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3 A SIGNIFICAÇÃO DA AGENDA DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: O LEGADO

3.4 DINÂMICAS EXTERNAS QUE IMPACTARAM A TOMADA DE DECISÃO DA

3.4.2 Os efeitos para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da nova política

A retórica estadunidense sobre os direitos humanos sempre foi marcada por um tom de promoção e defesa desses direitos. Entretanto, o comprometimento formal deste país, no que se refere à adesão de documentos vinculantes, é questionável, na medida em que apesar de incentivar a criação de tratados internacionais de proteção, o Estado não se mostra, muitas vezes, propenso a adotar tais tratativas. Em relação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o posicionamento dos Estados Unidos é similar. Se, por um lado, existiram discursos ressaltando a importância dos organismo do SIDH para a promoção dos direitos humanos na região, na prática o país muitas vezes atuou na tentativa de restringir o escopo de atuação da CIDH.

Quando da criação da CIDH, o contexto internacional era caracterizado por um ambiente de Guerra Fria, de modo que a prioridade para os Estados Unidos era combater o alastramento do comunismo no continente. Como consequência dessa política, o país foi responsável por dar respaldo às ditaduras militares implementadas na região, utilizando, em alguns momentos, da interpretação de que os direitos humanos estavam sendo tratados de forma questionável pela CIDH (MAIA; LIMA, 2017).

Apesar disso, como apontam Koerner, Maciel e Maia (2017) a construção da trajetória política da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assim como sua capacidade de influenciar os Estados a adotar uma nova postura em relação aos direitos humanos é um processo gradativo que decorre apesar dos interesses políticos dos Estados da região, incluindo sua potência regional. De forma análoga, Forsythe (1991) pontua o mesmo, ressaltando que a evolução política da CIDH é explicada por outras razões que não pela hegemonia e interesses dos Estados Unidos. De acordo com o autor, a posição do país no que diz respeito aos direitos humanos se mostrou importante, contudo o regime conseguiu se desenvolver apesar de momentos de oposição do governo estadunidense em função de seus interesses na região.

Em vista disso, nota-se que ainda que as decisões e opiniões da Comissão Interamericana não tivessem a pretensão de representar os interesses dos Estados Unidos, a postura adotada pelo governo estadunidense nos anos finais da década de 1970 e início da década seguinte favoreceu a atividade do organismo, na medida em que ofereceu recursos financeiros, políticos e diplomáticos para sua atuação.

Quando ocorreu o golpe militar em Santiago no Chile, os Estados Unidos estavam com as atenções voltadas para eventos que transcorriam fora da região da América, dentre eles ressalta-se a ascensão do comunismo em países asiáticos, a independência de várias nações africanas sob influência da União Soviética e a primeira crise do petróleo. Contudo, internamente questões como a Guerra do Vietnã, a repercussão do escândalo de Watergate e o suporte e envolvimentos do país no golpe liderado por Pinochet foram acontecimentos que tiveram grande repercussão nacional e internacional62 e, consequentemente, afetaram a

política e as tomadas de decisão do governo.

Assim, diante dos incessantes abusos e violações de direitos humanos cometidos pelo regime do General Augusto Pinochet e a comoção internacional ocasionada pela sucessão dos fatos visualizada no Chile, o posicionamento estadunidense a favor do governo chileno passou a minguar a partir do golpe de 1973. Entretanto, foi somente no ano de 1977 que a modificação da política externa estadunidense em relação ao Chile se concretizou. Como aponta Snyder (2014, p. 243) a modificação da abordagem dos Estados Unidos em relação aos direitos humanos se deveu a uma combinação de fatores, entre eles destaca-se a tentativa dos Estados Unidos de ganhar o apoio da população em vista dos acontecimentos que degradaram os governos anteriores.

Assim, com a posse de Carter na presidência dos Estados Unidos em 1977, as preocupações em torno dos direitos humanos se tornaram o tópico principal na agenda de política externa do governo. Por conseguinte, a adoção de um discurso orientado aos direitos humanos tornou insustentável o apoio do governo às ditaduras militares na América Latina, as quais possuíam um grande histórico de violações aos direitos humanos (SEGOVIA, 2014).

Por conseguinte, a política recém-criada pelo presidente Carter – qual seja de colocar o tema dos direitos humanos no foco das atenções de sua administração – teve repercussões para a atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visto que diante dessa

62 Como pode ser visto na seção anterior, organizações da sociedade civil dos Estados Unidos participaram de

um movimento mais amplo de solidariedade, ou seja, fizeram parte da rede de ativismo transnacional que passou a atuar pressionando o próprio país na definição de suas políticas para o Chile.

atitude a CIDH não teve que superar oposições a suas decisões por parte dos Estados Unidos. Mas foi em relação ao suporte financeiro e político dado à Comissão que o impacto se mostrou mais amplo, uma vez que a assistência dada viabilizou uma atuação mais robusta da CIDH e a maior expressão da temática de direitos humanos na agenda da Organização dos Estados Americanos.

Além do mais, como demonstram Ropp e Sikkink (1999, p. 198), essa nova postura em relação ao tema dos direitos humanos não teve sustentação somente no âmbito Executivo. A atuação do congresso estadunidense – influenciado pela forte pressão de ativistas em torno do caso chileno – foi igualmente importante, uma vez que coube à essa instância a apresentação, em meados da década de 1970, de um novo plano de políticas direcionadas aos direitos fundamentais.

