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2. CAPÍTULO 1 A ESCOLA COMO UMA INSTITUIÇÃO DA MODERNIDADE

2.1 Da educação à aprendizagem

Biesta (2013) aponta que o ideal de educação que deve ter por finalidade levar o homem à liberdade, à autonomia e/ou à emancipação também está presente em abordagens mais contiguas à nossa época como as abordagens críticas da educação baseadas em Hegel, em Marx e no neomarxismo.

[...] a educação tornou-se compreendida como o processo que ajuda as pessoas a desenvolver seu potencial racional para que possam ser autônomas, individualistas e autodirigidas, enquanto a racionalidade se tornou o marco moderno do que significa ser humano (o que deixava todos aqueles que eram considerados não racionais ou ainda não racionais numa posição difícil) (BIESTA, 2013, p.19).

Nessa perspectiva, a educação é pensada como essa condição de possibilidade que levará a fatores correlatos à maioridade kantiana, uma educação que deve ser guiada pela emancipação.

Na esteira dessas reflexões, dentre as problematizações e críticas trazidas pelo autor, uma em específica será bastante importante para pensar o funcionamento da parceria entre família e escola, e, por sua vez, problematizar o modo pelo qual essa produção tem sido posta em exercício, a saber: a substituição da linguagem da educação por uma linguagem da aprendizagem8.

Uma das mudanças mais notáveis que ocorreram na teoria e na prática da educação nas últimas décadas foi a ascensão do conceito de ‘aprendizagem’ e o subsequente

declínio do conceito de ‘educação’. Ensinar foi redefinido como apoiar a

aprendizagem, assim como a educação agora é frequentemente descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de aprendizagem (BIESTA, 2013, p.32).

Assim, faz-se importante atentar para os efeitos dessa substituição, sua formação discursiva e os efeitos que essa forma de subjetivação produz. O que creio ser relevante para focalizar aqui é a análise de que a educação amparada por uma concepção de aprendizagem instaura novas referências antropológicas para a concepção de sujeito, pois passa a entender o homem como um ser que tende a aprender continuamente, cotidianamente, permanentemente,

8 O termo aprendizagem utilizado pelo autor parece não ter o mesmo cunho epistemológico explicitado por Ariès

(2012), que parece falar da aprendizagem de um modo mais amplo, correspondendo a vida educativa que se dava através dos ofícios, anteriormente à institucionalização da Escola Moderna. Já Biesta (2013) fala de uma aprendizagem mais específica e que necessita de uma elaboração mais refinada para ser constituída.

na qual não é possível pensar em interrupções e intervalos. O projeto do iluminismo, o homem da razão, sofre torções quando a educação e o homem passam a ser modelados por uma noção de aprendizagem.

Aqui, é possível trazer as contribuições de Noguera-Ramírez (2011) quando defende a tese de que a Modernidade deve ser entendida como uma sociedade educativa9, através de uma arqueogenealogia da Pedagogia Moderna.

Por essa explosão de práticas educativas e pedagógicas, por sua difusão e intensificação cada vez maior é que podemos afirmar que estamos diante de outro

tipo de organização social; essa que chamo de ‘sociedade educativa’ na medida em

que, como nenhuma outra na história, pretendeu educar (ensinar, instruir, formar) de maneira sistemática todos os seres humanos como condição para sua humanização e para o crescimento, enriquecimento e fortalecimento das nações (NOGUERA- RAMÍREZ, 2011, p.79).

Numa perspectiva bastante próxima a apontada por Biesta, Noguera-Ramírez

(2011, p.15) aponta “a passagem do privilégio da instrução ou do ensino para a

aprendizagem”. Assim, como já dito anteriormente, esse novo “modelo de educação” que deve visar a aprendizagem do indivíduo, sumariamente, produz grandes modificações na relação entre educação e sociedade, visto que descentra a concepção de ensino e o pluraliza e o ramifica para diversos âmbitos, focalizando esse processo para o sujeito aprendente.

“Prefiro chamar esse novo sujeito (essa nova forma de subjetivação) de Homo discentis um Homo aprendiz permanente, definido por sua condição de ser um aprendiz ao longo da sua

vida” (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p.16-17). É nesse sentido que se atribui o processo de pedagogização do sujeito, citado no início do texto.

