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EDUARDA – Ainda é tua mãe, e não eu Não é por mim, é por tua mãe [violenta] Mas não importa [espantada] O que eu não quero é que ele [aponta

Rodrigues: tendências individualizantes entre a belle époque e os anos dourados.

D. EDUARDA – Ainda é tua mãe, e não eu Não é por mim, é por tua mãe [violenta] Mas não importa [espantada] O que eu não quero é que ele [aponta

para o marido] me queime com o seu hálito... [olhando ainda para Misael] Nem que me olhe como se eu estivesse nua... [num anseio maior] Vamos... Leva-me... Para bem longe, para onde nem sonho do meu marido possa me alcançar...179.

O destino da família é fúnebre, misterioso, coberto de segredos, ao avançar na narrativa quando a trama começa a dar suas respostas, o clima de transgressão vai aumentando e aquela ordem imposta vai sendo aos poucos alterada, substituída pelas revelações d as personagens. A relação de D. Eduarda e o noivo da filha, é uma delas, a suposta moralidade tão perseguida pelas mulheres da família é quebrada, como se D. Eduarda fosse a grande culpada da morte da mãe do noivo de sua filha, que era uma prostituta do cais, que no dia do casamento de Misael fora morta, pois a prostituta era contrária a sua união conjugal.

141 Misael, depois de ter matado a prostituta, assume o estereótipo de marido moralista. Ele mata a prostituição que havia dentro dele e não admite nenhum deslize por parte de quem quer que seja. Posteriormente Misael descobriria que o noivo de sua filha era o filho que tivera com a prostituta assassinada. Todos os anos, nesta data, quem clama por vingança são as prostitutas do cais, que não deixam Misael esquecer o crime. Os acontecimentos circulam em torno da família com a presença dos vizinhos que fazem o papel de coro, entre a tragédia e os espectadores. Ao longo de quase suas décadas, Misael e D. Eduarda rezam na cartilha do patriarcado. O casal aparenta um relacionamento sólido e eterno. Repentinamente, as filhas mais novas da família, uma a uma, morrem afogadas.180

Surge a questão da condenação das personagens por transgredir a ordem vigente, aquele ou aquela que rompe com os desígnios, é severamente punido (a) e sofrerá com as consequências de seus atos. Na dramaturgia de Nelson Rodrigues esse destino inexorável de suas personagens é característica estilística de sua concepção teatral. Aqueles que se colocam contra a ordem natural das coisas sofrerá pelos seus pecados, não alcançando seus objetivos. É na família que tudo acontece, que se origina os pecados que levam a sua própria decadência.

Nelson Rodrigues apresenta e faz uma crítica contundente aos sujeitos envolvidos na trama familiar de Senhora dos Afogados, na forma como escolheram as suas ações, expondo aquilo de mais hipócrita que existe. Por trás do moralismo exacerbado, sempre existem problemas pessoais, desejos inconfessos, sentimentos fora de ordem mencionados pelo dramaturgo que expõe de forma veemente o desfecho para aqueles que não conseguem seguir as regras preestabelecidas. Ninguém consegue sair ileso, cada um traz a sua carga de culpa seja ela determinante, ou não, mas todos são afetados, sem exceção.

O universo de perversões e desvario faz parte da trajetória psíquica das personagens, irradiando situações as quais aparecem as mais terríveis confissões que afloram a cada momento do texto teatral do dramaturgo, que por ação da natureza, não se cansam de atuar. A vida familiar é colocada em questionamento, quando as regras do lar são violadas. Mas esse olhar do dramaturgo direciona-se para os sujeitos dentro do núcleo familiar. São eles os responsáveis pela degeneração da instituição. O dramaturgo se sente incompreendido diante das mazelas e crises que permeiam o universo familiar carioca, e faz de seu teatro um meio de denúncia ficcional daqueles que estão degenerando a instituição capaz de conduzir os sujeitos a civilidade e comunhão de afetos.

142 Essa família, depositária de valores românticos, os quais Nelson Rodrigues expõe como lugar comum de ponto de partida de sua ficção, é supervalorizada pelo dramaturgo, que faz dela uma entidade acima de seus ocupantes, ou seja, é na família que o ordenamento social se concretiza, fora dela só existe a infelicidade e a incompreensão diante da vida. O dramaturgo é muito sutil ao elaborar uma visão de que os sujeitos que abnegam os valores familiares não conseguem atingir a sua redenção, esses ficam perdidos na existência humana, incapazes de alcançarem a liberdade. Sem a família não existe salvação e a fuga é a punição dos pecados.

