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2 CAPITALISMO E ECONOMIA: CONCEITOS E INTERFACES COM ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS

3 COOPERATIVISMO, AUTOGESTÃO, ECONOMIA SOLIDÁRIA E EMPRESAS RECUPERADAS: RELAÇÕES E INTER-RELAÇÕES

3.3 Economia solidária

Economia solidária, segundo Gaiger e Laville (2009), é um conceito amplamente utilizado, com variadas acepções que orbitam em torno da ideia de solidariedade, contrastando com o individualismo competitivo característico do comportamento econômico padrão das sociedades capitalistas. Os princípios que caracterizam a economia solidária são conhecidos desde o advento do capitalismo industrial, no século XIX, quando ganharam impulso as iniciativas mutualistas, associativas e cooperativas, que serviram de base à experiência da economia social, em vários países do Norte e em alguns países do Sul. As atividades solidárias constituíram um modo de resposta de trabalhadores submetidos à proletarização diante da turbulência social causada pela revolução industrial. (VERONESE, GAIGER e FERRARINI, 2017)

Em relação às origens da economia solidária contemporânea, já nas primeiras décadas do século XX, a economia social europeia, que é citada como uma das origens da economia solidária atual, fez oposição às tendências de redução da economia capitalista ao princípio do mercado e à racionalidade da acumulação privada. A partir da década de 1970, com a crise de regulação keynesiana, que resultou no desequilíbrio social, surgiu uma série de experimentações sociais, proporcionando novo vigor às práticas associativas e de solidariedade econômica. Ao Norte, a economia social retomou seu movimento crítico e participativo enquanto que, simultaneamente, no Sul, surgiram ou se revitalizaram experiências análogas. (VERONESE, GAIGER e FERRARINI, 2017)

Essas manifestações de práticas associativas e solidariedade econômica no Norte e no Sul ocorreram em diferentes realidades e contextos, conforme descrevem Veronese, Gaiger e Ferrarini (2017, p. 91):

No contexto latino-americano, por exemplo, associações, grupos informais, cooperativas, empresas de autogestão, iniciativas locais no campo dos serviços sociais e de assistência a pessoas necessitadas, empresas sociais e finanças solidárias, além

de mecanismos correlatos de fomento e de organizações representativas, expandiram- se entre categorias sociais colocadas à margem dos sistemas convencionais de ocupação e renda, ou frustradas em suas aspirações individuais e coletivas.

No Brasil, o termo ‘economia solidária’ ganhou expressão e oficialidade a partir dos anos 1990, quando surgiram iniciativas econômicas reconhecidas por sua natureza associativa e suas práticas cooperativas e autogestionárias. Com a sua expansão, a economia solidária passou a englobar várias categorias sociais e diversos modos de organização, dentre os quais: unidades informais de geração de renda; associações de produtores e consumidores; sistemas locais de troca; comunidades produtivas autóctones; e, cooperativas, dedicadas à produção de bens, à prestação de serviços, à comercialização e ao crédito. (VERONESE, GAIGER e FERRARINI, 2017)

As experiências relacionadas à economia solidária têm por característica algum grau de socialização dos meios empregados na atividade econômica, dispositivos de cooperação no trabalho, gestão democrática e participativa e envolvimento em ações mais ampliadas, sempre a partir do entorno dos empreendimentos. Gaiger e Laville (2009), entendem que, quando estendida ao seu entorno, a solidariedade estimula sistemas ampliados de reciprocidade, nos quais as vivências concretas de gestão do bem comum conferem um novo valor às noções de justiça e de interesse público. Esse sentido alternativo depende de a economia solidária responder de forma simultânea a requerimentos econômicos e da promoção de experiências significativas de trabalho, conduzidas pela equidade e por laços sociais de cooperação e participação. (GAIGER e CORRÊA, 2011)

No esforço de esboçar uma definição mais objetiva, pode-se dizer que os empreendimentos econômicos solidários (EES) são sociedades que desempenham atividades econômicas de produção, comercialização, financiamento e consumo e que são geridas democraticamente pelos trabalhadores que dela participam. Para Suarez (1992, p. 129) “la

primera motivación que impulsa a la comunidad a conformar este tipo de instituciones, en oposición al interés económico de las anteriores, es el hombre y no el dinero como centro de atención y objeto de existir.”

