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Compreendendo a conjuntura no Brasil governado por Lula como desafiadora para quem segue acreditando que fazer diferente é possível, necessário e urgen- te, Sonia Kruppa confrontou o modelo neoliberal de educação – que visa educar o sujeito para ser mais produtivo – com a Economia Solidária, compreendida como autogestão e pedagogia construtora do socialismo.

A educação produtivista encara o sujeito como instrumento da produção, reduzindo-o a um operador do sistema capitalista, baseado na exploração. A Economia Solidária como proposta de formação apreende o trabalho e o sujeito como ser autônomo e coletivo.

Kruppa embasou suas reflexões na trajetória como educadora na Incubadora de Cooperativas Populares da USP e na Secretaria Nacional de Economia Solidá- ria, do Ministério do Trabalho, criada em 2003 a partir da mobilização do Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Na Secretaria, junto com Paul Singer, vivenciou

o diálogo entre a economia solidária e a educação de adultos13.

Sonia abordou a Economia Solidária como ato pedagógico14 em si mesmo, na

medida em que propõe nova prática social e um entendimento novo desta práti- ca. A única maneira de aprender a construir a Economia Solidária é praticando-a. Mas seus valores fundamentais precedem sua prática e exigem que as pessoas formadas no capitalismo sejam reeducadas.

Essa reeducação tem de ser coletiva, pois deve ser de todos os que efetuam em conjunto a transição do modo competitivo ao cooperativo de produção e distri-

13 Para uma sistematização deste diálogo, ver “Economia solidária e educação de jovens e adultos”, organizado por Sonia M. Portella Kruppa, 104 p, Brasí- lia: Inep, 2005.

14 Esta abordagem esta referida ao texto “A Economia Solidária como ato pedagógico”, de Paul Singer, publicado na sistemati- zação referida na nota anterior.

buição. Essa reeducação coletiva representa um desafio pedagógico, pois se trata de passar a cada membro do grupo outra visão de como a economia de mercado pode funcionar e do relacionamento cooperativo entre sócios.

A pedagogia da Economia Solidária requer a criação de situações em que a reciprocidade surge espontaneamente, como o fazem os jogos cooperativos. Im- porta menos o aprendizado do comportamento adequado do que o sentimento que surge da prática solidária.

A Economia Solidária é produzida tanto por convicção intelectual como por afeto pelo próximo com o qual se coopera. Todos têm inclinação tanto por com- petir como por cooperar. Qual dessas inclinações acabará por predominar vai depender muito da prática mais freqüente, que é induzida pelo arranjo social em que o sujeito nasce, cresce e vive.

Os que se formam no capitalismo, sobretudo em sua forma exasperadamente liberal (como nos EUA), são postos em situações de competição desde a infância, na família e na escola. Ainda assim, na necessidade ou em situações de exclusão, as pessoas percebem que a solidariedade e o coletivo são os meios de se procurar uma saída. É isso o que acontece quando pessoas vêem-se excluídas do emprego? Muitas delas optam por unir-se a seus iguais para formarem um empreendimen- to solidário. Mas o recurso à Economia Solidária não se deve unicamente ao te- mor de ficar desempregado por longo tempo ou permanentemente. No trabalho que está sendo feito nas Incubadoras Universitárias de Cooperativas Populares, jovens das universidades públicas tem feito essa opção por acreditá-la melhor.

No Brasil, a freqüente opção pela Economia Solidária por trabalhadores com ponderável vivência sindical explica-se por seus valores. A idéia de que no novo empreendimento ninguém vai mandar e nem obedecer, de que a assembléia dos sócios tomará todas as decisões como é habitual no sindicato, é aceita como a única maneira de manter os trabalhadores unidos e empenhados em garantir o empreendimento solidário.

