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1.2 INTERCULTURALIDADE E ENSINO

1.2.1 Educação intercultural: um olhar panorâmico

Para iniciar esta discussão sobre educação intercultural, citamos alguns dos propósitos dessa perspectiva que partem da ideia de respeito à diversidade: (i) o olhar positivo para as singularidades; (ii) a condição de igualdade de direitos e de oportunidades; e (iii) a superação de atitudes de temor e indiferença em relação ao outro. Trata-se de uma perspectiva que no âmbito educacional tem adquirido múltiplas denominações, mas que de uma maneira geral tem se configurado como uma proposta de “educação para a alteridade”. Nos EUA, Canadá, e Grã-Bretanha, fala-se em Multicultural Education; na Europa, conforme o país, há variação entre educação para diversidade, pedagogia do acolhimento, educação para a igualdade de oportunidades, educação comunitária (FLEURI, 2003, p. 17), e, também, a denominação que se faz presente nesta subseção: educação intercultural.

Deixando de lado as nomenclaturas que, como vimos em subseções precedentes, podem divergir conforme o ponto de vista, uma educação intercultural na América Latina tem sido pensada com atenção aos resquícios do processo de colonização, e das divisões acarretadas por esse processo. Segundo Fleuri (2003), a cultura europeia que sempre foi entendida no mundo ocidental como a mais natural e racional das culturas, durante a colonização, foi imposta de diversas maneiras, seja como forma de ajudar os ‘subdesenvolvidos’ a crescer, ou como forma de apagar pensamentos tidos como ‘errados’, míticos e populares. As escolas eram um meio de agenciar essa relação desigual entre as culturas, pois propagavam os saberes reconhecidos como mais racionais e dignos, ignorando os que eram considerados supersticiosos e fracos.

A América Latina foi um dos grandes alvos dessa postura de doutrinação, onde os povos indígenas foram subalternizados e obrigados a aceitar a cultura dominadora. Além disso, com base numa ideia evolucionista-biológica da diferença racial (FLEURI, 2003), que tornava esses povos inferiores na visão dos europeus, de maneira desumana, eram exterminados e escravizados em nome da ‘civilização’ creditada à noção iluminista de progresso.

Nesse sentido, Souza (2010) faz uma crítica às pesquisas interculturais que ainda concebem línguas e culturas como homogêneas, principalmente quando contemplam nações ditas pós-coloniais, como o Brasil, historicamente marcadas pelo contato intercultural longo e traumático. Afinal, a colonização e esses contatos interculturais ocasionaram a formação de uma postura brasileira “pós-colonial – em relação ao antigo poder colonial – e neocolonial em relação às culturas

indígenas pré-coloniais que permanecem vivas em seu território” (idem, p. 290).

Em consonância com Walsh (2014), nesse contexto de lutas indígenas, segundo Fleuri, é que a Interculturalidade tem ganhado notoriedade na América Latina:

As propostas de trabalho intercultural surgiram principalmente a partir da emergência das identidades indígenas que buscam defender seus direitos, como é o caso do Movimento Zapatista de Chiapas, no México, onde o modelo político do Estado-Nação é questionado em sua capacidade de representar a sociedade multicultural mexicana. As revoltas indígenas no Equador, na Bolívia, no Chile, na Colômbia e no Brasil reclamam a posse dos territórios por eles ocupados ancestralmente, assim como o direito de revalorização de suas línguas e culturas através de programas educativos adequados (2003, p. 21).

Segundo o autor, essas reivindicações têm obtido respostas do poder público e têm acarretado o reconhecimento de direitos, como a Lei Orgânica Constitucional de Ensino (LOCE), promulgada em março de 1990 no Chile, que estabelece a Educação Intercultural Bilíngue; e a Constituição Federal de 1988 do Brasil que passou a assegurar os direitos dos povos indígenas de manter sua organização social, línguas, crenças, costumes e tradições.

Além da identidade indígena, a afro-brasileira, bem como outras identidades que se fundamentam na etnia, gênero, condições físicas, etc, têm sido defendidas pelos grupos, que buscam assegurar o reconhecimento legal e seu respeito social, ainda que paulatinamente. Na educação, são constatados importantes avanços nesse sentido, como a Lei nº 11.645/0828 que incluiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, implicando na abordagem do tema em cursos de licenciatura como o de Letras.

Embora pertinente, tal temática se mostra complexa se levarmos em conta que se trata de um assunto novo nos cursos de Letras. No

28 Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

entanto, acreditamos que uma perspectiva como essa, nas disciplinas de Língua Espanhola em contexto de EaD, pode ser trabalhada a partir do reconhecimento da contribuição dos povos indígenas e afro-americanos na construção da diversidade cultural na América Latina, e do resgate histórico de relações entre comunidades indígenas no Brasil e países vizinhos. Pode, também, partir do reconhecimento da América como uma articulação complexa de tradições e modernidades, um continente heterogêneo, formado por povos múltiplos que fazem dessa diversidade a sua riqueza.

Além das sugestões lançadas no parágrafo anterior, a marginalização dos povos latino-americanos pode ser outro tema relevante, já que – por referir-se ao primeiro espaço/tempo de um padrão de poder em função da raça – o conceito de América, em seus primórdios, era tratado com tom de inferioridade em razão da estrutura biológica dos povos colonizados, segundo Quijano (2005). A marginalização dessa identidade na atualidade merece ser problematizada no âmbito educativo – especialmente no ensino de Espanhol – pois assim como outras identidades também baseadas na ideia de raça, tais como índios negros, mestiços, espanhóis, portugueses e europeus29, podem estabelecer, em determinados contextos, preconceitos e hierarquizações discursivas.

