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Educação pública em terras brasileiras: sistema ainda em formação

1. A Lei 10.639/2003 e seu impacto na educação

1.3 Educação pública em terras brasileiras: sistema ainda em formação

A educação pública no Brasil, assim como o oferecimento de diversos direitos básicos e fundamentais, também é assunto controverso e que gera muita polêmica. Há críticas de todos os setores da sociedade ao ensino que se pratica atualmente em nosso país, desde as escolas de ensino básico até o nível superior. É necessário, contudo, que haja entendimento das razões que conduziram a educação pública básica a um patamar de descrédito maciço, tanto por parte de alguns estudiosos, como da população em geral. Esse estágio é preocupante, afinal, o Brasil vive um momento em que a maior parte das famílias que possui melhores condições financeiras prefere dispor de recursos monetários para custear a formação inicial de seus filhos em instituições privadas de ensino, evitando na maior parte dos casos a tutela da escola pública, que atualmente é considerada de baixa qualidade.

Muito se tem discutido, nos centros de pesquisa, acerca do verdadeiro papel da escola e de sua função social em meio à quantidade de informação disponível nos meios de comunicação de massa. Tendo em vista que a sociedade brasileira ainda se mostra fortemente influenciada pela opressão às camadas pobres e pelo favorecimento aos mais abastados, cabe a permanente discussão da escola como um locus de racionalidade frente à opressão do mundo que privilegia o capital em detrimento do humano (GADOTTI, 2001). Diante dessa situação, o papel da escola pública deve ser o de oferecer ensino adequado ao conjunto das pessoas que por ela passa, com o objetivo de diminuir distâncias formativas entre as diversas parcelas da sociedade, visando a uma educação que realmente forme sujeitos autônomos, em vez de promover a manutenção de bases educacionais pouco produtivas.

Nessa tentativa, muitos problemas surgem ao longo do caminho, visto que a escola pública tem de modificar as suas estruturas antigas para se adequar a uma nova proposta educacional, que não tem mais como público discentes de uma elite social, como aconteceu até pelo menos a década de 60 do século passado. Ante essa situação,

tem-se um sistema que ainda está em fase de adequação para oferecer uma educação mais igualitária e democrática não somente na concessão de vagas, mas em sua concepção ideológica, em suas proposições curriculares e em suas práticas pedagógicas.

Não se trata somente de colocar a criança pobre dentro de uma escola, preocupação esta que não está totalmente superada. Trata-se de oferecer a essa criança, sobretudo, o mesmo acesso aos bens culturais que são oferecidos às crianças com maiores condições financeiras. Não é este um caminho fácil de ser percorrido, principalmente dentro de uma nação que se caracterizou historicamente pela enorme discrepância entre as classes sociais e as diferentes etnias.

A problemática já está de certa forma assimilada pelas instituições oficiais de ensino, e foi assim comentada no Currículo do Estado de São Paulo, no caderno que trata de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, indicando na exposição acerca do ensino na sociedade do século XXI que:

Nesse contexto, ganha importância redobrada a qualidade da educação oferecida nas escolas públicas, que vêm recebendo, em número cada vez mais expressivo, as camadas pobres da sociedade brasileira, que até bem pouco tempo não tinham efetivo acesso à escola. A relevância e a pertinência das aprendizagens escolares construídas nessas instituições são decisivas para que o acesso a elas proporcione uma real oportunidade de inserção produtiva e solidária no mundo (SÃO PAULO, 2012, p. 11).

Mais do que segmentar o ensino para ricos e pobres, a educação elitista brasileira também foi historicamente marcada pela discriminação étnico-racial. Qualquer aluno negro que tenha passado pelos assentos da escola pública provavelmente sofreu com o preconceito. E qualquer aluno branco que tenha passado pelos mesmos assentos dessa escola deve ter conhecido pelo menos um colega de sala negro que sofreu preconceito. Nesse aspecto, sou obrigado a me despir da impessoalidade do pesquisador e me valer diretamente do discurso pessoal. Sendo aluno de escola pública durante toda a educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental – I e II – e Ensino Médio), presenciei incontáveis casos de racismo explícito ao longo dos anos de escolarização.

Hoje, enquanto professor de uma das escolas em que estudei, ainda percebo casos desse tipo de preconceito. Sou capaz de constatar, pois, empiricamente, que a situação de certa forma “denunciada” pela Lei 10.639/03 e pelas Diretrizes ainda carece de tratamento mais ostensivo. Considerando que concluí a escolaridade básica em 2002

e que tal Lei é posterior a essa data, não tenho notado, atualmente como professor, mudanças substanciais nos conteúdos de ensino relacionados à história e à cultura negra, nem na visão sobre o negro de parte do grupo de docentes e alunos. Há ações em andamento, mas são imprescindíveis muitos avanços.

Vê-se, assim, que o sistema educacional brasileiro permanece em um estágio que precisa de intervenções nesse quesito. Há, com efeito, melhorias em relação a diversos problemas. Percebe-se que a quantidade de vagas oferecidas para a população pobre é hoje maior e mais abrangente do que num passado recente. A qualidade de tal ensino e os problemas estruturais são, contudo, grandes entraves para a democratização efetiva do ensino. Essa democratização não pode ser entendida como o acesso a uma vaga na escola. Deve, antes, ser vista como o oferecimento de um ensino mais igualitário em todos os aspectos, menos elitista e livre de preconceitos de qualquer ordem.

