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EDWARD TITCHENER E O CONTEXTO ALEMÃO DE PENSAMENTO

Neste capítulo, vamos traçar um panorama do ambiente intelectual alemão na segunda metade do séc. XIX, procurando mostrar o tipo de pesquisa que estava sendo realizada quando Edward Titchener chega para estudar com Wilhelm Wundt na Universidade de Leipzig. Conforme Duane Shultz e Sydney Schultz, em a História da

Psicologia Moderna (1992):

A ciência tinha para os alemães uma acepção bem mais ampla. Na França e na Inglaterra, a ciência era algo limitado à física e à química, que podiam ser abordadas quantitativamente. Na Alemanha, em contrapartida, a ciência incluía áreas como fonética, linguística, história, arqueologia, estética, lógica e crítica literária. Os estudiosos franceses e ingleses eram céticos quanto à aplicação da ciência a algo tão complexo como a mente humana295.

A Universidade de Berlim foi fundada em 1809 e, como mostra Robert M. Farr296, essa universidade introduz um novo elemento no panorama intelectual europeu, e que caracteriza o que se entende por “universidade moderna” – a Wissenchaft –, a qual não compreendia apenas o campo de pesquisa das ciências naturais, mas também o das ciências sociais. Como mostra Robert Farr, na obra As Raízes da Psicologia Social

Moderna (1998):

Embora a tradição da Wissenchaft separe a forma moderna da forma medieval de universidade, havia muita discussão entre os círculos acadêmicos na Alemanha a respeito de formas rivais de Wissenchaft. A distinção mais amplamente aceita era ente as Naturwissenchaften e as Geisteswissenchaften. Isso corresponde, de maneira superficial, no mundo de fala inglesa, à distinção entre ciências naturais, de um lado, e ciências humanas e sociais, de outro. Na Inglaterra e no País de Gales, por exemplo, corresponde à distinção entre a Royal Society de Londres e a Academia Britânica. A distinção é muito importante no atual contexto, pois levou Wundt a separar sua psicologia experimental (parte da Naturwissenchaften) de sua psicologia social (parte das Geistswissenschaften). Psicologia, para Wundt, era apenas em parte um ramo das ciências naturais. Ele percebeu que seria possível resolver experimentalmente certos problemas específicos dentro da filosofia. Esse projeto estritamente limitado, contudo, necessitava, em sua opinião, ser suplementado por uma forma de Geisteswissenschaften 297.

Dentro do ambiente de pesquisa de Leipzig, a psicologia nasce, então, como uma ciência natural e social. Como ciência natural, a psicologia se mantém dentro dos limites

295 D. Shultz & S. Schultz, História da psicologia moderna, p. 60. 296 R. M. Farr, As raízes da psicologia social moderna, p. 37. 297 Ibid, p. 40.

fisiológicos de compreensão da mente, como ciência social, ela rompe os limites laboratoriais da experiência humana, à medida que, para Wilhelm Wundt, experiências mentais complexas apenas se constituiriam na rede social, cultural e coletiva da humanidade, sendo “inacessíveis pelo método experimental” 298.

Durante o séc. XIX, as universidades alemãs iniciaram o processo da pesquisa dentro do ambiente acadêmico de uma forma que atraiu estudantes de todo o mundo para aprender: lógica, interpretação psicológica do córtex, elementos da lógica matemática, a psicologia da sociedade, história da filosofia, elementos da psicologia cultural, epistemologia, metodologia científica, ética e psicologia299. Como mostra Leahey, ainda no final do séc. XIX, os Estados Unidos tinham faculdades destinadas ao aprendizado do estudante universitário, mas não havia universidades com laboratórios que oferecessem treinamento acadêmico em pesquisa. Além disso, o ensino superior nos Estados Unidos era particular em vez de empreendimentos apoiados pelo governo, como era o caso na Europa, especialmente na Alemanha.

A maioria das faculdades foram estabelecidas por denominações religiosas para educar e construir caráter entre seus membros e para treinar seus cleros. Faculdades eram generalistas (...) não havia especialistas em pesquisa ensinando em campos especializados. As universidades alemãs, contudo, combinavam pesquisa e funções de ensino e estabeleceu os programas principais de graduação superior. Além disso, o governo, separado dos principados alemães, e o governo germânico imperial central, depois da unificação da Alemanha em 1870, fortemente apoiou as universidades alemãs com dinheiro e recurso 300.

