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2 MARCOS TEÓRICOS

2.3 Educação integral, entre a dualidade e o horizonte da politecnia

As mudanças organizacionais ocorridas na Rede Federal desde sua fundação como Escola de Aprendizes e Artífices em 1909 até a sua constituição como Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia em 2008 refletem as mudanças no lugar que a Educação Profissional ocupa ou busca ocupar na sociedade brasileira nesses diferentes momentos históricos. Parte de uma instituição de educação claramente baseada na dualidade educacional que legitima a segregação de classes, destinando-se aos pobres e desvalidos, enquanto os restringiam o acesso à educação propedêutica e intelectual, para uma instituição educacional fundada tanto na dualidade que ainda caracteriza a Educação Profissional, como em uma proposta inclusiva e integradora, que, por meio da oferta da educação técnica integrada ao ensino médio, busca democratizar o acesso à educação intelectual, com vistas não somente a formação para o mercado de trabalho, mas para a formação de cidadãos críticos.

Nesta sessão, buscamos compreender as questões teóricas que perpassam a disputa entre uma educação fundada na dualidade, colocada a serviço do capital, e uma educação orientada pelo princípio da politecnia, alinhada aos interesses da classe trabalhadora e sua luta emancipatória. Apresentaremos um breve resumo de como historicamente se deu essa cisão na educação e, em seguida, explanaremos a concepção de politecnia, na qual esta pesquisa também se fundamenta. Por fim, discutiremos a proposta de ensino médio integrado à educação profissional como possibilidade de caminho rumo à superação da dicotomia educacional.

Partindo de uma reflexão marxista sobre o papel da educação na sociedade capitalista, bem como sua possível contribuição para a superação das contradições inerentes a esse modo de produção, alguns autores (FRIGOTTO, 2010; SAVIANI, 1989; MOURA, 2007) retornam ao conceito de politecnia, contrapondo-o ao dualismo entre educação

intelectual e técnica. Analisam ainda como essa dualidade se expressa na sociedade capitalista – negando o acesso ao saber científico às classes dominadas e legando-lhes apenas um saber instrumental útil à reprodução do capital.

Para Marçal e Oliveira (2012), sendo a educação na sociedade de classes um campo de disputas entre capital e trabalho, já é esperado que as decisões que definem a configuração das instituições de ensino, desde a sua formulação enquanto política pública até a sua execução por diferentes agentes implementadores locais, possam tanto contribuir para manter a hegemonia da classe dominante, como configurar dentro de si elementos de contra- hegemonia.

Para compreender a dualidade entre educação intelectual e educação manual Saviani (2007) busca os fundamentos histórico-ontológicos que estabelecem uma relação de identidade entre trabalho e educação. Para ele, o trabalho, enquanto ação transformadora do homem sobre a natureza em função de suas próprias necessidades, seria o seu fundamento ontológico, ou seja, aquilo que torna o homem um ser diferente dos demais animais (MARX & ENGELS, 1974 apud SAVIANI, 2007). Para esses autores, essa produção de si mesmo, apesar de condicionada à organização anatômica da espécie, não seria nata, mas sim aprendida, daí concluírem que há uma relação de identidade entre trabalho (produção) e educação (formação).

Com a divisão do trabalho, consequência do desenvolvimento da produção, advém, na história da humanidade, a apropriação privada da terra, separando os indivíduos em classes; as dos proprietários e as dos não-proprietários. Uma vez que à classe dos proprietários/homens livres não é mais imputado o trabalho produtivo, visto que a classe dos não-proprietários produz para eles, fica-lhe reservada como processo formativo apenas as atividades intelectuais, que dão origem às escolas, enquanto aos não-proprietários/escravos destina-se a educação identificada com o próprio processo produtivo. Diante disso, a divisão entre educação intelectual e educação manual, gera não somente uma separação entre educação e trabalho, mas uma dupla identidade. De um lado, tem-se educação e trabalho intelectuais e, de outro, educação e trabalho manual. O primeiro reservado às elites e o segundo à classe trabalhadora, comumente sob a forma de uma educação geral desqualificada e uma educação profissional aligeirada.

Ao discutir essa dualidade, Araújo (2010) apresenta os aspectos ideológicos subjacentes à educação profissional, cujo caráter moralizador, busca adestrar e conformar os trabalhadores à lógica do capitalismo. Demonstra que qualquer proposta pedagógica que vise

a romper com essa dicotomia entre educação intelectual e educação para a produção, deve necessariamente fundar-se em um projeto de sociedade que questione essa divisão social do trabalho, uma vez que a dicotomia na educação é consequência e não causa da divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, como defendido por Saviani (2007).