Não somente a questão da população afro-brasileira necessita de atenção, há ainda inúmeros temas que são vistos como tabus, tais quais: a situação de imigrantes pobres e de indígenas no Brasil, questões de gênero e sexualidade, diversidade religiosa, entre outros. Os PCNs tentaram focalizar algumas dessas defasagens com o estabelecimento dos chamados “temas transversais”. Isso, porém, não tem sido enfaticamente discutido, ficando a sua aplicação muito por conta da iniciativa de cada docente.

Nesse sentido, a atividade pedagógica é fundamental para a realização de mudanças profundas no pensamento e na prática educacional. A intervenção de professores/as é um dos pilares que poderá fortalecer o diálogo entre alunos e unidades escolares sobre questões de interesse social, a fim de que os cidadãos em formação tenham desde a escolarização básica um contato reflexivo com as inúmeras e complexas diversidades que formam o tecido social brasileiro, cuja abordagem deve ser a partir de um olhar multifacetado e pluriétnico.

Em tal aspecto, pode-se dizer que o sistema educacional brasileiro encontra-se ainda em estágio de formação, de consolidação de bases mais sólidas do ponto de vista de sua diversidade, de suas múltiplas origens, de seu público variado. A escola foi capaz ao longo dos anos de oferecer maior acesso aos conhecimentos valorizados às populações pouco privilegiadas historicamente. Deve empreender esforços, nesse momento, que resultem em novas abordagens e interpretações do espaço escolar.

Muitas propostas e debates governamentais têm tratado de colocar a educação pública brasileira no foco de suas preocupações. De igual modo, universidades

nacionais e pesquisadores da área pedagógica têm buscado diálogos capazes de fornecer subsídios para que se efetivem medidas pertinentes à construção de uma educação mais aberta à diversidade, seja ela de qualquer tipo.

Não se pode admitir que o estágio em que se encontra o ensino chegou ao patamar desejado. A sua qualidade é ainda bastante criticável. A sua estrutura é insuficiente e anacrônica para os tempos atuais. Profissionais da educação, em geral, são mal remunerados, com poucos investimentos para a sua formação inicial e continuada ao longo da carreira.

Obviamente, não há somente equívocos. Esse sistema não está no nível atual por acaso. Essa mesma escola que hoje apresenta problemas já foi exclusiva para membros de uma alta sociedade. Havia a exclusão deliberada da parcela negra de seus assentos. Seu discurso elitista propunha que nem todos deveriam ter acesso ao saber, com base numa hierarquia social que perdurou por longos anos.

Assim, é razoável notar que a inserção dos filhos da classe trabalhadora no ambiente educacional não se daria sem conflitos, afinal, esse ambiente fora reservado à formação de membros das elites. A escola pública, hoje, inversamente ao que ocorre nas universidades, serve aos membros das classes desfavorecidas. Isso não é fator pouco relevante, é, aliás, talvez o mais importante dos aspectos que devem ser considerados nas análises acerca do momento atual do ensino público no Brasil.

Se se traçar um paralelo com a educação de nível superior, é possível a sugestão de algumas inferências. Pensando-se na universalização do ensino, chega-se à conclusão de que o Brasil caminha para o oferecimento do Ensino Médio para a maior parte dos jovens de hoje. Ao comparar estudantes que chegam à universidade, é notório que o perfil destes também é bastante variado. Em linhas gerais, e admitindo variações, a escola pública básica não tem conseguido propiciar formação para que seus egressos alcancem as grandes universidades públicas brasileiras, forçando grande parcela desses discentes à busca de universidades particulares, com seleção menos rigorosa para o ingresso e que, em contrapartida, oferecem formação muitas vezes menos abrangente, algumas das quais com objetivos mercadológicos.

Alia-se a isso o fato de haver estudantes da classe trabalhadora que precisam custear o próprio curso universitário e, via de regra, dependem de um emprego para o pagamento das mensalidades, motivo que os obriga a trabalhar durante a sua formação. Por isso, acabam reservando menor tempo para os estudos e realizam, na maioria dos casos, cursos noturnos, alguns com menor carga horária, além do fator agravante de se

estudar num período do dia em que o vigor físico e o raciocínio já não são adequados, tanto pelo horário avançado quanto pela estafa que o dia a dia causa.

A situação se inverte no que se refere ao ensino básico particular. Neste, os discentes são preparados para enfrentar os grandes vestibulares, que ainda apresentam forte caráter focado em conteúdos específicos, ou seja, uma seleção para a qual os alunos da escola pública não foram preparados. Ocorre, então, que as universidades públicas (que geralmente possuem os cursos mais bem avaliados em esfera nacional) recebem em grande parte os egressos do ensino particular, que foram especialmente “educados” para o enfrentamento de vestibulares especializados.

Esse breve panorama da educação pública, que mostra contradições tão aparentes, evidencia que nosso sistema educacional ainda precisa de grandes modificações. Não se defende aqui que as escolas de nível básico e que as universidades públicas sejam destinadas a um ou outro público, com critérios baseados em classes sociais. É inegável, no entanto, que há graves distorções entre o ensino oferecido aos diferentes segmentos da sociedade, o que sugere que mudanças sejam efetuadas a curto, médio e longo prazo, com vistas à diminuição da discrepância formativa que se opera nas instituições oficiais de ensino públicas e privadas.