Nelson Rodrigues foi incompreendido em seu tempo, seus censores não cansaram de revelar sua face de deturpador dos bons costumes, quando na verdade ele estava mostrando a incapacidade das pessoas de reproduzirem os padrões de conduta vigentes. Essa é a grande

insight de sua obra. Mas preferiram crucificá-lo, deixando a sua obra numa condição de

marginalidade, pelos temas e juízos de valor conferidos as suas representações do cotidiano carioca. Fato que todas as vezes que o governo, a igreja ou algum órgão da sociedade ameaçava impedir a encenação das peças ou de partes dela, o autor não ficava de braços cruzados”181

Na medida em que a narrativa avança percebe-se dentro do enredo mítico que o destino das personagens acabará de forma trágica, foram arrastadas por uma força que as imobiliza ou as potencializa para situações que escapam de seu controle emocional. A quebra da fidelidade genealógica da família Drummond é o que movimenta a trama é dá sentido a característica mítica da peça.

Misael, enfeitiçado pela filha, decepa as mãos da esposa traidora. Em um compromisso com sua culpa, matar somente o que foi ativo aparentemente soluciona o impasse causado pela traição da esposa. D. Eduarda havia se vingado de seu marido e de sua submissão ao matrimônio; agora, morre de saudades das próprias mãos... literalmente. Nesta metáfora, D. Eduarda morre com a mãe. Agora, aquilo que simbolicamente representa um parentesco e uma semelhança entre elas, não as une mais. Morre também sua possibilidade de ser ativa, já que são as mãos que cometem adultério. Agora as circunstâncias são outras, fazendo com que os parentescos também não sejam os mesmos. Moema deixa de ter os laços simbólicos, através das mãos, com sua mãe. Moema deixa de ser filha. No momento em que não é mais filha, pode passar a ser mulher de seu próprio pai. Quando Moema pensa ter seu maior desejo realizado, Misael morre em seu colo, deixando a filha só. Uma completude pretendida é barrada pelo destino, que coloca nossa heroína diante de si mesma, e impõe para ela, que desejava um gozo pleno, a ausência de

181OMS, Carolina. Nelson Rodrigues e a censura teatral. Revista Anagrama – Revista Interdisciplinar da Graduação Ano 2 -

Edição 2 – Dezembro de 2008/Fevereiro de 2009. p. 1. Disponível em: < file:///C:/Users/leand/Downloads/35353-

143 tudo. Nada mais resta a Moema, que perde a sua própria imagem no espelho, como quem perde sua própria alma, sua própria imagem no espelho, como quem perde a sua própria alma, sua própria identidade. Moema tivera um objetivo, um delírio que não poderia ser outra coisa senão um ponto a ser buscado e jamais alcançado. A concretização de tais fantasias é inaceitável, caso contrário enlouquece-se, como acontece com estas personagens.182

O dramaturgo encerra a peça com a punição daqueles que agiram de forma errônea, através de práticas transgressoras em Senhora dos Afogados. Assim o clima imposto da casa burguesa não foi plenamente mantido, o que resta é a danação dos sujeitos no interior do sistema de aparências e desejos inconfessos. Moema na peça não alcança a redenção, seu pai morre em seu colo, esse desfecho aponta para a punição de Moema e de seu pai, pelas atitudes tomadas dentro do círculo familiar, como o incesto, este por sua vez, extremamente abominado, mas que sua proibição:

[...] é considerada um dado fundador da cultura, pois ao impedir que parceiros sexuais fossem encontrados em círculos próximos, levou-os a se relacionarem com grupos mais distantes, criando regras intrincadas sobre o exercício da sexualidade, defeso entre parentes consanguíneos. Assim, o incesto é interpretado como o motor que levou a humanidade a passar do estado natural para o cultural.183

Esse retorno ao estado natural do homem marca o teatro de Nelson Rodrigues, ao sondar o que de mais animalesco e primitivo marca a trajetória da espécie humana, colocando o incesto na ordem do dia, comum ao núcleo familiar, sondando as raízes humanas antigas, naquilo de mais visceral da manifestação humana na terra. Por mais que o incesto fosse uma macula na história humana, como algo nefasto as relações familiares, o dramaturgo salienta que ele sempre volta e ronda a sociedade retroagindo a evolução cultural de homens e mulheres.

Conclui-se que, muito da trajetória do escritor está presente em sua obra, promovendo uma avaliação de sua própria vida, enquanto torna-se também um reprodutor do paradigma tradicional da família carioca como os seus personagens idealizados.

182 SALOMÃO, Irã. Op., Cit., p. 95.

183 CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda; GOMES, Álvaro Cardoso; GODOY, Marília Gomes Ghizzi. O incesto na Literatura e

na História. Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 31, n. 1, p. 252-272, jan./jun. 2016. pp. 253-254. Disponível em: <

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III

CAPÍTULO