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Educação e identidade: a experiência da criança

CAPÍTULO II: O PROJETO FILOSÓFICO DE BENJAMINIANO

3.2 Proposições acerca da educação contra a barbárie

3.2.1 Educação e identidade: a experiência da criança

Nos diálogos de Fédon, Fredo e a República, Platão imortalizará a idéia da carruagem ao empregá-la como modelo para a compreensão da alma humana. A carruagem de Platão compõe-se de três elementos: o cocheiro e dois cavalos. Na carruagem de nossa alma, diz Platão, o cocheiro é a Razão: é esta que tem as rédeas e guia a carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a obediência à disciplina imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca, é dócil e receptivo aos comandos da razão: trata-se da Vontade. Mas o outro cavalo, de cor preta, é indisciplinado, convulsivo, rebelde. Quanto mais a razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser. Porém, somente à força o cavalo preto se submete às rédeas do cocheiro. Este cavalo preto é o Desejo.

Segundo Platão, na carruagem44 de nossa alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. A disciplina provém da razão, enquanto que o caos atrai o desejo. Seguir o desejo é perder-se, acreditava Platão.

Desta forma, a educação disciplinadora imposta sobretudo ao cavalo negro, necessário para que eles tenham um andar sincronizado como cavalo branco, acabaria por submetê-lo a uma espécie de apagamento de si e perda de identidade.45 Posteriormente, também teremos Sartre, que apontará para a educação como aquela que poderá instituir um não-ser no ser, inibindo a sua consciência e abertura para o mundo.

Benjamin, ilustrando essa idéia, toma a criança como aquela que é capaz de fugir deste apagamento e limitação de ser. Em uma clara demonstração, remonta o seu agir, e constata que ela é capaz de tomar para si os restos deixados pela casa ou quintal como os restos de costura e os pedaços de madeira, bem como um brinquedo que fora atirado

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Curiosamente, uma outra imagem da carruagem inspirou Nietzsche. Trata-se da Carruagem de Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito que cerca este Deus, Dioniso se locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por duas panteras.

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Também teremos Sartre a idéia de educação como aquela que poderá instituir um não-ser no ser, inibindo a sua consciência e abertura para o mundo.

60 ao lixo, e os transforma; tem a capacidade de dar nova forma ao brinquedo quebrado ou ao pedaço de madeira e pano, reconstruindo para si um novo mundo e uma nova história. O mesmo o faz com os velhos gibis ou livros de história descartados pelos adultos, onde somente ela tem a possibilidade de repintar e reescrever uma nova história como dona daquele mundo que ela mesma descobriu, vislumbrando, assim, a realidade que os adultos descartam.

Portanto, é a infância com sua coragem inata, sem sabê-la, que irrompe o mundo dos mitos e dos costumes. Benjamin comenta sobre uma fotografia de criança, de Kafka, daquelas de ateliês ou estúdios, onde o ambiente é antecipadamente preparado igualmente para todos os que a ele se acorrem para guardar uma recordação. Naquele cenário “Seus olhos incomensuravelmente tristes dominam essa paisagem feita sob medida para eles, e a concha de uma grande orelha escuta tudo o que se diz.” (BENJAMIN, 1994 p. 144). O cenário desses ambientes retrata também o quarto escuro e o cenário que a sociedade atual vive, presa ao prescrito e predestinada a desfazer-se de sua infância, de suas experiências. O adulto, incapaz de ler e enxergar o sofrimento existente nesse ambiente, torna-se parte dele, reproduzindo-o em sua vida como que projetos e planos perfeitos de forma transparente e planejável, sem perceber seu aniquilamento.

A análise de Benjamin da fotografia de Kafka46 quando ainda era criança, é a de que ele em sua infância tentou compensar o ambiente sufocante (re-produzido) com o seu desejo de um dia ser índio. “Como seria bom ser um índio, sempre pronto, a galope, inclinado na sela, trepidante no ar, sobre o chão que trepida, abandonando as esporas, porque não há esporas, jogando fora as rédeas, porque não há rédeas, vendo os prados na frente, com a vegetação rala, já sem o pescoço do cavalo, já sem a cabeça do cavalo.” (BENJAMIN, 1994 p. 144). Ela cria para se entreter e recria, quando necessário, rompendo o enrijecimento adulto que copia ou reproduz os cenários e as atividades diárias. A criança, ao nascer, realiza seu primeiro ato criativo: é o primeiro ato de catarse de integração. Para Jacob Levy Moreno, a criança nasce com uma capacidade criadora própria do ser humano que irá completando com a maturidade e com a ajuda

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Trata-se de um a fotografia do menino Kafka aos seis anos de idade, onde para Benjamin, Kafka parece ter os olhos tristes, em uma sala escura, especialmente preparado. Ali, os adultos, ansiosos pela produção da foto, parecem insensíveis à angustia da criança, desalojada e posta em um ambiente de adultos.

61 dos outros. O primeiro eu-auxiliar é a sua própria mãe. Ao longo de sua infância, à medida que vai vivendo os diversos papéis e em contato com os agentes sociais, desenvolve essa capacidade criadora e atrofia em maior ou menor medida, de acordo com o tipo de relações e na medida em que as “tradições culturais” lhe sejam impostas pelos mais velhos.47 A reprodutibilidade técnica e mecânica tomou conta do pensamento e das atitudes do homem moderno, impedindo a criatividade e a produção única com sua aura de autenticidade.

O exemplo da criança para Benjamin é o que deveria ser promovido em um processo educacional quando direcionado contra a barbárie ou pela sua superação. Em Benjamin, a educação nos termos do modus operandi infantil é aquela que respeita e promove a identidade autêntica no ser. A criança, cheia de infância, é capaz de imaginar possibilidades e pensar de outro modo, em busca de uma liberdade que lhe é tirada no dia a dia.