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Capítulo 4 – Risco e “Liminaridade” no cotidiano de criminosos “profissionais”

4.4 Efeito “espelho mágico”

A iniciativa de adotar a participação em grandes assaltos por meus interlocutores como uma forma de aquisição rápida de altas somas de dinheiro, embora tenha uma dimensão de rebeldia por subverter leis instituídas, não é motivada por uma consciência de que a situação sócio!econômica e de distribuição social do país impossibilitaria tais “conquistas” por vias legais. Se fosse esta a motivação, o ingresso nesta prática criminosa teria um viés de transgressão política. Mas não se trata de querer romper. Aqui, a busca é a de se enquadrar em um modelo dominante de inclusão pelo consumo de bens e serviços sofisticados, correspondendo a expectativas de sucesso e masculinidade, pautadas em um padrão midiática e publicitariamente definido. A intenção que constitui aparato para a prática destes crimes não é de ser dissonante, mas envolve uma busca de se integrar.

Trechos da fala de Lúcio, em alguma medida, reiteram esta suposição:

O tipo de pessoa que parte para uns tipos de crime que dá mais dinheiro, não é porque tá passando fome. 7ão são pessoas que estão à beira da miséria, de forma alguma (...). A galera rouba não é porque acha a vida de pobre ruim e porque não agüenta mais ser pobre. Mas é pelo contrário, é porque a vida de rico é boa, a gente se acostuma a ter um padrão de vida muito alto e não consegue mais viver sem luxo. Eu te digo Perla, vida de rico é que é vida. Você deixa de se contentar com o bom, agora só o excelente vai te satisfazer. Você deixa de se contentar em chegar em uma loja e ser tratado com educação, quando você se acostuma a ser rico, ser bem tratado não basta, você quer ser bajulado. Ladrão de nível não rouba porque ser pobre é ruim, ele rouba porque ser rico é bom. Entendeu? (Trecho de

entrevista com Lúcio, realizada no dia 05 de maio de 2008).

No desenvolvimento desta pesquisa tive evidências de que o significado que estas pessoas atribuem à atitude juridicamente subversiva de praticar crimes, não está atrelado à negatividade ou repúdio ao atual sistema de distribuição social. Busca!se ter acesso a bens, serviços e vivências que, efetivamente, são acessíveis a poucos e, no entanto, são apresentados como modelo de sucesso e triunfo, tornando!se desejável para muitos. O ingresso no crime adquire positividade, na medida em que é significado como um caminho propulsor de ascensão social e satisfações pessoais. Deixa de ser visto como um descaminho e é interpretado como uma “oportunidade” ou alternativa de vida atraente.

Entre os sujeitos da pesquisa, sucesso e masculinidade são identificados com o acúmulo de dinheiro ou propriedades que possibilitam um cotidiano de luxo e glamour. Casamentos ou namoros com mulheres bonitas, conforme mencionei, também figuram como indicadores de uma vida bem sucedida. Quando, ocorre de tais mulheres bonitas pertencerem a famílias ricas ou de classe média ou de serem graduadas e cultas, a relação afetiva deixa de funcionar somente como denotativo de êxito pessoal e costuma ser interpretada também, entre praticantes de grandes roubos, como fator de ascensão social, capaz de promover a integração do “felizardo”, de maneira irreversível ou mais consolidada, nos círculos sociais de suas mulheres.

De alguma maneira, estes ideais de “sucesso e felicidade” são decorrentes de uma ideologia capitalista dominante entre homens e mulheres, criminosos ou não, nas sociedades contemporâneas. Tal modelo de “uma vida desejável” é amplamente alimentado por ficções cinematográficas e campanhas publicitárias. Assim, roupas de grifes, casas e carros luxuosos, viagens, entre outros símbolos de distinção social, configuram hierarquias e identificam elites.

Vimos que Lúcio tem como referencial de elegância e parâmetro de sucesso os personagens de Marlon Brando e Al Pacino no filme, O Poderoso Chefão, uma produção de F. F. Coppola, que se tornou referência na história do cinema, não só pelo enredo, desempenho dos atores ou boa qualidade da trilha sonora, mas pelo glamour de sua produção. A sofisticação e requinte característicos dos cenários e figurinos do filme, junto com uma história que focaliza tradições, laços de família, dádivas e reciprocidades, honra e romance, resultaram em um grande sucesso de bilheteria e crítica, desencadeando a continuidade da história em mais dois filmes. A fixação de “ícones” e “espelhos” tendo como base uma ficção, embora se mostre mais nítida em Lúcio, foi possível identificar em quase todos os praticantes de assaltos com quem conversei. É disseminado o fascínio por personagens do cinema e da literatura.

A inspiração em enredos e personagens fictícios por estes profissionais do crime descortina ou coloca em evidência uma “aura de fantasia” que envolve o ingresso na prática de grandes assaltos. Trata!se de uma atividade, cujos ganhos monetários possibilitam a satisfação de dispendiosas aspirações de consumo, algumas apresentadas como realização de sonhos, alimentados desde a infância. Tal “profissão” tende a ser significada como uma porta para um “mundo fantástico”, onde se pode ter acesso a tudo o que se almeja: dinheiro, casas luxuosas, carros modernos, velocidade, armas, mulheres, bajulações. Tantas “conquistas” produzem a sensação de poder e a impressão de que tudo é possível.

