• Nenhum resultado encontrado

Ricoeur (2014) é muito elucidativo ao discutir como se dá a construção do si mesmo sob a forma de enunciados. Para que o sentido de um enunciado se complete, antes de tudo, é necessário compreender que este é um fenômeno bipolar, em que existe um locutor e um interlocutor ou, como o autor se refere, um “eu” que diz e um “tu” a quem o primeiro se dirige. Para que o entendimento posterior do tema seja eficaz, deve- se sempre ressaltar a importância da segunda parte na recepção do enunciado.

Esse novo tipo de investigação é promissor na medida em que põe no centro da problemática não mais o enunciado, porém a enunciação, ou seja, o próprio ato de dizer, que designa reflexivamente o seu locutor. A pragmática põe assim diretamente em cena, a título de implicação necessária do ato de enunciação, o ‘eu’ e o ‘tu’ da situação da interlocução. (RICOEUR, 2014. p, 19)

O autor completa o raciocínio trazendo ao estudo a teoria da enunciação, pois esta ajuda a compreender melhor o papel do locutor e do interlocutor. A teoria trazida por Ricoeur (2014) aponta que toda enunciação consiste numa intenção de significar que implica, em sua visada, a expectativa de que o interlocutor tenha, por sua vez, a intenção de reconhecer a intenção primeira por aquilo que ela quer ser (RICOEUR, 2014. p, 24).

Refletindo sobre a interlocução dessa maneira percebemos que ela se refere, antes de tudo, a uma troca de intencionalidades, exigindo assim que a reflexividade da enunciação e a alteridade implicada na estrutura dialógica da troca de intenções sejam colocadas no mesmo plano. Ao considerar que o locutor e o interlocutor possuem funções determinantes para que a enunciação cumpra seu objetivo, podemos entender a finalidade da relação e assim compreender melhor como se dá a determinação do si, seguindo a partir de então para o entendimento sobre o sujeito da enunciação.

É preciso considerar, também, a individualização de coisas e pessoas, citada por Ricoeur (2014) em seu estudo, a qual os indivíduos precisam executar para que seja possível evidenciar aquela pessoa ou coisa de um meio onde ela se enquadra. Claramente,

que antes de individualizá-la, o indivíduo precisa colocá-la em meio uma classe ou grupo, para que uma primeira imagem comum seja formada. Após isso, os elementos específicos da coisa/pessoa começam a ser explorados para que a identificação minuciosa seja possível. O autor fala em três classes operadoras de individualização: a descrição, os nomes próprios e os indicadores. Essas classes são determinantes para que a individualização seja efetiva, pois elas distinguem qualquer coisa ou pessoa de um meio padrão. Entretanto explorar em profundidade as classes operadoras de individualização não é o objetivo desta pesquisa, mantendo o foco nos indicadores principais.

O “eu” é o principal indicador de individualização. Existem outros indicadores principais, o “isto”, o “aqui” e o “agora”, sendo todos chamados de operadores de individualização, pois sempre farão referência ao enunciador, mas dentre eles o “eu” é o eixo desse sistema, porque não é possível substituí-lo por nenhuma descrição, por mais fiel e exata que ela seja. A eficiência dos são determinantes quando precisamos saber a posição do sujeito no discurso.

Ricoeur (2014) busca compreender também como o “eu-tu” de uma interlocução em dado momento se transforma num “ele”. Mas o que ele quer dizer com isso? O autor explica que no início da interlocução existe a figura de um “eu” que fala para e sobre um “tu”, porém ao usar-se como referência nesse processo ou usar o receptor, ambos se transformam nesse “ele”. Não se trata de um mero intercâmbio de pronomes pessoais, mas de posicionamentos assumidos na situação da interlocução que são essenciais para a compreensão do que o autor denominou de teoria integrada do si no plano linguístico.

Diante desta menção ao autor, é possível que, a partir de agora, tenhamos uma melhor compreensão do que é ser hit no LDRV.

Quando pensamos na palavra hit, que quer dizer sucesso em inglês, à primeira vista, segundo o senso comum, traria referências relacionadas ao mundo da música, uma música de sucesso. O termo se origina desta concepção. Entretanto o ambiente virtual, especialmente o brasileiro, tende a mudar ou adaptar o sentido de alguns termos. O hit atualmente virou o verbo hitar, que tem o sentido semelhante ao original, mas que não se aplica exclusivamente ao mundo da música. Hoje tudo o que faz sucesso é hit e todo mundo pode ser capaz de hitar. O verbo se tornou mais acessível e abrasileirado, porém para conseguir representá-lo com êxito, é preciso ter sorte ou muita criatividade.

No LDRV, grupo com grandes proporções, vemos diariamente uma caça incessante pelo “hit próprio”, por isso milhares de publicações enchem o feed dos integrantes do grupo todos os dias. Um bordão foi criado para o momento em que o autor

da publicação percebe que a repercussão do seu post começa a crescer, a frase é: “Não acredito que virei tour!”, ou ela se adapta ao assunto abordado, por exemplo “não acredito que meu encontro fail virou tour”. O que pode ser considerado tour são as histórias contadas pelos membros, mas para ser considerado hit ela precisa ter uma repercussão muito maior

Podemos observar essa diferença entre as publicações que selecionamos. Todas podem ser consideradas tour, possuem enredo, personagens e, principalmente, a interação dos membros do LDRV. Contudo, apenas três das oito publicações são hits, pois nelas as reações por botão do Facebook e os comentários são contabilizados na casa numeral dos milhares. Sob a ótica de Ricoeur (2014), percebemos que as histórias são narradas com um ponto em comum: o protagonismo do LGBTI. Esse sujeito que narra e que protagoniza a história se dirige a um interlocutor específico, os integrantes do grupo que também fazem parte da comunidade LGBTI.

