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Eficácia horizontal do direito fundamental social à alimentação

2.5. Conteúdo do direito à alimentação: definição dos seus contornos e formas de

2.5.1 Eficácia horizontal do direito fundamental social à alimentação

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          Estado que impeça terceiros de violar, sob qualquer circunstância, o direito humano à alimentação adequada, para isso, adotando medidas positivas ou negativas necessárias. Facilitar e prover são considerados, no Comentário Geral 12 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, esferas da mesma obrigação de realização. Contudo, diante da distinção nas políticas públicas de facilitação do direito humano à alimentação adequada e de provimento, serão consideradas nesta obra como obrigações distintas. A obrigação de facilitar o exercício do direito humano à alimentação adequada liga-se, diretamente à elaboração e execução de políticas públicas que ofereçam condições que permitam ao ser humano, por si, assegurar a si e aos demais membros de seu núcleo familiar a plena realização de tal direito. Políticas públicas de acesso à terra e à água com qualidade, de geração de emprego e renda etc. são exemplos de facilitações. Por outro lado, o provimento do direito humano à alimentação adequada está diretamente ligado ao direito humano de estar livre da fome. Não estando o ser humano em condições de assegurar a si e à sua família, por qualquer razão, uma alimentação adequada, encontrando-se, por isso, em situação de risco nutricional ou desnutrição, o Estado tem obrigação de fornecer alimentação ou renda, garantindo-lhe dignidade. (BEURLEN, Alexandra. Direito humano à

alimentação adequada no Brasil. Curitiba: Juruá, 2009, p. 69/70.)

163 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

90 Um questionamento que paira sobre o estudo jurídico-dogmático do direito fundamental social à alimentação, diz respeito à possibilidade de a eficácia da norma que lhe consagra subsistir numa perspectiva horizontal, e, em caso afirmativo, qual teoria conduziria o processo de incidência da norma consagradora desse direito fundamental a relações privadas.

De igual modo, questiona-se, no prisma da eficácia horizontal da norma veiculadora do direito à alimentação, de que forma os particulares diligenciariam atuar com o propósito de se realizar materialmente o direito social objeto dessa pesquisa.

No que diz com a eficácia vertical da norma contida no artigo 6o, da Constituição Federal de 1988, em que o Estado figura como seu destinatário inafastável – vale lembrar que, em princípio, a concretização do direito à alimentação está a depender da adoção de políticas públicas –, a sua realização fática subsiste na hipótese em que o ente público pauta a sua atuação pelo respeito, proteção, facilitação, provimento, promoção, informação, monitoramento, fiscalização e garantia dos mecanismos para a exigibilidade do direito à alimentação, consoante outrora já se explorou.

Cumpre verificar, que nessa dimensão vertical o Estado se apresenta como destinatário da norma veiculadora do direito fundamental à alimentação, de vez que lhe cabe realiza-lo por intermédio de políticas públicas, ante a natureza social prestacional que esse direito assume. Contudo, na perspectiva horizontal de eficácia da norma fundamental correspondente ao direito à alimentação, o Estado dá lugar aos atores privados, pelo que nesse prisma são eles os destinatários do direito à alimentação, cumprindo-lhes também primar pela máxima efetividade desse direito social. Vislumbra-se, pois, uma inversão de destinatários.

Por certo, conforme tangenciado no primeiro capítulo dessa pesquisa, a produção de efeitos da norma veiculadora do direito fundamental à alimentação no quadrante privado pode subsistir a partir de duas diferentes perspectivas. O alcance normativo pode ser estabelecido por meio de dois métodos hermenêuticos, quais sejam: a teoria que consubstancia a eficácia e aplicação direta/imediata da norma fundamental e a teoria que propugna a sua eficácia e aplicação indireta/mediata.

Considerando a natureza fundamental da norma que consagra o direito à alimentação, sem se olvidar do caráter normativo que a atual dogmática constitucional empresta aos dispositivos constitucionais, não é de se espantar com a aplicação e incidência da norma fundamental diretamente nas relações interparticulares, ou seja, independentemente

91 de uma mediação legislativa infraconstitucional, priorizando-se, pois, a teoria da eficácia direta/imediata.