De acordo com Mészáros (2008), esta função moralizadora do ensino profissionalizante já estava presente no próprio pensamento iluminista que acompanhou a Revolução Industrial durante a conformação do capitalismo. O filósofo John Locke, por exemplo, defendia a criação de escolas profissionalizantes para os filhos dos pobres, tanto como forma de aliviar o fardo do Estado, imputando-lhes um trabalho, como atrelando esse ensino à doutrinação religiosa.

Assim, não é surpresa que tão logo o Brasil abolisse formalmente o regime escravocrata e iniciasse sua passagem para o capitalismo, começasse também a difundir o discurso que o legitima, adotando estratégias de dominação mais sutis e sofisticadas, demarcando os lugares ocupados pelas classes sociais. Ao passo que o capitalismo modifica sua forma de reprodução, a escola também se transforma, substituindo as práticas violentas de coerção física por outras de caráter subjetivo, como o é o argumento da meritocracia.

Buscando contrapor-se a essa noção dualista, Saviani (1989, p. 17) apresenta o conceito de politécnica, que

[...] diz respeito ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo moderno. Diz respeito aos fundamentos das diferentes modalidades de trabalho. Politecnia, nesse sentido, se baseia em determinados princípios, determinados fundamentos e a formação politécnica deve garantir o domínio desses princípios.

Aplicado à educação, a noção de politecnia não significa desenvolver no aluno uma infinidade de habilidades técnicas, nem o formar para o exercício de uma profissão específica, mas sim lhe fornecer uma ampla base teórica e prática que lhe possibilite aprender qualquer modalidade de trabalho. Além disso, “A divisão de tarefas é alguma coisa que não requer uma formação específica, por que na maior parte dos casos ela é adquirida em serviço.” (Ibidem, p. 18).

Entretanto, se a divisão do trabalho entre intelectual e manual é fundada na divisão de classes, pela via da instituição da propriedade privada, que também estabelece a cisão do conhecimento; como poderia a escola dual, fruto desse processo histórico e do interior das contradições do capitalismo, oferecer uma formação politécnica?

Visto que os processos educacionais e sociais estão intimamente ligados, “uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções de mudança.” (MÉSZÁROS, 2008, p. 25). Para o autor, as reformas educacionais costumam fracassar justamente pela falta de radicalidade, por se proporem conciliadoras, buscando apenas remediar os piores efeitos da ordem do capital, sem tentar eliminar seus fundamentos antagônicos. Alerta, então:

A estratégia reformista de defesa do capitalismo é, de fato, baseada na tentativa de postular uma mudança gradual na sociedade através da qual se removem defeitos específicos, de forma a minar as bases sobre a qual as reivindicações de um sistema alternativo possam ser articuladas. (MÉSZÁROS, 2008, p. 62)

Se os caminhos considerados intermediários para um sistema alternativo são apenas modos de se conformar ao capitalismo, que outro caminho seria possível? E se a mudança precisa acontecer no todo e não apenas na educação formal, que parte caberia a educação?

Nesse cenário desafiador, que envolve a tarefa simultânea de mudar as condições materiais de reprodução da sociedade e transformar progressivamente a consciência dos sujeitos, o papel da educação é fundamental “tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente.” (MÉSZÁROS, 2008, p. 65)

Sem esse compromisso claramente firmado e diante do agravamento da crise do capital e da deterioração das relações de trabalho, regidas por vínculos cada vez mais precarizados, a educação, assim como a saúde e a previdência social, deixam de existir como direito e passam a existir como mercadoria (RIBEIRO et al, 2016). O mercado, constantemente demandando a atualização da qualificação do trabalhador, pressiona por uma educação instrumentalista acrítica.

No campo da educação profissional, o produto vendido é a “qualificação” que aperfeiçoaria o capital humano a ser empregado na dinâmica de reprodução do capital. Mesmo quando em alguns seguimentos o discurso aparenta um caráter progressista de defesa de uma formação geral, baseada em competências cognitivas e comportamentais, como aprender a aprender, ainda preserva como objetivo último a conformação dos sujeitos aos segmentos produtivos que estão em constante transformação por conta do desenvolvimento tecnológico. Sem passar por uma discussão profunda sobre a questão do conteúdo e das

concepções que orientam as bases curriculares, o discurso esvazia-se e pouco contribui para a luta por emancipação.

Para Saviani (1989, p. 32), a circularidade da argumentação marxista de que é preciso uma sociedade transformada (condições materiais) para se transformar a escola e vice- versa aponta para uma abordagem mais complexa do problema. A fim de não incorrer em explicações lineares como as da teoria do capital humano, afirma que

é preciso partir da situação atual, e desenvolver os seus elementos contraditórios, quer dizer, agir no interior dessa contradição. Por que eu não posso esperar a sociedade se transformar para a educação se transformar, porque para a própria sociedade se transformar a educação precisa ser transformada.