Não há, no entanto, uma fórmula pronta para o hit, por isso perguntamos73 para Kaerre Neto e ele relatou o que pensa ser a forma mais perspicaz de alcançar o sucesso de uma publicação, quais os principais pontos para hitar:

Existem duas formas pra você hitar no LDRV: ou você postar uma coisa que todo mundo vai se identificar e vai falar assim “poxa vida, que legal, isso também acontece comigo” ou você vai postar uma coisa que é inusitada, a ponto de não acontecer com ninguém, e deixar as pessoas estonteadas de certa forma. Essas são as duas formas “prontas” se você quiser hitar no LDRV. As outras formas de hitar no LDRV são as mesmas formas de viralização que a gente vê ai, não tem uma fórmula pronta. Viraliza porque as pessoas gostam e porque é engraçado, mas esses (outros citados) são dois caminhos certos. (KAERRE NETO, 2019)

A melhor forma de ilustrar esse percurso é detalhando uma tour que hitou no LDRV e está presente nesta dissertação, é a publicação da Maria Carolina, apresentada no tópico anterior. A paranaense fez a sequência exata, primeiro compartilhou com o grupo qual era a sua intenção com aquela tour, que era assumir sua sexualidade para seus pais e pediu dicas. Compartilhou com o grupo, inclusive, a captura de tela do aplicativo na qual marcava com os pais a conversa, sendo esta uma estratégia para comprovar a veracidade da história e também para gerar o suspense em torno dela, colocando, ao longo do dia, suas expectativas e seu nervosismo na publicação por meio dos “edits”. Para concluir a tour com êxito, a autora ainda colocou o desfecho que, além do mais, era

positivo e de aceitação. O tema importante e que gera comoção e identificação entre os membros do grupo auxiliou no sucesso da postagem. Ademais, Maria Carolina detalhou a história, destacou momentos importantes, descreveu a tensão que marcou a conversa com os pais, que quase precisou ser adiada por conta de uma visita inesperada e conseguiu envolver todos na emoção de sua narrativa, por isso sua publicação conseguiu o status de

tour e de hit.

Miskolci (2017) fornece pistas importantes para se depreender a importância da busca pela visibilidade no grupo. O autor considera que a visibilidade, especialmente no que tange a homossexuais, foco específico de sua pesquisa, auxilia em suas lutas diárias, o que, no entanto, está diretamente relacionado a um contexto, a uma época e cultura particulares. Ela se torna uma relação social, relacional e estratégica (p. 268). Por meio da visibilidade pode-se alcançar representatividade e conquistar espaços na vida social. Quando o sujeito se posiciona e cria sua imagem, busca mudar um pouco ou aos poucos a imagem da comunidade, por exemplo, como o Miskolci (2017) pontua que alguns grupos sociais que, no passado, foram ignorados, tendem a ser hipervizibilizados como inferiores, anormais ou desviantes (p. 269), ou seja, alguns grupos que antes não eram sequer vistos, hoje podem ser, porém de forma negativa.

Miskolci (2017) favorece a compreensão quando aponta:

Quando um regime de representação serve aos grupos socialmente privilegiados, ele influencia as mídias a retratarem grupos historicamente subalternizados como mulheres, negros, homossexuais e imigrantes de forma injusta e distorcida. Quer sejam invisibilizados e, portanto, ignorados como se não fizessem parte da sociedade, quer sejam hipervisibilizados como inferiores, perigosos ou monstruosos, terminam por serem compreendidos e tratados como um problema social, objeto de repreensão moral, perseguição política ou práticas normalizadoras. (MISKOLCI, 2017. p, 270)

E construir a imagem da comunidade LGBTI com relatos sobre temas legítimos e comuns tendem a agregar mais, pois outros indivíduos se identificam e passam a reforçar a imagem que se cria. A visibilidade acaba por ser negociada com a conquista de um espaço, que parece ser de uma pessoa, mas que na verdade tem outros símbolos incorporados. Se o indivíduo que faz parte dessa classe ou comunidade e se posiciona publicamente, ele pretende reconstruir a imagem de si, que pode ter influência, a depender de sua repercussão, na modificação da imagem atual de seu grupo ou comunidade.

A pesquisa de Miskolci (2017) volta-se aos relacionamentos que se originam no Grindr, aplicativo de relacionamentos de homens gays, em que muitos dos que ali se

mostram constroem uma imagem máscula e viril, performando a heteronormatividade e condenando os homens gays que não a fazem. É importante ressaltar que a pesquisa em que se ancora este trabalho caminha em outra direção. Primeiramente porque se trata da comunidade LGBTI como um todo, não restringe às performances heteronormativas de homens gays, pelo contrário, a visibilidade que é trazida no contexto desta pesquisa é no sentido de quebrar padrões. O homem masculino ideal se torna uma figura satirizada naquele ambiente. Observa-se que a visibilidade buscada no seu interior questiona a heteronormatividade. O grupo faz uso do ambiente da internet para tecer e tornar visível outra imagem de si, ainda que seja entre seus pares, uma forma de resistir e negar a imagem historicamente construída da comunidade LGBTI, que a menospreza e inferioriza socialmente.