É interessante notar também o que Duane Shultz e Sydney Shultz dizem sobre o contraste da situação da pesquisa entre as universidades alemãs e as inglesas após a unificação política da Alemanha em 1870.

Cada um desses distritos ou províncias tinha estabelecido sua própria bem financiada universidade. Cada uma delas tinha um corpo docente extremamente bem pago e os mais avançados equipamentos científicos de laboratório. Em contraste, a Inglaterra contava na época com apenas duas universidades, Oxford e Cambridge, e nenhuma facilitava, encorajava ou apoiava a pesquisa científica em qualquer disciplina (fora das ciências naturais e ciências da vida). Na realidade, elas se opunham ao acréscimo de novos campos de estudo ao currículo. Em 1877, Cambridge vetou um pedido de ensino de psicologia experimental (...) A psicologia experimental só seria

298 Saulo de Freitas Araujo, “Wilhelm Wundt e o estudo da experiência imediata”, p. 97. 299 Arthur L. Blumenthal, “Wilhelm Wundt: psychology as the propaedeutic Science”, p. 23. 300 T. H. Leahey, A history, of modern psychology, p. 39.

ensinada em Cambridge vinte anos depois, e só foi oferecida em Oxford em 1936 301.

De acordo com Danziger, Wundt estabeleceu a primeira comunidade de psicólogos experimentais simplesmente adotando o link da universidade alemã entre o ensino e a pesquisa 302.

Eles se viam como trabalhando no mesmo campo, dividiam certos interesses teóricos e seus vários projetos experimentais frequentemente tinham sua sustentação uns nos outros (...) os quais, para muitos deles, formariam a base das suas dissertações de doutorado e suas primeiras publicações científicas303.

Ao chegar a Leipzig em 1890, Edward Titchener se deparou com um projeto de pesquisa que se estendia como resposta às críticas kantianas, mas que também mostrava íntimas influências do próprio pensamento kantiano no escopo ontológico que define a compreensão da substância da mente no pensamento intelectual alemão. Dessa forma, de um lado, a psicologia seria experimental, fisiológica, laboratorial, matematizada e quantificada; de outro, a psicologia teria um decisivo corpo social que, para Wundt, não poderia ser experimental304. Leahey lembra que Wundt nunca procurou um status autônomo para a psicologia fora da filosofia. “Wundt considerou a psicologia fisiológica como uma continuação da psicologia filosófica tradicional com novos meios e conceitos vindos da fisiologia” 305. E, nas palavras do autor Saulo de Freitas Araújo, em seu artigo “Wilhelm Wundt e o estudo da experiência imediata”, “Wundt é, antes de tudo, um filósofo que formulou um sistema de filosofia, incluindo uma lógica, uma teoria do conhecimento, uma ética e uma metafísica” 306.

Vale lembrar, como mostra Araújo, que o laboratório de Leipzig, fundado em 1833, apenas impulsionou a institucionalização formal da psicologia, cuja disciplina passou a ser incluída no orçamento universitário, mas não se deve confundir com a separação

301 D. Shultz & S. Schultz, História da psicologia moderna, p. 60.

302 Kurt Danziger, Constructing the subject: historical origins of psychological research”, p. 18.

303 Ibid, p. 29. Ver também Ernest R. Hilgard, especialmente o tópico “Wundt’s Leipzig Laboratory”.

Psychology in America: a historical survey, p. 30.

304304 Kurt Danziger, Constructing the subject: historical origins of psychological research”, p 37. 305 T. H. Leahey, A history, of modern psychology, pp. 40-41. Ver também: K. Danziger, Constructing the

subject: historical origins of psychological research, pp. 38-39.

306 Saulo de Freitas Araújo, “Wilhelm Wundt e o estudo da experiência imediata”, p. 94. Contudo, neste

mesmo artigo, o autor se contradiz ao dizer: “Wundt pretendia fundar um novo campo de investigação científica, sem a influência deletéria das especulações metafísicas”. Ver página 101.

institucional da filosofia, “uma vez que até a metade do séc. XX, a psicologia continuou subordinada à Faculdade de Filosofia nas universidades alemãs” 307.