Nesse sentido, a educação técnica integrada ao ensino médio tem sido defendida como aquela que as condições materiais atuais permitiriam empreender no sentido da superação dessa dicotomia. De acordo com Moura (2007, p. 19)

Tais reflexões e análises permitiram concluir que as características atuais da sociedade brasileira dificultam a implementação da politecnia ou educação tecnológica em seu sentido original, uma vez que, dentre outros aspectos, a extrema desigualdade socioeconômica obriga grande parte dos filhos da classe trabalhadora a buscar a inserção no mundo do trabalho visando complementar o rendimento familiar, ou até mesmo a auto-sustentação, muito antes dos 18 anos de idade. Assim, a tentativa de implementar a politecnia de forma universal e unitária não encontraria uma base material concreta de sustentação na sociedade brasileira atual, uma vez que esses jovens não podem “se dar ao luxo” esperar até aos 20 anos ou mais para iniciar a trabalhar.

Tais reflexões conduziram ao entendimento de que uma solução transitória e viável é um tipo de ensino médio que garanta a integralidade de uma educação básica, ou seja, que inclua os conhecimentos científicos produzidos e acumulados

historicamente pela

sociedade, como também objetivos adicionais de formação profissional numa perspectiva da integração dessas dimensões.

Contudo, para que essa forma de articulação entre Educação Profissional e Ensino Médio possa se constituir, de fato, como um percurso integrado e não apenas uma justaposição da educação profissional à educação dita geral, autores como Saviani (2007), Moura (2007) e Araújo (2010) recomendam que o trabalho seja tomado como princípio educativo.

Partir disso, implicaria compreender que o trabalho é categoria fundante do ser humano, que constrói sua existência, forma-se e educa-se a partir do trabalho. Para além de aprender fazendo, tomar o trabalho como princípio educativo é retomar, no processo educativo, a historicidade do trabalho e, nesse percurso, dotar o filho do trabalhador da

criticidade que sua luta exige. Para isso, Kuenzer (1989, p. 25) propõe um currículo elementar que minimamente viabilize

- a aquisição dos princípios teórico-metodológicos básicos que estão na base da ciência e da tecnologia contemporâneas;

- a apropriação de conteúdos histórico-críticos, que permitam a compreensão das relações sociais em seu conjunto;

- o domínio de algumas formas tecnológicas que permitam o exercício de funções produtivas;

- o domínio dos códigos e das formas correntes de comunicação.

Tal mudança “exige uma proposta de ensino de 2º grau que permita ao aluno trabalhador a apropriação do saber científico-tecnológico e histórico crítico, de modo a participar do processo produtivo e da vida social e política.” (KUENZER, 1989, p. 22). Em relatório publicado recentemente, Frigotto (2018) aponta, por exemplo, que nesses embates políticos e sociais, o ensino médio integrado, apesar de suas imperfeições, ainda com tendência a manutenção da dualidade educacional, pode constituir-se como um espaço de travessia para os jovens da classe trabalhadora. Adverte, então:

Para que seja uma travessia e não algo permanente, implica entendê-lo como uma modalidade transitória e manter como defesa fundamental a universalização do ensino médio na concepção já assinalada e ter um triplo sentido contrário ao que tem sido pensado para o ensino médio para os trabalhadores: a materialidade de um tempo mais longo (quatro anos) e não a famosa tese da aceleração ou suplência; apoiar-se numa concepção filosófica e epistemológica que permita uma formação integrada e integral ao longo dos quatro anos; e, como consequência, não ter a natureza profissionalizante stricto sensu e sim uma vinculação mais imediata com a compreensão do sistema produtivo em suas múltiplas formas e as bases científicas, técnicas, sociais, políticas e culturais que permitam entender e operar no seu interior não como trabalhador adestrado, mas como sujeito humano emancipado.

As discussões pedagógicas são perpassadas, então, pela garantia da universalização do acesso, que torna a educação, de fato, um direito a todos os brasileiros.

É nesse sentido que a Política de Expansão da Rede Federal se apresenta como um passo na direção dessa universalização ainda muito distante. Contudo, compreendendo que a oferta não necessariamente garante o acesso, cabe avaliar o processo de implantação dessa política analisado o quanto o modelo de implementação se aproxima ou se distancia dessas concepções emancipatórias de educação.

No segmento a seguir, explanaremos o percurso metodológico empreendido no processo de avaliação em profundidade da Política de Expansão da Rede Federal desde a problematização e delineamento do objeto de pesquisa até a elaboração da análise dos resultados e conclusão.

3 PERCURSO METODOLÓGICO DE UMA AVALIAÇÃO EM PROFUNDIDADE