O Homo Discentis tem uma plasticidade maior que o homem da razão plena do Ilumismo, ainda que se possa ver traços herdados dele. No Homo discentis, sua natureza é moldável na medida em que aprende e interage com o mundo. Não há mais uma maioridade a se atingir, ou pelo menos esse não é foco da aprendizagem. O imperativo é sempre aprender, sempre avaliar o que se está aprendendo e o que deve aprender mais. O sujeito deve aprender, inclusive, a aprender. A “maioridade” e o “momento da iluminação” não existem, pois sempre haverá algo como finalidade última. Não há como pensar em um lugar derradeiro a se chegar, pois a aprendizagem é para toda vida, constante, interminável, de modo que, através do imperativo da aprendizagem, é possível incidir sobre níveis cada vez mais capilares da vida

9 O termo educação apontado por Noguera-Ramírez não tem o mesmo teor apontado por Biesta. Noguera-

Ramírez utiliza o termo educação para pensar a Modernidade como uma sociedade do conhecimento, um conhecimento cada vez mais capilarizado e especializado, mas essa sociedade de conhecimento apontada pelo autor também encontra pontos de consonância com Biesta (2013), por ambos apontarem a pluralização e o

espraiamento de “ofertas de aprendizagens” fora de instituições educacionais formais e tradicionais, como os manuais de autoajuda, os “coaching”, a educação permanente e educação para a vida toda, bem como pelo

do sujeito. Não é à toa que cada vez mais é possível visualizar as modalidades de educação continuada invadindo os mais diversos estratos sociais, não ficando restrita apenas aos espaços da educação formal, ao espaço da escola e outros espaços de educação institucionalizada como as universidades.

Entretanto, deve-se fazer uma ressalva que não se trata de uma mera substituição de um conceito para o outro, “de uma concepção de natureza para outra”. Apesar de a concepção de Homo Discentis carregar um cunho antropológico de visão de homem, “a

emergência de novas práticas, objetos de discurso ou formas de subjetivação não significa nem o abandono nem o desaparecimento de práticas, objetos e instituições preexistentes nem sua completa desvinculação com aquilo que precedeu” (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p.19). Parece ser mais interessante, então, ao invés de pensar uma mera substituição, analisar as articulações e as sobreposições de um Homo Discentis, que tem uma tendência constante e ininterrupta a aprender, com aquele Homem da razão que atingiria a maioridade por meio da educação. Ou seja, cabe interrogar: quais os deslocamentos operados na concepção kantiana de uma educação guiada pela maioridade para uma educação que tem a aprendizagem como finalidade em si mesma?10

O autor, a partir de referências de Veiga-Neto (1996) e Senellart (2006), utiliza ainda uma metáfora que faz alusão à geologia: as transformações sociais não se fazem por meras substituições, mas devem ser analisadas como “deslizamentos de superfícies, desmoronamentos, fluxos de matéria de um lado para o outro, superposição de camadas e, claro, aparecimento de novidades que emergem justamente como resultado desse mesmo

movimento” (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011, p.201).

Nesse panorama em torno de como uma determinada concepção de Educação é colocada em perspectiva e singularizada a partir de seus referenciais, passarei a expor alguns elementos e achados da relação entre família e escola que permitiram a construção de uma problemática de pesquisa. No caso, irei especificar a construção do corpus da pesquisa, bem com uma certa justificativa de eleição de alguns lugares como cenários propícios à investigação a ser empreendida.

A opção por essa certa “demora” a expor o lócus de investigação dessa pesquisa, que será o foco do capítulo seguinte, deu-se, justamente, pelo entendimento de que é a partir do vetor educação, e do seu acoplamento a outros vetores, que a parceria entre família e

10 Alguns aspectos dessas divergências serão detalhados com maior precisão no último capítulo, em que a noção

de caráter público da educação será colocada em oposição a uma dimensão privatizada da educação quando passa a funcionar em maior escala no registro da aprendizagem.

escola passa a ter maior materialidade e força de movimento. Assim, fez-se importante, inicialmente, fazer um apanhado acerca da construção e fabricação de uma determinada concepção de educação, de sujeito, nas suas articulações com a escola e com família, para ser possível dimensionar seus processos de singularização, e, logo, suas características não homogêneas e imutáveis.

E é também por essa via que será tomado o funcionamento da parceria entre família e escola, numa análise a partir de alguns segmentos específicos. Assim, será possível atentar que o funcionamento da parceria não é somente algo modificável, mas algo que está em perpétuo deslocamento. Dito isso, é hora de seguir.

3. CAPÍTULO 2 – DA RELAÇÃO ENTRE FAMÍLIA E ESCOLA: CONEXÕES