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4 PERSPECTIVAS DECOLONIAIS E CRÍTICAS DA BRANQUITUDE

4.3 Educação crítica é educação antirracista

No livro, Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade, a professora e feminista estadunidense, cujo pseudônimo é bell hooks (2017), reflete sobre suas experiências como estudante e professora negra, bem como seu engajamento na luta antirracista e feminista nos espaços educativos.

Em uma de suas vivências, hooks (2017) relata duas experiências relacionadas à sua escolha em conduzir um seminário sobre Toni Morrison – professora e escritora negra estadunidense, vencedora do Prêmio Pulitzer (Amada, 1987) e a primeira escritora negra a receber o prêmio Nobel de Literatura, em 1993:

Num dos meus seminários sobre Toni Morrison, à medida que as pessoas sentadas em círculo expunham reflexões críticas sobre a linguagem dessa escritora, uma menina classicamente branca, loira, tipo colegial, contou que um de seus outros professores de Língua Inglesa, um branco mais velho (cujo nome ninguém quis saber), confessou que estava contente por encontrar uma aluna ainda interessada em ler literatura – palavras – a linguagem dos textos e “não aquela papagaiada sobre raça e gênero”. Achando engraçada a suposição que ele tinha feito a respeito dela, ela se perturbou com sua convicção de que os modos convencionais de abordagem crítica do romance não pudessem coexistir com as aulas que também oferecem novas perspectivas. Então partilhei com a classe algo que me aconteceu numa festa de Halloween. Um novo colega, um branco, com quem eu conversava pela primeira vez, fez uma invectiva ao simplesmente ouvir falar do meu seminário sobre Toni Morrison. Destacou que Cantares de Salomão era uma versão piorada de Por quem

tantas vezes repetida, de que as escritoras e pensadoras negras são imitações baratas de “grandes” homens brancos. [...]. Ambos os incidentes, aparentemente banais, revelam como é profundo o medo de que qualquer descentralização das civilizações ocidentais, do cânone do homem branco, seja na realidade um ato de genocídio cultural (hooks, 2017, p. 48).

A partir deste relato, percebe-se como a educação colonizadora desestimula uma formação crítica e impele as(os) estudantes para a homogeneidade intelectual e cultural, tendo como “norma” o que é produzido pelas concepções eurocentradas, assim como ocorre em relação às práticas culturais e sociais da identidade branca. Esta “normatividade” é identificada nas epistemologias que fundamentam currículos, metodologias de ensino, parâmetros de aprendizagem e avaliações para atender critérios de qualidade moral e intelectual padronizados, universalistas.

Segundo hooks (2017), seu entendimento sobre a relevância de uma educação libertadora, enquanto professora e ativista, foi influenciado, especialmente, pelas experiências de Paulo Freire, através da pedagogia do oprimido. Segundo a autora, suas vivências como estudante de graduação e pós-graduação a fizeram aprender sobre o tipo de professora que ela não gostaria de ser, considerando a falta de habilidades básicas de comunicação, os rituais de controle, dominação e o exercício injusto do poder praticados pelas(os) suas(seus) professoras(es).

Para reagir a essa tensão e ao tédio e apatia onipresentes que tomavam conta das aulas, eu imaginava modos pelos quais o ensino e a experiência de aprendizado poderiam ser diferentes. Quando descobri a obra do pensador brasileiro Paulo Freire, meu primeiro contato com a pedagogia crítica, encontrei nele um mentor e um guia, alguém que entendia que o aprendizado poderia ser libertador. Com os ensinamentos dele e minha crescente compreensão de como a educação que recebera nas escolas exclusivamente negras do Sul [dos EUA] havia me fortalecido, comecei a desenvolver um modelo para minha prática pedagógica (Ibidem, p. 15).

A educação libertadora desenvolvida por Paulo Freire, a qual hooks (2017) menciona, também se contrapõe a todo e qualquer processo educativo pautado em métodos autoritários, na verticalização dos saberes, na falta de espaço para a produção do conhecimento e na valorização da memorização em detrimento da reflexão e da práxis. A este tipo de educação, Freire (1987) denominou de bancária.

Para Freire (1987), influenciado pelas percepções e reflexões de Franz Fanon sobre as relações de opressão em contextos de colonização, compartilhadas na obra Os Condenados da

Terra (FANON, 2005), o problema central nestas relações é o processo de desumanização

das(os) oprimidas(os) e das(os) opressoras(es), ainda que ocorram sob circunstâncias diferentes.