Desse modo, com o intuito de reagir à percepção crescente de falta de moralidade em sua atuação, a política externa estadunidense do governo Carter para a região da América Latina decidiu tratar a questão dos direitos humanos nos fóruns internacionais. Em vista disso, o debate a respeito das violações de direitos humanos ocorridas no Chile foi transposto para a arena multilateral e, notadamente priorizou-se a discussão do tema no âmbito da OEA (DYKMANN, 2004).

Na interpretação de Dykmann (2004, p. 219) a estratégia estadunidense de evidenciar o caso chileno nos organismos multilaterais pode ter sido um subterfúgio para desviar a atenção do Brasil, da mesma forma como pode ter sido interpretada como um artifício para evitar a união e o engajamento dos países da América Latina no movimento terceiro mundista. De qualquer forma, o resultado da decisão política tomada pelos Estados Unidos foi o favorecimento da abertura de uma janela de oportunidade para a atuação da CIDH, de forma que o organismo pudesse investigar a situação vigente no Chile sem a ingerência de um dos Estados mais influentes da OEA. As consequências dessa deliberação para a Comissão Interamericana são apontadas por Dykmann (2004):

O caso chileno se constitui, sem sombra de dúvidas, um marco histórico para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e, em particular, para a CIDH. A Comissão ganhou publicidade e reconhecimento entre os anos de 1974 e 1976, mas sua fase mais proeminente se iniciou quando Jimmy Carter se tornou presidente dos EUA em 1977. O novo presidente proveu à CIDH suporte financeiro, político e diplomático e, por consequência, abriu o período mais popular da Comissão Interamericana de Direitos Humanos63 (DYKMANN, 2004, p. 222, tradução nossa).

63 “The Chilean case constitutes without any doubt a historical mark for the inter-American human rights system

and in particular for the IACHR. The Commission gained publicity and recognition between 1974 and 1976, but its most prominent phase began when Jimmy Carter became US president in 1977. The new president

O apoio fornecido pelos Estados Unidos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos não se refletiu somente na ausência de interferências nas decisões do organismo quanto ao Chile. A concretização da posição estadunidense pôde ser observada a partir do aumento do orçamento direcionada não só a CIDH, como também a OEA – no período o país era responsável por algo em torno de dois terços do orçamento da Organização e da Comissão (DYKMANN, 2004, p. 71).

A princípio, a contribuição estadunidense aconteceu através da atuação do congresso dos Estados Unidos entre os anos de 1974 à 1976, da qual resultou a aprovação da Emenda Kennedy que concedeu um aumento ao orçamento dirigido à CIDH (DYKMANN, 2004, p. 70). Esta ação foi uma reação à solicitação do Secretário-Executivo Luis Reque de restauração da receita do organismo, frente a redução solicitada pelo Subcomitê de programa orçamentário da OEA.

Em um segundo momento, o orçamento da Comissão Interamericana é marcado por uma expansão no decorrer dos anos de 1973 a 1990, tendo sido mais acentuada em 1977. Nota-se que até o ano de 1982 a tendência foi de crescimento, todavia após esta data ainda que o padrão tenha permanecido de ascensão as contrações foram mais constantes – mesmo que as reduções tenham sido pequenas. Por sua vez, a receita da OEA ainda que em crescimento se comparada à da CIDH expandiu de forma menos acentuada e com mais oscilações, como mostram os gráficos 4 e 5. Vale destacar que o crescimento orçamentário se deu sobretudo com a participação dos Estados Unidos.

provided the IACHR with financial, political and diplomatic support and thereby opened the most popular period of the Inter-American Commission on Human Rights”.

Gráfico 4. Orçamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre os anos de 1973 à 1989

Fonte: Elaboração própria, com dados de Dykmann (2004), 2018.

Gráfico 5. Orçamento da Organização dos Estados Americanos, entre os anos de 1973 à 1979

Ainda segundo Dykmann (2004) ao privilegiar a Comissão Interamericana, os Estados Unidos adotaram uma decisão política estratégica de fortalecer a CIDH em detrimento de outras entidades da organização, conforme argumenta o autor:

Não era mais funcional para a política externa dos EUA investir na competência geral da OEA, uma vez que estes fundos seriam provavelmente usados de formas imprevisíveis pelos órgãos políticos [...]. Este não era o caso com os direitos humanos, uma vez que era um tipo focado de atividade que era e ainda é altamente dependente da ajuda advinda dos EUA para funcionar64 (DYKMANN, 2004, p. 70,

tradução nossa).

Ainda assim, a importância da decisão estadunidense de fortalecer a Comissão durante esses anos foi fundamental, haja vista que a CIDH se viu com o apoio de um importante membro da organização, com recursos financeiros e um staff mais numeroso (DYKMANN, 2004). Além do mais, o impacto também ocorreu na logística das atividades da organização, a qual melhorou a partir do estabelecimento de um sistema computadorizado instalado em 1977 devido ao maior capital disponível na CIDH. Tudo isso propiciou uma atuação mais incisiva na região, sendo refletida em mais observações in loco e recursos para as ações do organismo.

3.5 O IMPACTO DA INVESTIGAÇÃO DO CHILE EM OUTRAS DITADURAS