Entretanto, a formação de Titchener veio da Universidade de Oxford e do empirismo britânico, um campo já criticado por Kant e que se mostrava como totalmente diferente do qual Wundt trabalhava. Vejamos o que Blumenthal diz da chegada de Titchener em Leipzig.

A educação básica de Titchener veio da Universidade de Oxford e do empirismo inglês, particularmente como representado no trabalho de J. S. Mill. Durante 1890 a 1892, contudo, Titchener estava em Leipzig, buscando um grau de doutorado em psicologia, nenhum doutorado em psicologia era oferecido na Inglaterra. Enquanto em Leipzig, Titchener descobriu o movimento positivista emanando da Áustria por meio dos escritos de Ernst Mach e Richard Avenarius. Seu interesse no positivismo, junto com sua educação britânica clássica, colocou Titchener em posição estranha com Wundt desde o começo308.

E aqui chegamos num importante ponto entre Wilhelm Wundt e Edward Titchener – uma linha epistemológica que define uma corrente metodológica de pesquisa, marcada por claros contrastes conceituais309. O autor Arthur L. Blumenthal, em seu artigo

“Wilhelm Wundt: Psychology as the Propaedeutic Science”, reconhece que Titchener tem sido inadvertida e erroneamente sendo tomado como a “imagem refletida” de Wundt na América. Ao acusar Danziger de tratar o trabalho de Titchener como um exercício que “ignorou partes chaves” do trabalho de Wundt, Blumenthal problematiza o mesmo erro histórico que estamos apontando neste trabalho310. Saulo de Freitas Araújo também

comenta o equívoco de tratar, lado a lado, o trabalho de Titchener e o de Wundt. Contudo, o autor salienta a diferença entre ambos pela perspectiva de Wundt, ao mostrar

307 Ibid, p. 101.

308 A. L. Blumenthal, “Wilhelm Wundt: psychology as the propaedeutic science”, p. 20.

309 Observaremos que dois importantes conceitos que aparecem em Wundt, como “sentimento

tridimensional” e “princípio da apercepção” serão contrapostos por Titchener. Essa contraposição marca diferenças que, não apenas definem uma metodologia de trabalho, mas que mostra uma tradição filosófica de pensamento que acompanha tais concepções. Do lado de Wundt, isso retoma a idéia de voluntarismo, no qual a mente seria capaz de sintetizar espontaneamente elementos da experiência, o que contrariava Titchener, quem concordava com a noção mecânica da associação oferecida pelo empirismo e pelo associacionismo inglês. “A teoria psicológica de Wundt consiste no voluntarismo, e não no elementarismo associacionista da consciência, como foi interpretado por Titchener (1925) e Boring (1929); e, na verdade, também praticado por Titchener nos Estados Unidos e pela Escola de Würzburg, na Alemanha”. José Antônio Damásio Abib, “Revoluções Psicológicas”, p. 116. Ver também: A. L. Blumenthal, “Wilhelm Wundt: psychology as the propaedeutic science”, pp. 20, 21, 28, 30, 31; e K. Danziger, Constructing the subject: historical origins of psychological research, pp. 43-44; & T. H. Leahey, A history of modern psychology, p.40. Ao longo deste capítulo esses conceitos e suas diferenças ficarão mais claros.

que esse erro “representa uma total falta de compreensão da psicologia wundtiana” 311. Mas, por que também não poderia corresponder a uma total falta de compreensão da psicologia titcheneriana? Contudo, o autor reconhece que há uma diferença deliberada entre Titchener e Wundt. “Embora tenha sido aluno e colaborador de Wundt no laboratório de Leipzig, ele construiu sua própria concepção de psicologia, que em muitos aspectos se distanciou do pensamento wundtiano” 312.

A institucionalização da psicologia no contexto alemão apresenta uma concepção epistemológica que fundamenta uma tradição filosófica do pensamento, e que difere da tradição britânica. Vamos compreender como a psicologia experimental wundtiana surge dentro desse contexto, procurando estabelecer algumas fronteiras conceituais entre a psicologia experimental alemã e Edward Titchener.

a) A Teoria do Conhecimento na Psicologia Experimental Alemã