No processo de desumanização, enquanto “distorção possível na história” e não um “destino dado” (FREIRE, 1987, p. 30), estão incluídas as opressões sobre as(os) pobres, as mulheres, negras(os) e indígenas, no qual ocorre uma distorção da vocação do ser mais entre as(os) opressoras(es) e uma atribuição da condição de ser menos às(aos) oprimidas(os). De acordo com Freire (1987), será através da pedagogia do oprimido que ambos irão se libertar, pois, “os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão” (Ibidem, p. 43). Portanto,

se a situação opressora gera uma totalidade desumanizada e desumanizante, que atinge os que oprimem e os oprimidos, não vai caber, como já afirmamos, aos primeiros, que se encontram desumanizados pelo só motivo de oprimir, mas aos segundos, gerar de seu ser menos a busca do ser mais de todos (Ibidem, p.34). Na busca histórica pela superação da opressão sofrida pelas populações negras, os movimentos negros vêm acumulando discussões, experiências e pautas que incluem a educação como ação política fundamental para a luta antirracista.

De acordo com a relatora, indicada pelo Movimento Negro para elaborar o parecer CNE/CP nº 3/2004, que regulamenta a Lei 10.639/2003 e estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2016), a perspectiva sobre a importância de combater o racismo atuando, também, na esfera educacional, há muito tempo vem sendo pautada pelos movimentos sociais antirracistas.

Conforme apontado por Silva (2016), já em 1978, após a fundação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU), a instituição solicitou ao Ministério da Educação e Cultura (MEC) a inclusão do estudo da história da África nas escolas brasileiras. Em 1982, o Centro de Estudos Afro-Orientais/UFBA, em Salvador, em convênio com a Fundação Ford, promoveu o curso de Introdução aos Estudos da História e das

Culturas Africanas, voltado para professoras(es) da Educação Básica da rede estadual. E,

enfim, a partir desta experiência, “em 1985, o Conselho Estadual de Educação da Bahia, por meio do Parecer 089/1985 manifestou-se favoravelmente à inclusão da disciplina ‘Introdução dos Estudos Africanos’ nos currículos das escolas de 1º e de 2º Graus que o desejassem” (Ibidem, p. 29).

Paralelo ao que ocorria na Bahia, outros estados, no mesmo período ou logo depois, também foram desenvolvendo iniciativas de inserir nas escolas públicas o estudo sobre

cultura e histórias negras, inclusive em cursos de formação de professoras(es). Entre os estados estavam: Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Pará. Essas iniciativas, apesar de isoladas, foram dando respaldo para a formulação de políticas públicas que contribuíram para que, em 2001, na Conferência Mundial contra o Racismo,

Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, fosse

cumprido o que já havia sido determinado na Constituição Nacional e na Lei nº 9.384/1996 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sobre a importância de estudos sobre a África (Ibidem).

Através das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, vêm sendo legitimada a luta pelos direitos a uma formação científica não eurocêntrica e a importância em trazer para o debate qual educação e formação científica se pretende perpetuar em nossa sociedade. Porém, a introdução obrigatória do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena na educação exige mudança de representação e de práticas que incluem a descolonização dos currículos em todos os níveis de ensino e disciplinas. Exige também, questionamentos dos lugares de poder e da relação entre direitos e privilégios arraigadas na cultura política e educacional, nas escolas e na própria universidade (VERRANGIA, 2009; GOMES, 2012).

Neste sentido, os Estudos Decoloniais se apresentam enquanto um conjunto de perspectivas teórico-metodológicas voltado para a valorização de epistemologias já existentes na cultura africana, afro-brasileira e indígena, mas excluídas dos espaços educacionais, a (re)construção de espaços de produção de conhecimentos e educativos, e a ruptura, entre outras coisas, com o projeto eurocêntrico hierarquizador de conhecimentos científicos, construído e colocado em prática sob a tríplice capitalismo-racismo-patriarcado. No entanto, esta postura crítica não significa endossar uma não ciência, mas reconhecer que a ciência hegemônica e colonizadora foi e é produzida pela branquitude. A partir deste reconhecimento, é urgente um giro decolonial que considere que tanto a produção científica quanto os ensinos relativos a ela, correspondem a uma determinada visão e concepção de mundo, pois, conforme Fernandes (2015), as próprias visões e concepções científicas são apenas mais uma visão dentro de um vasto universo de culturas e, mesmo que não aprendamos todas as visões nos espaços educativos, não precisamos ser ensinadas(os) de que só existe uma, que ela é a única válida e racialmente neutra.

Finalizo este capítulo destacando que, no movimento de política de resistência e enfrentamento ao racismo e eurocentrismo, desde o ano 2000, a comunidade científica negra e

antirracista conta com a Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN). A ABPN se trata de uma associação civil, sem fins lucrativos, filantrópica, assistencial, cultural, científica e independente, que visa fomentar a educação antirracista, pesquisas científicas acerca dos debates étnico-raciais e produções científicas pautadas nas epistemologias africanas, afro-diaspóricas e indígenas, políticas públicas no âmbito das ações afirmativas, bem como a luta pelos direitos das populações negras e indígenas, rompendo com o silenciamento, a exclusão e a hierarquização dos conhecimentos científicos (re)produzidos pelo racismo e pelo eurocentrismo42.

42 Informações obtidas no site da ABPN. Disponível em:<https://www.abpn.org.br/quem-somos>. Acesso em 20