduções do sul e escassamente encontrados fora das reduções. Tabaco, cana-de-açúcar, laranja e vinhas foram cultivados e mencionados na documentação.

O produto mais importante, sem dúvida, era a Eva-mate (Ilex paraguariensis) por ser produto de exportação e valorizado internamente, para o consumo indígena, provavelmente por atribuírem-lhe propriedades medicinais. A disputa pelo monopólio no comércio da erva entre comerciantes portenhos e as missões aparece na historiografia como uma causa frequente das acusações dos colonos contra os religiosos da Companhia, o

que certamente influiu na sua expulsão. Entre as muitas intrigas coloniais, uma das mais relavantes era o controle dos mercados. Em Buenos Aires, os jesuítas chegaram a construir, entre 1661 e 1734, um edificação fortificada, cujo nome atual é Manzana de las Luces. O prédio abrigou um colégio da Companhia e Igreja de Santo Inácio, além de ser entreposto e empório dos produtos das missões. Os jesuítas foram frequentemente acusados de contrabando pelas autoridades coloniais. Esse prédio, ainda hoje, resiste como uma dos mais antigos de Buenos Aires, com uma rede de túneis, utilizados para fugas, em caso de ataque, e calabouços para punir índios que cometiam infrações nas reduções e precisavam ser afastados de seus povoados.

Havia produtos mais refinados, produzidos nas missões, como cera de abelha, madeiras, ervas aromáticas, incensos destinados ao consumo interno e para o escambo externo.

Por volta de 1760, havia calendários agrícolas organizados, descrição das estações e do clima, técnicas de agriculturas europeias adaptadas à América. Havia uma prática artesanal doméstica bastante difundida nas reduções. Tais atividades foram possíveis, graças à habilidade dos nativos nas artes manuais. Verificou-se a presença de outros ofícios, como marceneiros, ourives, construtores, ferreiros, curtidores de couro, fabricantes de instrumentos, encadernadores, alfaiates, sapateiros, açougueiros, copistas, pintores, tecedores, padeiros, operadores de moinho, cortadores de pedra, impressores, fabricantes de armas e pólvora. O desenvolvimento dessas habilidades foi mais intenso no fim do século XVIII, quando vieram para o Paraguai muitos jesuítas e alemães. Os Itatim, ao desenvolverem essas habilidades, não estavam mais no Itatim, mas na missão de Santa Rosa, região do Tape.

Nas reduções do Tape, os indígenas também se envolveram na operação e construção de moinhos de farinha, beneficiamento de erva-mate, produção de farinha de milho, entre outros. Pelo detalhamento dos trabalhos em pedra das missões, ainda conservados no presente, pode-se inferir sobre as habilidades dos Guarani nos ofícios manuais, o que contraria o estereótipo de pessoas, naturalmente inclinadas à preguiça. Cabe refletir que a ênfase, nas fontes jesuíticas, aos benefícios impingidos às comunidades indígenas reduzidas, com o objetivo de ressaltar o trabalho dos misionários, contribuiu para reforçar essa propaganda negativa.

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Em algumas reduções existiam máquinas de impressão, como, por exemplo, em Corpus, San Miguel, San Javier e Loreto. Na cidade de Buenos Aires, no Museo Historico

Nacional del Cabildo y de La Revolución de Mayo, há uma dessas máquinas coloniais de

impressão que, após a expulsão dos jesuítas, foi levada para o cabildo. Nas reduções foram impressos livros13 litúrgicos e de natureza mística, antes de 1800, portanto, e que, atualmente, estão sendo catalogados pelo governo argentino. Os ofícios foram introduzidos nas reduções, por irmãos coadjutores da companhia, especialmente da Alemanha. Cabe notar que essas artes e ofícios eram muito raros nos povoados coloniais o que permite afirmar que os povoados guarani-jesuíticos eram em sua maioria prósperos, se comparados com os povoados de colonos, com casas de barro, cobertas às pressas.