A educação que a luta de classes proporciona aos operários está embebida em valores solidários e igualitários, que estão na base do socialismo, enquan- to projeto e utopia. Os trabalhadores, assim como os pequenos produtores de mercadorias e os pobres em geral, inclinam-se espontaneamente à Economia Solidária, sempre que têm ensejo de realizar autonomamente alguma atividade econômica, de forma coletiva.

A partir dessa inclinação espontânea a tarefa pedagógica impõe-se. Por terem sido subalternos e alienados da gestão do empreendimento, que agora lhes in- cumbe não só operar, mas dirigir, os trabalhadores não estão preparados para a tarefa. Eles têm de ser ensinados e eles sabem disso.

A Economia Solidária no Brasil de hoje está sendo ensinada por educadores ou incubadores, jovens e inexperientes na sua maioria, que estão enfrentando a difícil tarefa de manter e desenvolver seus empreendimentos tecnologicamente atrasados e insuficientemente capitalizados.

A efetividade desse ensino decorre provavelmente da estreita conexão entre seus fundamentos teóricos e sua aplicação prática. Diz Paulo Freire: “Ninguém ensina nada a ninguém; aprendemos juntos”. Isso se aplica inteiramente à Eco- nomia Solidária, enquanto ato pedagógico. Docentes e discentes são igualmente inexperientes. Os primeiros possuem conhecimentos teóricos, os segundos o sa- ber que se adquire por tentativa e erro na prática. Nessa interação, produz-se um auto-aprendizado mútuo.

Para refletir a respeito do pensamento de Paulo Freire como um elemento integrador de práticas no meio popular, Pe. Beozzo abordou diversas experiên- cias dos anos cinqüenta e sessenta relacionadas à valorização da cultura popular como forma e conteúdo para a educação, “um período extremamente rico, em lugares diferentes e com propostas diferentes”.

No Brasil, esta foi uma época em que “brotava dentro das universidades a preocupação em como conectar o mundo universitário com o universo popular”. Alastraram-se pelo país iniciativas de criação de Centros de Cultura Popular e dos Círculos de Cultura Popular. A UNE “saiu fazendo teatro pelo Brasil afora”. Houve também o apoio governamental em Recife, especificamente durante a administração do governador Miguel Arraes, aos trabalhos de Paulo Freire.

A partir de experiência de educação de base de camponeses, pelo rádio, no Rio Grande do Norte, foi articulado o MEB, Movimento de Educação de Base, assumido inicialmente por algumas dioceses e depois pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Baseado na metodologia de Paulo Freire, o MEB, a partir de convênio com o Ministério da Educação, em 1961, chegou a atingir no Nordeste e no Norte do país, meio milhão de camponeses, com seu programa que incluía alfabetização de adultos, educação no campo da saúde, do trabalho, da cidadania, da organi- zação sindical e da participação política e era difundido por uma ampla rede de Rádios. Na zona rural, onde não havia eletricidade, eram usados rádios de pilha, sendo os grupos acompanhados por monitores populares. De escopo amplo e condizente com a realidade à qual se direcionava, a cartilha do MEB, “VIVER É LUTAR” se inseria num movimento cultural e social libertador que abrangia ques- tões da terra, do trabalho, da organização popular. Tratava também “de saúde”, discutindo, por exemplo, a necessidade de se ferver e filtrar a água das cacimbas, de construir latrinas em lugares adequadas, para não contaminar a água do poço e etc., para evitar assim aquela que era a maior causa da mortalidade infantil: infecções intestinais produzidas pela água contaminada.

O MEB foi sementeira para o desabrochar de organizações dos trabalhadores rurais, como os primeiros sindicatos da Zona da Mata de Pernambuco, Paraíba e Alagoas. Pessoas saídas dos Grupos de alfabetização tornaram-se lideranças no campo sindical e político, provocando mudanças nos municípios. Ao aprenderem a ler e escrever, muitos camponeses iam em bloco tirar os seus títulos de eleito- res, o que implodia currais eleitorais dos interior, dominados pelos tradicionais coronéis e suas famílias.

O pensamento de Paulo Freire