Na compreensão desse autor, em tal tipo de empreendimento estão inseridas as cooperativas, os fundos de empregados, as associações e outras instituições que, não tendo o lucro por objetivo primeiro, prestam serviços aos seus associados. Complementa afirmando que esse grupo de organizações é cada vez mais importante no contexto econômico e social de qualquer país “por su dimensión, versatilidad, proyecciones y efecto socioeconómico, ha

venido en forma espontanea y paulatina constituyendo lo que ha dado en llamarse el sector de la economia solidaria.” (p. 129)

A economia solidária surge fortemente associada a uma crítica de que grande parte das experiências econômicas pautadas em princípios não capitalistas – sendo as cooperativas sua maior expressão – acabavam se adaptando ao mercado competitivo e reproduzindo a lógica mercantil. Portanto, em relação à inserção das cooperativas no campo da economia solidária, Gaiger (2013) argumenta que sobre isso paira um dissenso, o que não é de surpreender, “quando se tem em vista que a história do cooperativismo foi motivada por aspirações, projetos e concepções diferentes, nos quais radicam avaliações contrastantes sobre seu sentido e suas virtudes.” (p. 212) Em razão disso, o surgimento de cooperativas populares no âmbito da economia solidária, em um período de flexibilização das relações de trabalho e do predomínio do cooperativismo empresarial voltado aos resultados, não as isentaria de diferentes interpretações e de suspeitas, que seriam atenuadas apenas com o decorrer dos fatos e das pesquisas.

Paralelamente ao domínio capitalista, desde o século XIX, estratégias associativas e cooperativas buscam assegurar melhores condições de vida aos trabalhadores por meio de formas distintas da racionalidade estrita do capital em relação à produção de bens, à organização do trabalho e à circulação de riqueza. Essa estratégia histórica dos trabalhadores é reeditada pela economia solidária, “vinculada umbilicalmente ao movimento operário em seus primórdios, mas dele posteriormente cindida em muitos lugares, por óbices políticos mais do que por singularidades supostamente irredutíveis.” (GAIGER, 2013, p. 212)

Os empreendimentos da economia solidária (EES) compreendem as diversas modalidades de organização econômica que têm origem na livre associação dos trabalhadores e são baseadas em princípios de autogestão, cooperação, eficiência e viabilidade. Esses empreendimentos apresentam-se sob a forma de grupos de produção, associações, cooperativas e empresas de autogestão, combinando as atividades econômicas com ações voltadas à educação e à cultura, valorizando o sentido da comunidade de trabalho e compromisso social com a comunidade onde estão inseridos. (GAIGER, 2009)

Para Gaiger (2013), na década de 2000 houve muitas iniciativas com o objetivo de promover a economia solidária como um instrumento de geração de renda e coesão social. Isso a transformou em objeto de políticas públicas específicas e de programas transversais. De acordo com esse autor, atualmente o campo da economia solidária pode ser analisado a partir de quatro segmentos principais: 1) empreendimentos solidários, caracterizados por atividades econômicas de produção, prestação de serviços, comercialização, finanças e consumo; 2)

organizações civis de apoio à economia solidária, envolvendo organizações não

governamentais, universidades, entidades sindicais e organismos de pastoral social, que atuam de forma pioneira desde os anos 1980; 3) órgãos de representação e articulação política, envolvendo diversos segmentos no âmbito dos movimentos sociais, das incubadoras, dos gestores públicos, das entidades de crédito solidário, das redes de troca, dentre outros; e 4)

organismos estatais, que estão à frente de programas públicos de economia solidária.