As construções da Companhia, ao menos dos povoados que duraram mais tempo, eram de pedra e cobertas de telhas. Um desses irmãos da Companhia, Johan Kraus, foi o responsável pela construção dos primeiros edifícios de tijolo em Buenos Aires e Córdoba e outro membro da Companhia, Joseph Klausner, de Munique, introduziu a primeira fundição de metais na Província de Tucumán. Devido ao constante estado de guerra no período colonial, era grande o número de construções fortificadas em Assunção, Buenos Aires, Tobati, San Gabriel e em outros locais públicos. Todas as muralhas eram erguidas por índios. A cristianização desses índios implicou o controle de sua mão-de-obra.

A economia das missões foi erigida sobre o trabalho manual sistemático dos índios, dirigido e controlado. As crianças também trabalhavam, quando não estavam nas aulas de catequese, bê-á-bá e música, iam para os quartos de tecelagem. As mulheres, além dos serviços domésticos, tinham de produzir para a coletividade administrada pela Companhia, entre as atividades estava o plantio de algodão. Os homens, em geral, trabalhavam dois dias da semana nos trabalhos comunais. As horas de lazer eram gastas com corridas de cavalo, expedições de caça, festas e jogos, sendo expressamente proibido o jogo de carta e de dado. As lideranças indígenas, para conservar essa condição, estavam constantemente supervisionadas pelos missionários e a produção e os bens das missões

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Há inúmeros projetos de catalogação de fundos bibliográficos coloniais em andamento na Argentina. Na Biblioteca Nacional (www.bn.gov.ar) existe o Programa nacional de catalogación, restauración y estudio histórico-crítico de la bibliografía colonial actualmente existente en la República Argentina que tem como objetivo a conclusão de um catálogo nacional unificado de libros editados antes de 1800 existentes em território argentino. Um levantamento prévio indica que existem cerca de 25 mil títulos dispersos em bibliotecas públicas e privadas. Outra iniciativa é o Fundo Companhia de Jesus em vias de digitalização na Biblioteca del Congreso de La Nación (www.bcnbib.gov.ar) com títulos de colégios da Companha de Jesus de Assunção, Córdoba e Buenos Aires.

eram rigorosamente inventariados todo ano. Enfermeiros, sacristãos, barqueiros, peões de estâncias de gado, eram mantidos com dinheiro da missão.

A comida e o vestuário eram iguais para todos, com concessões a favor dos caciques e empregados. O plantio nos roçados privados eram necessários para complementar a mesa, pois ocorriam pestes, enchentes e más colheitas que diminuíam a produção coletiva. Um caso semelhante foi relatado por Cortesão (1952) nas Missões do Itatim entre 1630 e 1633.

Quando as colheitas eram ruins, lançava-se mão do produto dos campos particulares, para complementar a alimentação. O alimento principal nas missões era a carne. No Itatim, o gado era muito valorizado e isso vinculou essa região ao colégio de Assunção que financiava a compra desse gado. Para evitar a perda da carne que sobrava, os índios faziam charques nas missões. Por essa razão, a venda de produtos das missões em Buenos Aires era estratégica, pois permitia a compra de outros itens necessários como, por exemplo, o sal.

Doentes recebiam alimentação especial, crianças, duas porções de comida por dia e o consumo de bebida alcoólica foi gradativamente substituído pelo mate. Mulheres faziam roupas e todas as famílias recebiam roupas de lã e algodão, após entregarem sua produção nas paróquias. A vestimenta, de algodão, era muito simples e os paramentos litúrgicos, tecidos em linho, eram importados. As roupas eram brancas. O traje dos homens consistiam em calções pequenos, soltos, camisa de algodão, dois ponchos de lã, um para o dia-a-dia e outro para feriados e festas. As mulheres usavam vestidos longos e soltos. Normalmente andavam descalços.

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