uma visão quase pastoral de pessoas tendencialmente parecidas que compartilham normas e valores e na qual a "tradição ociden tal" impera. Não por coincidência isto se assemelha à discussão de Mary Douglas sobre a pureza e o perigo, em que aquilo que se imagina existir é sagrado e a “poluição" é temida acima de tudo (Douglas, 1966). As oposições binárias nós/eles dominam este discurso, e a cultura do “outro” deve ser temida,
Este sentimento de poluição cultural pode ser verificado nos ataques cada vez mais virulentos contra o multiculturalismo - que é em si mesmo uma categoria ampla que combina múltiplas posi ções políticas e culturais (McCarthy e Crichlow, 1994) contra a oferta de escolas ou qualquer outro benefício social aos filhos de imigrantes “ilegais” e em certos casos aos filhos de imigrantes le gais; no movimento conservador English-onlyâ e na tentativa igual mente conservadora de reorientar os currículos e textos didáticos para uma construção particular da tradição ocidental.
Neste particular, os neoconservadores lamentam o "declí nio” do currículo tradicional e da história, da literatura e dos va lores que eles dizem que ele representa. Por trás deste conjunto de concepções históricas sobre a “tradição”, repousa um suposto consenso social sobre o que deveria ser considerado como conhe cimento legítimo (Apple, 1990), e sobre superioridade cultural. Mas é crucial recordar que o currículo “tradicional”, cujo declínio é tão fervorosamente lamentado pelos críticos neoconservadores, “tem ignorado a maior parte dos grupos que compõem a popu
lação americana, aquela que veio da África, da Europa, da Ásia, da América Central e do Sul, ou das populações indígenas norte- americanas" (Levine, 1996, p. 20). Seu foco principal e muitas vezes exclusivo esteve freqüentemente voltado apenas para uma espectro absolutamente restrito daqueles povos que vieram de um pequeno número de nações da Europa setentrional, contrariando o fato de que as culturas, e histórias representadas nos Estados Unidos foram "forjadas num complexo muito amplo e mais diver so de povos e sociedades” (Levine, 1996, p. 20). Os costumes e as culturas deste estreito espectro foram vistos como os arquétipos da "tradição” para todos. Eles foram não simplesmente ensinados, mas ensinados como superiores a todos os outros conjuntos de valores e culturas (Levine, 1996, p. 20).
SO CIO LO GIA DA EDU CAÇAO
Como nos lembra Lawrence Levine, uma percepção de histó ria seletiva e falha nutre as saudades nostálgicas dos neoconser- vadores. O cânone e o currículo nunca foram estáticos. Sempre estiveram em constante processo de revisão, “com irados defen sores insistindo, como ainda fazem, que a mudança levaria a seu declínio instantâneo” (Levine, 1996, p. 15; ver também: Apple, 1990; Kliebard, 1995). Na verdade, mesmo a inclusão de “clássicos" como Shakespeare nos currículos das escolas nos Estados Unidos só foi consentida depois de prolongadas e intensas batalhas, al gumas das quais foram iguais aos debates polarizados sobre qual conhecimento deve ser ensinado hoje. Assim, Levine assinala que quando os críticos culturais neoconservadores clamam por um “retorno” à “cultura comum" e à “tradição” estão supersimplifi-
cando, a ponto de distorcer. O que está acontecendo em termos de expansão e alteração do conhecimento oficial nas escolas e uni versidades hoje
não é nada fora do comum; certamente nao é um abandono radical dos parâmetros que marcaram a história da [educação]: constante e freqüentemente controversa expansão e alteração do currículo e dos cânones e incessante conflito sobre a natureza de tal expansão e alteração (Levine, 1996, p. 15).
É claro que tais posições conservadoras têm sido forçadas a uma espécie de compromisso, via de regra para manter seu predo mínio cultural e ideológico enquanto um movimento para "'refor mar” a política e a prática educacionais. Um exemplo central é o discurso emergente sobre o currículo de história - em particular a construção dos Estados Unidos como uma "nação de imigrantes7’ (Cornbleth e Waugh, 1995)* Neste discurso hegemônico, todos na história da nação foram imigrantes, desde a primeira população nativa americana que supostamente cruzou 0 Estreito de Bering e acabou povoando as Américas do Norte, Central e do Sul, até as últimas levas de populações que vieram do México, da Irlanda, da Alemanha, dos países escandinavos, da Itália, da Rússia, da Polônia, e de outras partes, e até finalmente as recentes popula ções que vieram da Ásia, da América Latina, da África e de ou tras regiões. Se é verdade que os Estados Unidos são constituídos por povos de todas as partes do mundo - e esta é uma das coisas que o tornam tão culturalmente rico e vital - uma tal perspectiva
A EDU CAÇÃO E OS NOVOS BLOCOS H EGEM Ô N ICO S
constitui um apagamento da memória histórica. Alguns grupos vieram a ferros e foram submetidos à escravidão e ao apartheid, sancionados pelo Estado, durante centenas de anos. Outros sofre ram o que só pode ser chamado de destruição física, lingüística e cultural (Apple, 1996).
O dito acima, de todo modo, aponta para o fato de que en quanto os objetivos neoconservadores do currículo nacional e do exame nacional estiverem sob pressão, estarão fortemente media dos pela necessidade do compromisso. Por causa disso, mesmo os mais fortes apoiadores dos programas e das políticas educa cionais neoconservadoras têm sido obrigados a também apoiar a criação de currículos que no mínimo parcialmente reconheçam “a contribuição do outro”.9 Isso se deve em parte ao fato de que há ausência de um departamento nacional de educação visível e forte e uma tradição de controle estadual e local do ensino. A "solução” tem sido a de estabelecer padrões de qualidade nacionais desen volvidos “voluntariamente” em cada área temática (Ravitch, 1995). Sem dúvida, o exemplo que dei acima sobre a história é um dos resultados de tais padrões de qualidade voluntários.
Uma vez que as organizações profissionais nacionais nessas áreas temáticas - como o Conselho Nacional dos Professores de Matemática - é que estão desenvolvendo aqueles padrões de quali dade nacionais, os próprios padrões de qualidade são acordados, e assim são muitas vezes mais flexíveis, que os desejados pelos neo- conservadores. O conjunto deste processo funciona como um con trole sobre as políticas conservadoras referentes ao conhecimento. Porém, isso não nos deveria levar a um quadro excessivamente romântico do conjunto de tendências emergentes em política edu cacional. A liderança em "reforma” escolar é cada vez mais domi nada pelos discursos conservadores em torno de "padrões de qua lidade", "excelência”, “responsabilidade” e assim por diante. Uma vez que as partes mais flexíveis desses padrões provaram ser mais caras, que as atualmente implementadas, os padrões de qualidade têm ultimamente desempenhado a função de proporcionar um
9. Isso ocorre freqüentemente através de um processo de “menção" {Apple, 1993), em que textos c currículos incluem materiais sobre contribuições das mulheres e grupos “minoritários”, mas nunca permitem ao leitor ver o mundo através dos olhos dos grupos oprimidos. Ou, como no caso do discurso de "nós todos somos imigrantes”, compromissos sâo assumidos de modo que o mito da similaridade Histórica é construído ao mesmo tempo em que as divisões econômicas entre os grupos crescem mais e mais,