A esse respeito, convém, mais uma vez, lembrar do dispositivo assentado no artigo 5o, §1o, da Constituição Federal de 1988, o qual estabelece claramente que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Esse comando normativo guarda, em verdade, um mandamento constitucional cujo sentido – empregando-se as técnicas hermenêuticas sistemática, histórica e, mormente, a teleológia – vem a ser, necessariamente, o de que as normas fundamentais possuem eficácia, ainda que seja ela mínima, bem assim de que elas devem ser aplicadas às hipóteses de fato na maior medida possível, conforme o dimensionamento erigido pelas circunstâncias fáticas e jurídicas verificáveis no caso concreto.

Por essas razões, há que se considerar de todo legítima a aplicação imediata da norma gravada no artigo 6o, da Constituição Federal, em relações jurídicas privadas (horizontais) – em que o interesse do Estado não seja preponderante –, cuja posição jurídica objeto de tutela esteja calcada no direito fundamental à alimentação. A propósito, é possível se pensar em relações jurídicas de diversas ordens que potencialmente reclamam a incidência dos efeitos consubstanciados no artigo 6o, quais sejam: relações consumeristas, cíveis (sobretudo, de ordem familiar), trabalhistas, as que envolvem os direitos dos idosos, das crianças e adolescentes, entre outras.

A eficácia horizontal do direito à alimentação, noutra vertente, subsiste a partir da técnica hermenêutica de interpretação e aplicação do Direito representada pela teoria da eficácia mediata/indireta. Por essa diretriz metodológica, os efeitos oriundos do direito fundamental à alimentação operam-se nas situações particulares através de enunciados normativos infraconstitucionais, os quais funcionam como instrumentos de concretização do direito fundamental em tela, visando perspectiva-los nas situações concretas. Nesse ínterim, não são raras as disposições de ordem infraconstitucional que versam sobre o direito à alimentação e, cuja aplicação às relações interprivadas, pode e deve sobrevir na esteira da previsão constitucional a esse respeito.

À luz do paradigma constitucional do direito à alimentação, compete aos atores privados se absterem de atuar, na hipótese em que o seu agir representar qualquer óbice à produção de efeitos da norma instituidora do direito à alimentação. Não estariam os particulares autorizados, pois, a oferecerem resistência ou obrarem para que os demais titulares do direito à alimentação não tenham acesso físico a alimentos nutricionalmente

92 adequados. É preciso se fazer um adendo para se verificar, em certa medida, a coexistência de duas orientações em relação à postura adotada em prol da materialização do direito à alimentação. Isto é, no âmbito da eficácia horizontal prevalece a orientação absenteísta direcionada aos particulares, ao tempo em que, na eficácia vertical prepondera a atuação intervencionista do Estado com vistas a se promover a máxima efetividade do direito social em exame.

Demais disso, a efetivação do direito social em voga deve se dar a partir de uma atuação positiva dos particulares, de sorte que lhes cabe conformar suas condutas para que, em alguma medida, promovam o direito à alimentação. Cumpre verificar, nesse viés, que o direito à alimentação figura como um paradigma hermenêutico, conduzindo a operação interpretativa que resulta na aplicação da norma veiculadora do direito em questão de modo a que não viole o direito à alimentação, mas que, também e essencialmente, promova a sua materialização.

Por todo o exposto, denota-se que há, entre as teorias que versam sobre a eficácia horizontal do direito fundamental à alimentação, um foco de tensão, pois que priorizar-se a eficácia direta resultaria, em certa medida, na redução do ordenamento jurídico à Constituição Federal que, por mais importante que seja, não pode prescindir do ordenamento infraconstitucional para lhe conferir concretude. Por sua vez, a opção pela teoria da eficácia indireta poderia dar azo ao esvaziamento da Constituição Federal nas hipóteses, por exemplo, para as quais não haja norma infraconstitucional específica.

A solução para este impasse aparente parece residir na observância conjunta de ambas as diretrizes norteadoras da eficácia horizontal, em uma inequívoca relação de complementação e, sempre tendo como paradigma inafastável a necessidade de se conferir a máxima efetividade ao direito fundamental à alimentação, de vez que, ao que se demonstrou, a utilização de apenas uma delas, de forma isolada, pode conduzir a resultados indesejáveis.