Nesse caso, faz-se necessário assumir, para além dos ambientes virtuais de ensino, uma perspectiva como a da Interculturalidade crítica, ou Multiculturalismo crítico como trata Canen (2007), que busca “‘descolonizar’ os discursos, identificando expressões preconceituosas (metáforas e imagens discriminatórias), bem como marcas e construções da linguagem que estejam impregnadas por uma perspectiva ocidental, colonial, branca, masculina etc” (p. 93). Ou seja, como afirma Fleuri (2014), uma Interculturalidade crítica – a qual discutimos na subseção 1.1.6 – vai ao encontro da decolonialidade30. Os resquícios do sistema de poder instaurado durante a colonização da América Latina implicam, nos

29 Esses três últimos conceitos, antes associados pela procedência geográfica, passam a referir–se aos brancos nesse contexto de colonização, afirma Quijano.

30 Para Fleuri “Diferentemente do colonialismo – que diz respeito à dominação política e econômica de um povo sobre outro em qualquer parte do mundo – a colonialidade indica o padrão de relações que emerge no contexto da colonização europeia nas Américas e se constitui como modelo de poder moderno e permanente.” (p. 92) Ou seja, com o prefixo latino ‘de’, que tem sentido de ação contrária, separação, negação, a decolonialidade consistiria na rejeição à colonialidade.

dias de hoje, a marginalização de uma parcela da sociedade, com base em noções de superioridade. A hegemonia colonial na produção do saber, a implementação da categoria de raça como instrumento de classificação e controle de poder, e a constituição de um ideário de nação eurocêntrico precisam ser problematizados, e a educação intercultural tem se configurado como uma maneira plausível de enfrentar essas questões.

Mas, em que consiste, de fato, um modelo educativo pensado numa perspectiva intercultural? Na visão de Fleuri (2003, p. 31):

A educação, na perspectiva intercultural, deixa de ser assumida como um processo de formação de conceitos, valores, atitudes baseando-se uma relação unidirecional, unidimensional e unifocal, conduzida por procedimentos lineares e hierarquizantes. A educação passa a ser entendida como o processo construído pela relação tensa e intensa entre diferentes sujeitos, criando contextos interativos que, justamente por se conectar dinamicamente com os diferentes contextos culturais em relação aos quais os diferentes sujeitos desenvolvem suas respectivas identidades, torna-se um ambiente criativo e propriamente formativo, ou seja, estruturante de movimentos de identificação subjetivos e socioculturais.

Em outros termos, deixa-se de atribuir status aos saberes que a escola proporciona e passa-se a valorizar, com o mesmo peso, os saberes culturais do estudante, transformando o espaço da sala de aula em um ambiente de troca, de prática intercultural, baseada na comunicação. Uma educação intercultural visa, desse modo, uma reflexão dos sujeitos sobre outro e sobre eles próprios. Ainda, de acordo com Coppete et al (2012, p. 244) o objetivo principal de uma abordagem intercultural:

[...] consiste em auxiliar as pessoas a se apropriarem do código que possibilita acessar o universo do outro, ou seja, os valores, a história, a maneira de pensar, de viver, entre outros. Uma vez que tenha acesso a esse código, poderá voltar ao seu próprio código, e seu universo pessoal estará mais enriquecido pela troca empreendida. Assim, é possível inferir que a educação intercultural sugere que as pessoas aprendam e se habituem a olhar, mediados por uma ótica diferente. Propõe

mudanças cognitivas e emocionais que as levem a compreender como os outros pensam e sentem; e nesse processo retornem a si mesmos mais conscientes de suas próprias raízes culturais.

O alcance desse objetivo depende, portanto, do conhecimento sobre o código que constitui a realidade do outro, sendo esse código, na educação, tratado sob o viés dos discursos e sentidos culturais na língua materna. No ensino de LE, por sua vez, esse código diz respeito à língua- cultura-alvo, aos conhecimentos que vão permitir ao estudante entrar em um universo diferente, “estrangeiro”. Nesse sentido, é possível observar que, embora conversem no anseio de unir e superar barreiras entre os sujeitos, a ‘educação intercultural’ e a ‘abordagem intercultural no ensino de LE’ se diferenciam na distância entre os grupos culturais em foco, e também no (des)conhecimento de um sobre o outro. Isto é, enquanto a primeira se preocupa com a própria relação professor-aluno, com o tratamento desigual e as relações entre minorias e maiorias em um mesmo território, como é o caso dos indígenas no Brasil; a segunda traz para a sala de aula uma cultura distante, adicional, nova para o aluno, a qual é passível de choques e estigmas.

Embora diferenciem-se nesse olhar mais global e local, assim como na Educação, a formação docente em LE carece dessas sensibilidades mencionadas por Coppete et al, e é nesse sentido que observamos a emergência de uma abordagem intercultural na formação em Letras. No entanto, a Interculturalidade, sob o viés da Linguística Aplicada, com foco no ensino de línguas estrangeiras, também tem sido abordada por estudos outros enquanto competência do falante de línguas. Em subseções seguintes, discutimos ambas as perspectivas, dando uma atenção especial ao ensino de espanhol, foco desta pesquisa.

1.2.2 A abordagem comunicativa intercultural no ensino de espanhol