No Brasil, estes empreendimentos assumem diferentes formatos jurídicos. De acordo com dados do segundo mapeamento de economia solidária, conduzido por Gaiger & Grupo Ecosol (2014), cuja coleta de dados refere-se ao ano de 2013, 60% dos empreendimentos econômicos solidários assumem a forma de associações, 30,5% são informais, 0,6% são sociedades mercantis e 8,9% são cooperativas. Mapeamento semelhante realizado no Rio Grande do Sul, em duas fases (fase 1 em 2010; fase 2 em 2013), indica que “um pouco mais da metade (52%) dos EES é de grupos informais, 30% de associações, 16% de cooperativas e 2% sociedades mercantis, ou seja, empresas solidárias.” (SESAMPE-DIFESOL, 2013, p. 7)

As empresas de autogestão, segundo Gonçalves (2005), são aquelas que frequentemente nascem do fracasso de uma empresa anterior, pressupondo a existência de uma atividade econômica já organizada e que passa a ser comandada pelos trabalhadores que dela faziam parte como empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Quando se refere às empresas de autogestão, Gutierrez (1997) afirma que são experiências que refletem o conflito tradicional entre capital e trabalho e que propõem uma solução tão difícil quanto fundamental para construir uma sociedade mais justa, igualitária e fraternal. Nesse sentido, a empresa autogerida deve conciliar os objetivos de uma empresa tradicional com as especificidades da autogestão, priorizando sempre os seus membros ao possibilitar-lhes crescimento intelectual, moral e financeiro, num ambiente em que não tenham receio de se expor ao participar da construção discursiva da vontade coletiva.

No Brasil, a Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão (Anteag), criada no ano de 1994 com objetivo de representar e assessorar as empresas de autogestão que estavam se formando na época, e também impulsionar novas formações, considera empresa de autogestão, segundo Verardo (2003, p. 59) “os empreendimentos econômicos cuja gestão é exercida democraticamente pelos trabalhadores, organizados sob a forma de responsabilidade limitada, sociedade anônima ou sociedade cooperativa.” Além disso, esses empreendimentos precisam cumprir, de modo cumulativo, nove requisitos:

1- inacessibilidade das quotas-parte ou ações do capital a terceiros, estranhos à sociedade;

2- direito do trabalhador de votar e ser votado para qualquer cargo, inclusive de direção, com cada membro tendo direito a apenas um voto;

3- controle do poder de decisão e da gestão da empresa pelos trabalhadores, com participação direta e indireta nas decisões;

4- diferença entre a maior e a menor remuneração dos trabalhadores autogestionários não superior a seis vezes (excepcionalmente, havendo necessidade, essa diferença não pode atingir mais que 3% do total de trabalhadores, e deve ser aprovada em assembleia específica para esse fim);

5- proibição de contratação de outros trabalhadores a não ser que o número da contratação seja inferior a 1% dos trabalhadores cooperados ou associados;

6- existência de mecanismos democráticos de gestão e definição em assembleia, de questões como política de remuneração, política disciplinar, política de recursos humanos, formas de organização da produção e destino dos resultados e excedentes; 7- adoção dos princípios de autogestão: tomadas de decisão democráticas e coletivas,

transparência administrativa, solidariedade e fraternidade entre os companheiros, valorização das pessoas e cidadania;

8- resgate dos conceitos de eficiência e qualidade, não limitados aos benefícios materiais, mas também à eficiência social e à qualidade de vida; e

9- desenvolvimento integral que busca sustentabilidade, justiça social e econômica, responsabilidade ambiental e democracia não apenas social, mas também econômica.

Observando-se os requisitos descritos e outras características e princípios das empresas de autogestão elencadas, nota-se a similaridade entre estes e os valores e princípios do cooperativismo. Entende-se que o cumprimento desses requisitos permite que os princípios da autogestão sejam efetivamente colocados em prática. Isso é importante para que os empreendimentos que nascem autogestionários não se tornem simples empresas adaptadas às regras do capitalismo e deixem de ser uma alternativa a esse sistema.

Para que isso se viabilize, é fundamental que as empresas de autogestão tenham uma consistente fundamentação ideológico-doutrinária, com seus valores, princípios, normas e sua visão da sociedade e do sistema econômico alternativo e emancipatório a construir. Considerando que as empresas de autogestão frequentemente têm sua constituição a partir do encerramento das atividades de uma empresa anterior, sendo conhecidas como empresas recuperadas por trabalhadores (ERTs), na sequência são destacadas algumas de suas características.