Conforme mencionei anteriormente, um dos elementos assinalados por Turner (1974) como distintivos da liminaridade é a “subjuntividade”. Neste estado, as pessoas deixam se situar no mundo com base no modo indicativo (do foi, do está ou do será) e passam a agir, a partir de um “como se”. De acordo o autor, a condição liminar reproduz a vida cotidiana, mas não o faz de maneira fiel, instaura um “espelho mágico” (um como se) sobre o real, possibilitando subversões de hierarquias e inversões de posições. Este efeito espelho mágico pode ser verificado nas mudanças “repentinas” que ocorrem na vida daqueles que incidem sobre a prática de assaltos de grande porte.

A trajetória de Benício Feitosa é ilustrativa. Ele, que trabalhava como motorista para Auricélio, durante a operação contra a SCT, teve sua estréia no mundo dos grandes roubos. Segundo ele, participou do assalto, cumprindo ordens do patrão: “eu pedia a Deus todo dia para aquilo acabar logo e eu voltar para serviço no caminhão ”, (Trecho da entrevista realizada com Benício, no dia 05 de setembro de 2008). No entanto, meu interlocutor mudou de opinião quando recebeu a quantia de R$ 670 mil, das mãos de Auricélio. Ele ficou deslumbrado com o valor que lhe coube. Vejamos seu comentário:

(...) eu só pensava que a gente ia pra cadeia, pra mim ia ser xadrez na

certa, mas que nada, deu muito foi certo. Tudo deu certo. E quando nós conseguimos terminar, eu achei que o Auricélio ia me dar só um agrado, um dinheirinho para pagar meu serviço, porque ele era meu patrão. Mas ele me deu muito dinheiro, igual ao dele, que ele ganhou no assalto (...). Eu nunca tinha visto tanto dinheiro na minha frente, aquilo era dinheiro demais pra mim. Pra mim que fui pobre, eu que sempre trabalhei de empregado para os outros, aquilo ali era bom demais. (...) Eu me sentia como um menino, uma criança de seis anos, porque essas coisas fora do comum, só acontece no mundo das crianças, de você vê uma coisa boa acontecer de uma hora pra outra, da sua vida mudar em tudo (Trecho de entrevista com Benício,

realizada no dia 05 de setembro de 2008).

Depois de ter participado da ação contra a SCT, Benício se envolveu em mais três crimes, sempre atendendo aos convites de Auricélio. Satisfeito com as quantias que recebeu e sem ter sido preso ainda, ele considera promissora a “profissão” de assaltante. Com o dinheiro obtido nestes assaltos, Benício adquiriu duas bandas musicais que tocam os ritmos

forró e brega, tornando!se empresário do ramo de entretenimentos. Sua fala evidencia o

entusiasmo e fascínio que este metier desperta nos iniciantes. As altas cifras em dinheiro obtidas “(...) Eu nunca tinha visto tanto dinheiro na minha frente (...)” e rapidez com que tal aquisição ocorre “(...) você vê uma coisa boa acontecer de uma hora para outra (...)”,

aparecem como surpresas “agradáveis”. O acesso a elevadas quantias em curtos intervalos de tempo assume conotação de magia, pois ocorre “como se” fosse num “passe de mágica”:, “(...) Eu me sentia como um menino, uma criança de seis anos, porque essas coisas fora do comum, só acontece no mundo das crianças (...)”. Para Benício, o assalto contra SCT, que lhe possibilitou a obtenção de R$ 670 mil pelo desempenho de algumas tarefas pontuais em situações específicas, é significado como um “espelho mágico”.

A quase totalidade dos meus interlocutores experimenta suas participações em assaltos de grande porte como oportunidade de “subir na vida” e tendem a estabelecer relações entre as “conquistas” daí advindas com suas “fantasias infantis”. Todavia, se tantos “ganhos” acessíveis aos protagonistas desta atividade criminosa produzem a sensação de que “tudo é possível”, a vivência contínua de riscos, confrontos com a Polícia, prisões, morte de amigos, dentre outras contrariedades, mostram que há reversos ao “espelho mágico”. A “profissão assaltante”, embora possibilite a formação de fortunas em poucos anos, desencadeia vivências de perigo e sofrimentos, a iminência de prisão e morte é constitutiva de sua rotina diária.

Entre os entrevistados, foi quase unânime a afirmação de que esta alternativa de vida é compensadora. Trata!se de uma opinião resultante de um cálculo de ganhos e perdas, em que se conclui que a recompensa material desta atividade supera os riscos e dissabores que ocasiona. Embora na esfera da verbalização, a avaliação sobre a prática de assaltos seja positiva, os relatos emocionados sobre momentos de contrariedades, sofrimentos e medos, junto com os planos declarados de abandonar as atividades ilegais depois que acumular um satisfatório patrimônio (alguns dos meus interlocutores já o fizeram) revelam alguma percepção sobre as faces negativas deste ofício.

As relações travadas com segmentos desonestos da Polícia e da Justiça por meio de extorsões e subornos, os quais mencionei, retiram o peso moral da condenação jurídica à atitude de “desrespeitar a lei”. Para “nós”, “crentes” destas instituições, “nós” cidadãos que agimos “dentro da lei”, os valores e imperativos identificados com normas legais são, de tal maneira, cristalizados e atuantes que assumem conotação de “sagrados”. Para “assaltantes profissionais”, tais imperativos morais não têm todo esse poder de coerção.

Não se trata de afirmar que a prática desta modalidade de crime seja concebida como um “‘trabalho’ igual a qualquer outro”, sem receber nenhuma restrição ou remorso. Como se suas ações e critérios para construção de julgamentos conseguissem escapar completamente à “consciência coletiva” de nossa sociedade. Na verdade, tenho identificado consciência de transgressão e sentimento de culpa vinculada a tais atividades. No

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